A GAROTA DOS MORTOS —II—
A GAROTA DOS MORTOS —II—
Surpresa: a coisa larvar talvez tenha perpassado a densidade física de meu corpo, e rapidamente se esvai, dissipando-se, sem que pudesse notar para onde se deslocou. Talvez para um jazigo coletivo num cemitério maldito. Quem sabe tenham voltado para algum satélite, planeta ou meteorito que tenha se aproximado demasiado da órbita terrestre. Como vou saber???
O corpo “plenus larvarum”, para minha surpresa parece continuar na sala, só que, enfim, parece estar domesticado. Para vencer sua investida usei o princípio do espelho universal: "Dirijo a você, em dobro, a intenção reflexa de sua imagem. Imune sou a qualquer negação de minha dignidade".
A visão da malta de olhares ameaçadores, aos poucos foi sendo substituída por um único e patético olhar. O olhar familiar da indefesa tia, vestida num roupão, de pé, no corredor de acesso à cozinha.
“Ahh, é você tia”, admirei-me na exclamação.
Ela grunhiu uma resposta, afastando-se em direção ao quarto, passos flutuantes, como se estivesse pisando em ovos.
Chego à cozinha, ainda atônito, ingiro um copo de água. Volto à sala onde Paula permanece imersa em algum nicho mental no mundo dos pesadelos.
— Paula, que está havendo??? Desperta logo desse torpor medonho. Está tudo bem agora.
Sussurrou algo numa dicção obscura, sentou-se no sofá. A pele está excessivamente fria. Gélida mesmo. Aos poucos consegue levantar-se e caminhar até o quarto. Chegando à cama, desmaia de sono.
Não consigo dormir. Meu ego indaga ao inconsciente excitado muitas coisas. Perguntas sem respostas. O domingo amanhece nublado. Neste e nos dias seguintes, falta clima para serem comentados os acontecimentos.
Cinco dias depois e ela ainda esquiva, arredia. Sexta-feira, ao entardecer, compramos alguns livros na Livraria da Vila, na Vila Madalena. A seguir entramos num dos bares próximos. Paula pediu um suco de laranja e um chope. Eu, água mineral e um cointreau.
Aquela coisa aconteceu outras vezes??? Por que você não me disse nada???
A conversa por si mesma carregada de certa tensão. Responde à pergunta temerosa de entrar no mérito da questão. Estou ansioso para ouvir sua versão dos fatos.
Vamos falar disso depois???
Este não é um argumento coerente. Ficar pra depois???
Qual é a sua??? Como pode sublimar esse horror??? Agir como se nada houvesse acontecido??? Tenha tento. Estou saindo fora desse ambiente cataplasmado, não vou ser conivente com isso.
— Não sei ao certo o que aconteceu. Estava dormindo — disse ela.
— No sofá??? Você nunca dorme lá. Por que estava nele exatamente quando a coisa ruim aconteceu??? Acha natural esse transe??? Que houve realmente com você???
Paula replicou agressiva:
— Coisa ruim??? Todos vivem em meio às coisas ruins. Pode haver algo pior do que a justiça, os políticos??? Você não anda pelas ruas??? Nem lê jornal ou assiste TV???
Paula faltou perguntar em que país estou vivendo. Está francamente na defensiva:
— O horror, você fala em horror. Não sabe??? É onipotente, onipresente, onisciente. Está em todos os lugares, o horror é Deus, cara. A realidade nas ruas das cidades. A violência, a fome, o sadismo da sociedade... Ele começa nos salões atapetados do poder político.
— A argumentação procede. Mas não justifica abrir mais espaços para que ele mais completamente se manifeste.
Paula está francamente exaltada. Confusa. Como se estivesse querendo pressioná-la sem motivo considerável. Está a esconder coisas.
Querendo que eu encare a coisa com naturalidade, é isso??? O medo e o horror são fenômenos sociais generalizados ... Ora, Paula, nem por isso vou garantir lugar na galera do pavor, da criminalidade e do medo. Não, obrigado, tem muita gente inscrita nesses partidos, jogando nesses times. Fazendo parte dessas máfias.
— Ora, digo eu, afrontou ela. Todos parecem estar entregues, sem motivação para reagir...
— Ser troglodita é o normal, mais cômodo.
Ficou falando. Eu ouvindo seu discurso buscando não polemizar. A excitação visível, indica uma atitude coerente com a situação, a exaltação do ânimo. Estava tergiversando. Fugindo do envolvimento no mórbido evento. Temerosa de admitir participação...
— Você ouviu na TV, o refrão comemorativo da seleção brasileira tricampeã mundial de futebol júnior? O país inteiro comemorou com muita propriedade: “Ô-Ô-Ô, o Brasil é um terror”. Você ainda não sacou??? Nesse país, quem, de alguma forma, não estiver envolvido em crimes, narcotráfico, assassinato, roubo, assalto, clonagem de cartões de crédito, corrupção do colarinho branco, tal pessoa corre o risco de ser assassinada.
