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CHACINA CHIC ("DOON") — III—
CHACINA CHIC ("DOON") — III—

Que espera Conrad enquanto estudante de medicina? Que o mercado persa de capitais esfregue em seu nariz, em sua cara, o horror cro-magnon fantasiado de gravatas de mil dólares e jalecos “black-tie”??? Por que não dizem que essa gente de “status” multiplica diariamente a miséria de milhares para que algumas centenas de respeitáveis traficantes de órgãos tenham contas bancárias polpudas nos paraísos fiscais? Os tráficos no ambiente reservado da “máfia de branco” existem com conveniência das autoridades do Conselho Regional de Medicina e do Conselho Federal de Medicina.

Por que não dizem nada sobre as CPIs do narcotráfico??? As polícias só pegam os peixes miúdos, os pequenos tubarões, testas-de-ferro de aquário. Se os políticos não podem fazer nada, por que são eleitos com discursos de mão aberta, enquanto itens de palanque? Conrad sorri, tenta minorar a ansiedade, a aflição. O advogado vai trabalhar no sentido da imputabilidade ou da semi-imputabilidade: homicídio doloso, homicídio culposo, essas putarias da lei usadas aleatoriamente pelos juízes e jurisprudências de tribunais.

A imprensa vai mostrar de todos os ângulos, a indignação dos parentes das três vítimas que morreram na sala de exibição do “Clube da Luta”. As mamas lacrimosas, as caretas indignadas dos papais, os parentes inconsoláveis, lastimosos. Nenhum deles jamais saberá o que é estar acuado, nessa noite dos desesperados. Ele também, apesar de classe média alta, um retirante que buscava vida afirmativa na metrópole. Logo aprendeu que o coração das trevas pira, inspira corrupção, ansiedade e medo. Igual ao retirante do poema de Cabral, na metrópole, só a morte vê ativa, ele que pensava nela encontrar vida. Pessoal e coletivamente são incapazes de qualquer opinião honesta ou emoção genuína.

Esses profissionais não têm nada que seja emocionalmente deles. Nenhum raciocínio, sequer um, como exceção à regra. Tudo e todas as coisas vêm do inconsciente patológico. Globalizado por interesses corporativos de classe. Toda essa encenação de emotividade barata, brega, kafkiana, não engana nem a eles mesmos. Todo esse estardalhaço da imprensa, faz Conrad lembrar dos enrustidos sexuais da oficialidade da Gestapo interrogando covarde e sadicamente suas vítimas indefesas. Os torturadores SS faziam rodar na vitrola o prelúdio de “Tannhäuser” enquanto torturavam suas vítimas. Sentiam-me melhor, ao mesmo tempo que abafavam os berros dos torturados.

Eles, os espectadores, não percebem que não são pessoas reais. São meros seres virtuais da tv da sala de jantar, das poltronas dos cinemas. Raramente têm sentimentos naturais, legítimos, que não sejam empatizados a partir das personagens dramatizadas nas novelas e filmes. Orlof, o Bóris (ou seria Karlóff???), “a grife da notícia”, por que não experimenta ligar um entre as dezenas de canais da TV? Com certeza veria que a maioria deles tem uma submetralhadora de mágoas apontada para o nariz dos espectadores.

Conrad compara as emoções das pessoas da sala de jantar à instantaneidade dos números de circo. Do circo da notícia, do estardalhaço. Os apresentadores, entrevistadores, são parte da alma coletiva virtualizada, isenta de responsabilidades. Nenhum desses psicanalhas de gabinete, oportunistas das mesas redondas dos “talk-shows”, dirá que essa é a verdadeira patologia social. Que toda essa sociedade sofre de intensa, perene, diária, “full-time” intoxicação patológica de programas e propaganda. Por que não falam sobre esta evidência física, psicótica, dos acontecimentos violentos banalizados no dia-a-dia de suas rotinas mórbidas?

