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A VANTAGEM DE SE FAZER DE BESTA
Dá uma de “João Sem Braço” às vezes pode ser a salvação da lavoura. Lembro de quando trabalhava numa empresa de venda de imóveis. O principal sócio, rico, “gay chic”, bem apessoado, insinuava-se. Buscava inutilmente reciprocidade. Faço-me de inocente, de quem não está percebendo nada. Afinal, não sei se preconceituoso, preguiçoso ou se covarde, debaixo do meu cobertor de lã, com as pulgas e os ácaros de estimação, fazer amor com minha rechonchudinha até mais tarde, ter muito sono de manhã, continua sendo melhor do que ter de me envolver com o executivo bem nascido, bem cheirado, bem vestido, seu ciclo socialite de amizades.

As coisas facilitadas, os melhores imóveis, os clientes indicados, as comissões de venda depositadas na conta bancária bem provida. Quem não as quer, tais mordomias? Mas, se para ser esperto na metrópole, é preciso estar de cacho com marmanjos, vou prosseguir, com muito gosto, na promiscuidade dos sem recursos, que gostam da opção pelos pelos púbicos pelos das lambisgoias.

Imaginava-me com gravatas de mil dólares, sapatos de cromo alemão importado, vestindo modelos “made in”, a frequentar os restaurantes da moda, no ciclo dos badalados, escolhendo no cardápio de restaurantes sofisticados, os pratos mais caros, a usufruir das fêmeas que deitam e rolam nos ambientes onde o desvio padrão da sexualidade se compraz no reconhecimento dos que supostamente sabem viver.

A possibilidade não me atraía. Não há nem haverá flozô, por mais cheio de grana e bonitinho, que pague o gosto voluptuoso de uma foda à moda antiga, o jato a inundar a camisinha empapuçada do instinto satisfeito em satisfazer a fêmea. Amar à antiga. Fazer desdobrarem-se as fantasias de possuir, ser possuído por ela. A realização de estar bem com a vida depois de uma simples foda, com ou sem paixão, sempre com tesão.

Essa maneira de ver o mundo pode ser instintiva, selvagem, “démodé”, mas não está à venda nos supermercados. Gosto delas: das Vênus Calipígias que fazem trottoir nas ruas e avenidas da cidade, de ganhar tempo com elas, de perdê-lo, conversar e fazer sacanagens, exercitar o bem-bom na hora do vamos ver.

Tenho a impressão de que se começasse a transar intimidades com a malandragem do colarinho branco, esse contato instintivo pertinente às fêmeas, poderia, talvez, arrefecer. Não é transação que eu pague pra ver. Faço que não compreendo as insinuações nesse sentido. Afinal, se ser “gay” é avanço emocional, vou sempre fazer parte da ala da escola de samba dos radicais conservadores.

Não são a mesma coisa as porções carnosas e redondas que constituem os traseiros cheios de grana e os das madonas a rodar bolsinhas. Minha opção entre uma nádega esteatopigia, com gordura excessiva, marcada por estrias, arestas e sulcos, e uma bunda toda certinha, com as curvas nos lugares, com assento garantido num carro importado, mas com balangandãs entrepernas...

Se depender de mim, a segunda opção vai ter de ir procurar sua turma. Se preconceito ou não, aceito. Pessoas falam muito dos preconceitos contra homo e “gays”. Parecem esquecer os preconceitos que são a marca registradas dos que não fazem parte de sua grei. Não são poucas as vezes que tenho de me fazer de bobo para lograr um contato sem arestas à primeira vista com baitolas que se acham no direito de se mostrar demasiadamente oferecidos.

Quando costumava vender meus livros em ambientes públicos, tipo bares, restaurantes, feiras ou filas para o teatro e o cinema, a fazer uma empatia rápida, porém profunda, com pessoas que perguntavam alguma coisa sobre o livro em oferta, precisava aproveitar o interesse momentâneo para não perder a venda. Dizia alguma coisa que, pensava, tal pessoa gostaria de ouvir, mesmo se não exatamente coerente com os termos da narrativa do livro.