A excitação chegou a um clímax vexaminoso. Afirmei:
— “Take it easy” baby, o crime, o horror e o medo nunca vão parecer normais para ninguém. Nem mesmo para as forças que fazem deles uma estatística aterrorizante.
— Não importa, querido, a coletividade das máfias é mais forte do que a força pessoal de cada indivíduo. Elas exercem com sádico maquiavelismo, todos os tipos de pressão possíveis. As visíveis e as invisíveis.
Surpreendi nela uma crueldade fanática e determinista na tonalidade de voz.
— Você está apenas defendendo a morbidez. A mediunidade doentia de sua tia, estou certo??? Desista, essa coisa não tem defesa. A força do desprezo mostrou minha intensa indignação.
Passaram-se momentos sobre os quais pairou, como um Anjo do Senhor, a paz no silêncio. A esotérica beatitude do silêncio. Paula começou a soluçar. Daí a pouco, a chorar um choro compulsivo. As lágrimas abonam certa contrição.
Soluçando, falou, como se cochichasse um segredo confinado sob sete chaves. A ponta do "iceberg" do enigma emergiu como uma catarse de dentro de seu psiquismo. Emergiu. Claro como um dia solar. Negro como as trevas saturnais:
— Acontece por vezes. Quando a menstruação é farta e o fluxo do sangue permanece por mais tempo.
A voz, uma revelação sentida, profunda, sincera, dos acontecimentos passados:
Não sei bem como acontece. A lua deve estar em quarto crescente. Sucede comigo desde os treze. Sinto-me tiranizada por esses miseráveis agentes do terror. Alma e corpo se revoltam. A sensação de estar sendo usada por essa maldição...
“”— Não aguento mais. A tia diz que quem entra não pode sair. Há a “omertá”, uma conspiração do silêncio. Ninguém fala pelo medo disseminado da ameaça pelo terror. Não quero mais, que se manifestem através de mim””.
Após longa pausa pronunciou um convicto e sonoro “NÃO”. Nunca mais. Mesmo. Ajude-me a sair disso, por favor.
Sim, aconteça o que acontecer, não vou permitir que enfrente este distanciamento sozinha. É certo que não teria forças para se manter distante do ritual, sob a pressão do matriarcado das tias. Não teria forças, sozinha, para vencer argumentos em contrário.
Compreendo exatamente a extensão de seu apelo??? Está querendo dizer que as emanações de seu sangue menstrual estavam sendo usadas para atrair entidades astrais que abusam de pessoas menos conscientes, e as transformam em médiuns de um culto muito antigo, supostamente desaparecido???
A Bíblia menciona muitas vezes os sacrifícios de sangue de animais e pessoas: quando Abraão é compelido pelo Anjo do Senhor a sacrificar seu filho Isaac na rocha Moriá. Ainda que esse sacrifício não se consume.
Nas principais culturas pré-colombianas, o sangue celebrava as entidades astrais. Vampiros reclamavam sangue, torturas e sofrimentos, animais e humanos, dos sacerdotes que os invocavam. O sangue, poderoso coagulador psíquico, exalta emoções, instintos e paixões destrutivas.
Na Odisseia homérica, Ulisses, após chegar à terra dos Cimérios, na entrada do mundo subterrâneo, degola as vítimas e derrama o sangue delas numa cova:
— “Vindas do fundo do Érebo, juntaram-se as almas dos mortos, anciãos experimentados na vida, delicadas donzelas de corações afligidos por penas recentes, e guerreiros feridos por lanças de bronze, vítimas de Ares... Acudiam em chusmas de todos os lados da cova, com grande clamor. Fiquei pálido de terror”.
Após haver falado com a alma do oráculo tebano Tirésias, Ulisses ficou imóvel, Ulisses viu sua mãe chegar e beber do sangue negro. A morbidez exaltada do ato. Após tê-lo ingerido, ela o reconheceu e falou:
— “Meu filho, como vieste em vida a esta bruma tenebrosa??? ... Esta é a lei dos mortais, logo que morrem: os nervos não mais seguram as carnes e os ossos... Logo que a vida abandona a branca ossatura, a alma se dispersa-se como um sonho. Apressa-te a regressar quanto antes à luz. Guarda na memória todas essas coisas horríveis...”.
As outras almas dos defuntos pareciam sequiosas para beber do sangue e ir contando suas exasperações.