O compromisso deles, repórteres, é mais com o sensacionalismo da notícia, não com as verdades que elas encobrem. Nenhum deles tem compromisso com a verdade. Verdade verídica, legítima, veraz. São mais doentes, mais coniventes com a peste negra do consumismo, que ele, Conrad, autor da chacina no MorumbiShopping. Aconteça o que acontecer, está satisfeito por ter feito sua parte. Sente-se mais que Macunaíma, herói sem nenhum caráter de uma sociedade idem. Tal como o herói de Mário de Andrade, ao chegar na grande cidade perdeu todos seus referenciais humanistas. Esculhambou-se. Avacalhou-se. Diluiu-se. Fez o jogo do coração das trevas.

Que pode um ser humano contra a ganância subliminar inconsciente desta cidade? Viver, morrer, igual, vida e morte severina, como naquele poema que tanto o impressionou: a morte que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, e de sede e fome de justiça, um pouco, todos os dias. Não quer continuar fazendo esse jogo virtual que suga a essência real. Seus heróis, como naquela canção do Cazuza, morreram de overdose, seus inimigos estão no poder: ideologia, diria, eu quero uma pra viver. Tem dúvidas de que, mesmo agora, esses jornalistas, intelectuais, âncoras de jornais, editorialistas, cronistas, psiquiatras, toda essa corja do showbiz do coração das trevas, seja capaz de pensar a prevenção, a saúde. A educação que não seja de mentirinha.

O canibal dentro deles é o “que” que os motiva a investir sempre na morbidez deletéria do dia seguinte. A excitação, a comoção destrutiva, ornamental, de Conrad, está mais para a do Cavaleiro da Triste Figura. Se todos são inocentes, por que não ele? Acaba de matar três pessoas, ferir cinco, numa sala de exibição de cinema do shopping Morumbi. Não se pode pedir desculpas por tirar a vida de alguém. Não se pode pedir desculpas a si mesmo por tomar uma atitude limite, de não querer conviver com o inimigo dentro de si mesmo.

Nada a reclamar, é a parte que lhe cabe neste latifúndio de cidade fritzlangueana. Julga-se muito, muitíssimo menos criminoso que qualquer desvio de verba para a educação, a segurança, a moradia, a saúde. Pouco, muito pouco perturbado com relação a esses deputados: enquanto fazem discursos para a mídia, dizendo-se contra o aumento de seus salários, subscrevem abaixo assinado na Câmara, para que seja votado e aprovado o projeto que os beneficia. Legislar em causa própria: nisso são exímios, experts, implacáveis paladinos da redundância.

Agora mesmo, novembro de 99, oitenta e um parlamentares (69 deputados, 12 senadores), se auto anistiaram ao aprovarem um projeto pelo qual se livraram de multas aplicadas pela Justiça Eleitoral, inclusos no pacotão, nove governadores. O projeto anistia também multas a emissoras de rádio e tv ligadas a políticos. Em 1998 foram anistiados até candidatos não-eleitos, quando as multas somaram R$ 21,2 milhões. 261 “excelências” votaram a favor, 110 contra abstenções treze.

O “Rei Mulatinho” de noite vai à tv combater à impunidade, na manhã do dia seguinte pressiona lideranças governistas no Senado a retirar assinaturas para uma CPI que investigaria a lavagem do dinheiro do narcotráfico. Conrad compara os crimes: sabe-se menos, muitíssimo menor genocida, que qualquer administrador político deste Holocausto por debaixo dos panos. O gesto desesperado, equivale ao ato simbólico de soprar o “shofar”. Fê-lo soar, ato de extremo desespero, para confundir Satã, inaugurar a reunião dos exílios, a ressurreição dos mortos. Navidad, Christmas, o Natal, poetizado por Rimbaud: O Natal globalizado sobre a Terra devastada, origem futura do Natal, o outro. “O Outro”, o Natal da virtualidade e impunidade ampla, geral, irrestrita.

(((P. S: Shofar (hebraico, significa “trompa”), antigo instrumento de sopro que se toca em “Rosh Hashaná” (Núm. 29:1) visando despertar as pessoas da letargia, física e espiritual, convocando-as ao remorso, à Metanoia. São cem os toques do Shofar na Sinagoga. O toque se divide em duas patês. No segundo toque Satã é conduzido a pensar que o “Dia do Juízo” é chegado: chegada à reunião dos exílios e a ressurreição dos mortos. O Shofar é usado para anunciar que alguém está sendo excomungado da comunidade judaica))).
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 28/10/2023
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