REENCONTRO

CIDINHA E CIDÃO estudaram direito na mesma faculdade. Há tempos não se viam. Quando estudantes chegaram a namorar. Foram ao shopping e se encontraram na fila da compra de ingressos para o teatro. Ela separada do marido, mãe de dois filhos. Ele, separado, também pai de dois filhos. O encontro casual ensejou uma afetuosa proximidade, com beijinho nas faces e sorrisos à parte.

— Oi, o que você faz da vida???
— Alô, quanto tempo, eu cago, peido, mijo e às vezes vomito.
— Isso todo mundo faz, até eu. Às vezes. O que você queria, que eu cantasse???
— E por que não??? Você já me cantou, não lembra???
— Que eu me lembre, você quem chegou primeiro. Cantor seresteiro.
— Você acredita, pulei do galho para arquitetura. Descobri dons que ignorava.
— Caramba, que mudança de paradigma. Criou algum projeto conhecido???
— O Museu da Colonização de Marte — disse ela.
— Marte já foi colonizada??? Essa é nova pra mim. Tô mal informado.
— Foi sim. Eu vim do futuro. Fiz uma viagem na máquina do tempo de um amigo,
— Fala sério. Máquina do Tempo não existe. Ainda. Se existe não temos acesso a essa modalidade de IA.
— Não existia. Mas o cara é um físico. Nasceu em berço de ouro. É rico. Muito rico mesmo —. Ele teve recursos para pesquisar e construir uma, disse Cidinha.
— E como você conheceu esse gênio que te mandou para o futuro???
— Na festa de casamento do Edu. Lembra dele???
— Ah, sim. O Edu dos olhos sanpaku. Olhos que indicam comportamento possivelmente violento e trágico, a depender do tipo de sanpaku. Sofrem tragédias inesperadas. A Suzane Richthofen e a companheira Sandrão, são exemplos. Homicídios e sequestro. Movimento de corpo, rosto e voz caracterizam a pessoa sanpaku. A Suzane é mais psicopata mesmo. Possuída por espíritos obsessores, segundo estudos de caráter e personalidade feitos sobre ela — replicou Cidão.
— Como você sabe de tudo isso sobre ela???
— Eu também mudei de paradigma. Estudo Psicologia e Parapsicologia.
— Sua percepção do mundo deve ter aumentado, com certeza. Quanto tempo você voltou no tempo??? Se é que voltou mesmo, desafiou Cidão.
— Eu parei a máquina no registro de 2044, afirmou Cidinha.
— Parou a máquina do tempo??? Parou por quê??? Cidão, um tanto quanto surpreso, ficou olhando para ele na expectativa de uma resposta coerente.
— Parei pra fazer cocô, a resposta lacônica o surpreendeu.
— Fala sério, criatura, pra fazer cocô??? A máquina não tinha toilette???
— Nem as vestes, disse ele. Também porque é romântica a sensação de cagar olhando novos horizontes. Dá a impressão de estar a começar uma vida nova, livrando-se do lixo da vida antiga. Parei lá em Marte mesmo, próximo à uma colônia de terráqueos. Sem crise, Marte num instante encobriu isso. Lá não faltam tempestades de areia.
— A Inteligência Artificial está mudando tudo mesmo, disse ela assertiva, e perguntou: Fiquei curiosa: você nasceu onde mesmo???
— Eu nasci há dez mil anos atrás. Não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais. — Quando entrei na máquina do tempo corri o risco de não saber para onde estava indo e, pior, não sabia se chegaria lá. Onde quer que fosse. Pareceu-me muito experimental. Mas, que tinha eu a perder??? Era uma aventura que eu não poderia perder.
— Não enrola, pergunta ela novamente, onde você nasceu??? Ainda não disse.
— Eu nasci em Terezin, no Piauí.
— Caramba, como você conseguiu sobreviver a essa tragédia e estar aqui???
— Acredito que fazendo mágica. Nem sei ao certo como. O certo é que estou aqui, não estou??? Você está me vendo e falando comigo, não está???
— Sim, estou vendo, mas quase não acreditando.

Cida estendeu os braços e apalpou os ombros de Cidão, como que a conferir se ele estava mesmo ali. Se ela não estava a falar com uma projeção holográfica. Após apalpá-lo e ficar olhando nos olhos dele por um tempo, Cidão frente dela, vivo, em carne, nervos e ossos. Parecia mesmo impossível, uma vez nascido em Terezin, no Piauí. Então Cidinha, livre das suspeitas de que estaria a conversar com uma projeção holográfica, perguntou:

— E o Piauí, ainda existe mesmo???