Despojava-me de qualquer preconceito, ao agir de forma a ganhar do consumidor a confiança em dizer o que ele gostaria de ouvir. Minhas transas “gays” só foram até aí. Isso é agir com esperteza? Para uns sim, outros não. Em termos: se, posteriormente, o livro não satisfizesse as expectativas de quem o comprou, o leitor sentir-se-ia logrado, não perderia oportunidade de fazer má divulgação verbal do mesmo. É um risco que o autor que comercializa, mano a mano, literatura, está sujeito, para não permitir que a venda escape no instante em que se impõe a oportunidade. É olho no olho.

Nem sempre se consegue entrar no ritmo psicossomático apropriado ao movimento simultâneo, psicológico e físico, da pessoa em pauta. Se há alguma irritação, se tal pessoa está perturbada por algum acontecimento aziago, nem adianta insistir. Se houver antipatia à primeira vista, esquece. Se duas ou três pessoas estão muito envolvidas numa troca de ideias, fazer-se de bobo educado pode render juros, principalmente se você parar ao lado, como quem não quer nada, a ouvir, numa fila, do que estão falando outras pessoas próximas.

O autor vendedor aumenta as chances de ganhar um comprador numa fila de teatro ou cinema, se, na hora de se aproximar do possível leitor, num grupo em conversa, souber avaliar corretamente qual delas argumenta mais forte, e sutilmente. Deduzir de tal argumento a síntese que justifique, em poucas e simpáticas palavras, a solução do conflito de ideias entre elas, sugerindo-a amigavelmente.

De repente, não mais que de repente, o autor vendedor entra numa conversa conflituosa de terceiros, como quem não quer nada, dá uma dica para a solução do conflito, distribui mui rapidamente material de propaganda, na mão deles, e trate de sair logo de perto, de fininho, como um perfeito “João Sem Braço”, para depois voltar e conferir o efeito.

Pode ser que você, na pele de autor, tenha entrado numa fria, ao solucionar um conflito tão esquentado que poderia durar horas, quem sabe dias, num átimo, quando o objetivo poderia ser mantê-lo vivo, simplesmente para ter alguma motivação em manter a conversa quente. Por muito tempo.

Alguém pode ficar muito satisfeito ao ver a sardinha da razão sendo puxada para sua brasa. Você, autor, corre o risco de ganhar a antipatia de todos, por ter mostrado ao grupo o quanto estava disposto a perder tempo com uma trivialidade, a valorizar uma discussão acalorada de solução tão fácil e óbvia. Ninguém gosta de se passar por bobo, mesmo sendo um. Ou você vende um ou mais de um de seus livros, depois de pedirem autógrafo e tudo mais, ou então aquelas pessoas guardam bem seu nome literário e juram jamais comprar um livro desse autor, filho da dita.

Em qualquer situação de aproximação súbita, banque a representação do bobo educado, todos gostam do “por favor, queira desculpar”, “desculpem interromper”, “é só um breve momento...obrigado”. Breve sim, mas suficiente para abrir uma brecha na defesa daquelas pessoas.

Nesse breve momento, em que estão a se sentirem reis e rainhas, a ouvir a preleção humilde e modesta do bobo que lhes faz a corte em oferta de um livro. Esse breve momento você ganhou para vender seu peixe. Seja rápido e rasteiro, saia da proximidade deles o mais breve possível, para que não percebam o incômodo que porventura tenha causado.

Você simplesmente os fez mudar de atitude, entrou no mundo fechado de suas percepções, deslocou as atenções para você, um desconhecido. Audácia: e tudo com o consentimento ocasional deles. Surpreendem-se com aquela coisa estranha, o livro, que agora, queiram ou não, é parte provisória do mundo deles. Tudo rápido, você nem está mais lá, mal sentiram a perturbação no mundo ordenado da diversão de rotina.  