As facções místicas que governavam a Atlântida, prestavam culto à entidades mefistofélicas da “Noite Antiga”. Um desses partidos ofertavam vítimas a Xotli, o Senhor do Terror. Os atlantes sacrificavam milhares de escravos, capturados nas regiões mais periféricas, em honra à sua perversa e sequiosa divindade. Não me surpreende que a Atlântida tenha sumido sob o imenso tsunami de grandes ondas do mar revolto.
Paula mencionou outras coisas, entre elas, um livro de circulação restrita no ambiente esotérico das tias. O acesso apenas ao nome:
"O Livro da Criança das Trevas
Do Jovem das Trevas
Do Adulto das Trevas
Do Idoso das Trevas".
Ficou gravado na mente devido ao inusitado de sua designação. Ela desabafou por longo tempo: lembranças traumatizantes, até então reprimidas, foram como que vomitadas. A situação dramática: tanto tempo vítima de extrema e violenta coação anímica, sentimentos de horror vieram à tona. Aos borbotões.
A verbalização da tragédia pessoal, o alívio pertinente à purgação de culpas ... Comeu o fruto amargo por muito tempo. Verteu o ferimento de sangue. Expeliu as obscenidades que a haviam exaurido por toda uma vida. Mostrou as luas crescentes, que eu conhecia, tatuadas no pulso direito, nos seios e na parte interna da coxa esquerda.
O fanatismo gratuito do discurso anterior desapareceu. Parece ter sido anistiada das suas culpas pelo Anjo do Silêncio. Em nenhum momento foi dominada pela emoção. Apaziguou-se numa paz interior surpreendente.
Disse que a tia estava se mudando do apartamento. Que jamais admitirá ser novamente usada pela mediunidade destrutiva dos familiares. Falou que, entre os homens, há um ritual masculino. Afirmou que sua ginecologista vai dar um jeito no excesso do fluxo de seu plasma menstrual receitando a ingestão de certa vitamina.
— Fique comigo, amor, prometa que não vai me deixar sozinha. Nunca. Por favor. Aconteça o que acontecer não serei médium dessas forças outra vez. Jamais.
O namoro não terminou, está suspenso. Estamos de acordo em manter um certo distanciamento. Pediu a tia para levar as fotos dos parentes quando, em breve, se mudar do apartamento. O pentáculo formado pelas fotografias de seus ancestrais, foi substituído por fotografias de sua filha na parede da sala.
Quem sabe, com ou sem minha presença, ela possa conduzir a vida da forma que o poeta William Blake vaticinou:
— “Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos”.
A Máfia, organização criminosa globalizada, foi fundada na Itália no século XII, para garantir a segurança pública. Lembro das denúncias do jornalista da Folha, Lucas Figueiredo, autor do livro “Morcegos Negros”. Segundo esse livro, as atuais autoridades de país Pindorama seriam responsáveis pelo escancaramento do país a todos os tipos de infiltração criminosa. As do baixo-astral defenderiam, até do além túmulo, os interesses espúrios dos herdeiros atuantes, ascendentes de clãs e “famílias”, com tradição em todo tipo de crimes. Algumas delas com mil anos de “know-how” fúnebre.
Estou a afirmar possibilidades. Paula descende de sicilianos. É possível, talvez, deduzir a presença de membros de uma quadrilha ancestral, por trás dessa manifestação astral, a representar ameaça e morte???
Os filmes da Babilônia atual transformaram a mente de seus moradores em habitação de demônios. Tortura, chutes, pontapés, tiros, golpes baixos, corrupção, enriquecimento ilícito, tráfico, violência, ultraviolência, corrupção, insegurança, penetram facilmente no subconsciente dos TV espectadores da sala de jantar, através dos olhos e ouvidos.
Também dos outros sentidos, principalmente dos olhos e ouvidos. Babilônia exulta, orgulha-se de seus horrores. As unhas sujas de toda espécie poluente de sadismo social, penetra a vida sedentária das pessoas da sala de jantar. A educação fundamental e média foi substituída pela educação TV visível.
As autoridades lavam as mãos, entregam a maioria licenciosa do sofá, à natureza da tirania feroz do mercado. Os pendores sádicos adormecidos são despertados por personagens que roubam a alma e a fé dos homens. Quem consegue resistir ao tempo e às personagens da telinha? Do telão? As crianças afogam-se aos poucos. Os adultos mergulham fundo e a política das tias se estabelece. É o regozijo das máfias milicianas.
As tias de Paula, presumo, permanecem em estreito conluio com o passado. Ela está a se libertar da rédea curta com que era manipulada pelos parentes. Vê o futuro a partir de uma esperança presente de renovação. Não quer presenciar a filha crescer respirando essa gênese anímica de animosidade repugnante.
Acredito em seu despertar. Admite a verdade de que o horror jamais deve ser aceito como um fenômeno social normal. E sim, como uma mórbida doença provisória, de uma sociedade que ainda não encontrou seu melhor caminho.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 20/11/2023