Ao se afastar, podem trocar ideias sobre, sentirem-se invadidos e até malhar. “Toda ausência é atrevida”, segundo Pessoa. Se perguntarem sobre aquela coisa que está em suas mãos, “que coisa é essa?” Você já estará longe e ao mesmo tempo prossegue lá, em mãos deles, de uma maneira não traumática. Se disserem algo grosseiro contra sua atitude, contra seu livro, problema deles, sentir-se-ão mal educados, preconceituosos. Você, autor, agiu de modo educado, civilizado. A polidez e a cortesia da boa educação tão bem inseridas na sutileza do contexto de se fazer de besta, que mal perceberam a presença, ainda que esteja sutilmente entre eles.

Se dedicarem uma breve leitura à propaganda do livro, a curiosidade, por mais breve seja, é meio caminho para a efetuar a venda. Insinuou-se você, sem forçar a barra, exatamente quando estavam envolvidos com uma possível banalidade, a despender energia numa discussão boba.

Agora, toda aquela energia grupal está deslocada para uma apreciação, ainda que breve, do produto literário. Se uma palavra, uma frase, uma sensação positiva for despertada a partir desse breve olhar, você terá ganho um leitor para seu texto. Quando voltar depois, com aquela aparência de quem não quer nada, afinal você está oferecendo uma opção intelectual, um livro, àquelas pessoas tão preocupadas em apenas se divertirem, terá, possivelmente, ganho a simpatia delas.

Pronto, um ou dois exemplares a menos na possibilidade de encalhe da edição. Essa, a vantagem do se fazer de besta: aquele João-ninguém, bobo de reis e rainhas que fizeram a gentileza de imiscuir-se nas mesas de bares e restaurantes, nas filas do cinema e do teatro, que poderiam estar no conforto de seus castelos/apartamentos, se dignaram à uma boa ação, desceram do alto da dignidade de seus tronos/poltronas/sofás, compraram o livro do bobo da corte.

Afinal, podem estar ganhando mais que um simples descarrego de consciência. Tudo pode acontecer nesse mundo onde autores têm de vender livros em filas do showbiz. Pode ser até mesmo que aprendam algo com ele. Se estão a comprar o livro é porque querem tirar vantagem dele, nem que seja só a satisfação da curiosidade.

Alguns compram só para mostrar que gostam de investir em cultura literária, não perdem uma oportunidade para isso. Se gostarem da leitura, é certo, consciente ou inconscientemente, estarão fazendo a divulgação do texto. Você terá ganho outros leitores futuramente. Se gostarem, mesmo que fiquem de boca fechada, estarão divulgando subliminarmente seu trabalho. As vantagens de se fazer de besta começará a aparecer. Você deve acreditar estar plantando a semente.

No impossível solo da difícil colheita, semelhante a Sidharta, terá de saber esperar, jejuar, pensar. Nada se aprende com a personagem de Hermann Hess, e as de outros autores, ao não se praticar o conhecimento neles ensinado. Tal aprendizado terá sido inútil. Fazer-se de besta pode ser perigoso e divertido ao mesmo tempo.

Saque antecipadamente a reação da pessoa. O dono de uma banca de revistas, por exemplo. Ontem, fiz a compra do Jornal da Tarde pelo suplemento literário do sábado, as revistas Palavra e Cult, com a Lygia Fagundes Telles na capa. Senti-me com moral para solicitar do banqueiro mal encarado, que atendia os fregueses da banca, àquela hora da noite, muito movimentada, na avenida Paulista uns segundos de atenção..  

—Ei você aí, me dá a Bunda aí, faz favor. O mal encarado pego de surpresa, fica sem ação. A frase provoca uma certa perturbação no trivial variado do bom mocismo dos clientes. Afinal, em ambientes públicos deve-se manter o recato. Ainda mais numa metrópole tão violenta, que qualquer suposta vulgaridade pode ser motivo para agressão.  

Passado o primeiro momento da surpresa, quando o mal encarado ameaça afrontar-me, complemento: “Não é a sua bunda, companheiro, é a revista Bundas”. A suposta insensatez foi compensada pelo sorriso de um e outro fregueses. Eles viam na cara do funcionário, que talvez nem soubesse ler, a perturbação de quem diz: “Eu não dou a bunda não, cara, eu sou espada, tá pensando o quê?”

No último domingo do mês de junho o movimento “gay” comemorou o dia mundial do orgulho anal dos insensatos. Não sou candidato a super-homem, mas é certo que, talvez, alguém, sorvetão ou não, vai mudar o curso da história por causa das xoxotas, é bom que se diga que a casquinha não pode ser baiana, nem o rabo de baleia.

Frescuras à parte, em qualquer ambiente, os literários não são exceção, pessoas que se sobressaem podem cair no conto do vigário da liderança. Pessoas querem ser lideradas para se sentirem mais seguras, mais fortes, coletivamente. Aí mora o perigo: ao aceitar as solicitações de liderança, o autor pode se diluir no que há de mais vital na criatividade: a necessidade de isolamento, sem o qual a habilidade mental para a meditação não pode ser cultivada, exceto superficialmente.

O escritor, presumo, se compraz com a solidão, gosta dela. Precisa dela. Nela está o embrião das condições propícias ao desenvolvimento do trabalho parapsicológico de criar interiormente as condições subjetivas para o cultivo dos desdobramentos das ideias, dos sentimentos, das emoções de suas e de seus personagens.

Acontecimentos psicológicos complexos precisam ser trabalhados na composição dramática da vida de cada um deles, até atingir o clímax das histórias dentro da história. Ele tem de se fazer de besta. Burlar as solicitações do mundo exterior com suas rotinas de dispersão dirigidas no sentido contrário à ruminação intelectiva, ao amadurecimento das forças subjetivas que aglutinam a vontade de estabelecer os acontecimentos significativos: os conflitos, a dialética, a dramaticidade. Escrever não tem nada a vê com badalações de comadres.

O escritor, suponho, deve ao leitor a habilidade em ser persuasivo, interessante, surpreendente. Isto não quer dizer enclausurar-se numa torre de marfim. Mas é certo que a luta por segurança e estabilidade, pelo imprescindível pão nosso de cada dia, facilmente pode distanciá-lo da introspecção necessária, exigida pelo aquecimento do processo de criação.

A disposição e a organização dos diversos segmentos narrativos selecionados exigem uma atenção que pode parecer, mas não é, ingênua. A cada estágio do trabalho literário, uma personagem ganha força, torna-se mais intensa do que o planejado. Schopenhauer dizia que a ingenuidade mantem a indumentária e a honra do talento.  Literário. E de outras. Artes.

Todo o plano inicial precisa ser revisado, e tudo muda com o novo encadeamento das associações de valores: a inserção de outros sentidos, de novas afinidades e conexões. Ler e reler, revisar, modificar, trabalhar melhor a metáfora, a metonímia, o pleonasmo. Um escritor precisa, definitivamente, ser uma pessoa incomum, por vezes um “João Sem Braço”. Fazer-se de besta. A criação passa pela fase da ingenuidade sentimental. O poeta e dramaturgo Friedrich Schiller considerava a poesia de Goethe do tipo ingênuo. A poética da abordagem a um possível comprador de seu livro pode ser goetheana.

Distanciar-se é preciso, das solicitações de outras rotinas que em nada contribuem para a concentração e o aperfeiçoamento da técnica de criar e escrever ficções: as mais curtas, as médias e as mais longas. De qualquer forma, fazer-se de bobo da corte não é fácil. Vender um livro ou dois para os reis e as rainhas da vaidade, nos bares, restaurantes, filas de cinema, museus e teatro... Menos ainda. A necessidade possui afinidades eletivas com a improvisação. Criativa.

Se um dia você for comercializar seu livro nas ruas, nos bares, nos museus, nas feiras, nas bienais de livros, essas dicas podem fazer grande diferença na comercialização dos mesmos.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 28/08/2023
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