SÓRDIDAS SIMILITUDES
SÓRDIDAS SIMILITUDES
QUE PODE UMA criança fazer por si mesma, senão esperar que os pais cumpram seu papel de tutores e a tutela ou encargo imposto às obrigações de interesse de uma pessoa menor??? Mãezona e Paizão Coisinha eram o típico casal pós-IIª GG: Seres medrosos e assombrados por horrores publicados em jornais e ouvidos no rádio através do Repórter Esso. Mesmo os jornais radiofônicos ficavam devendo em noticiar a realidade pavorosa, hórrida, teratológica, dos campos de batalha:
SERES DESMEMBRADOS, corpos sem cabeça, tronco sem membros, membros mutilados por tiros de morteiros, granadas e bombas. Soldados e oficiais sem braços, sem pernas, buracos de balas pelos corpos, membros dilacerados, tripas saindo pelos abdomens, restos de membros sendo arrastados pelo chão, a massa cinzenta de cérebros expostos saindo das cabeças, as feridas abertas que jamais poderiam sair da memória, milhares de seres, não mais humanos, conduzindo multidões de outros seres, também não mais humanos, para os vagões em trens direcionados aos campos de extermínio...
CRIANÇAS, IDOSOS e doentes que não tinham condição de trabalhar pesado, imediatamente conduzidos para os galpões, onde ao invés de água dos chuveiros, saíam, em grande quantidade, o terrível gás letal Zyklon-B, um pesticida de ácido cianídrico e nitrogênio que proporcionava uma morte dolorosa, e não tão rápida, dessas criaturas que não tinham para onde fugir do sufocamento. O desejo mórbido do ditador Hitler, de promover o rápido genocídio que impediria os judeus de continuarem a se reproduzir.
APÓS CONVULSÕES, as mais violentas, dores lancinantes, o gás ao entrar no cérebro produzia ataques cardíacos ao bloquear a respiração celular. Queimação, dor espasmódica e surtos semelhantes aos provocados por catalepsia. Crianças presenciavam outras crianças com crânios sendo esmagados por coronhadas de armas ao som de risadas dos oficiais nazistas presentes. As crianças provocavam o riso dos nazis porque também elas sorriam, desde que a dor das coronhadas não era sentida devido a aplicação de analgésicos nas cabeças.
PAIZÃO COISINHA se travestia de Hitler, o bigode concentrado sob o nariz, à moda do ditador alemão. Paizão por vezes surtava ao fazer discursos de elogio ao III° Reich enquanto tratava dos abcessos na boca dos pacientes odontológicos.
MÃEZONA POR vezes tinha surtos de ciúmes quando, numa emergência, uma ou outra cliente da sala de espera do consultório, fazia o papel de enfermeira e ficava ao lado dele, passando tufos de algodão que seriam usados para conter o sangramento bucal quando da extração de um dente.
EU, CRIANÇA, presenciava essas coisas acontecerem, ao mesmo tempo avaliava qual poderia ser meu futuro em mãos desse casal de desajustados, produzidos pela miséria de educação, de civilização, de filosofia alimentada pelo sete pecados capitais que brotavam da convivência hostilizada entre eles.
OS DEMAIS filhos sempre amedrontados por me verem, com frequência, por motivos os mais banais, sendo espancado por ele, que dessa forma mostrava a todos que era o “homem da casa”, enquanto batia minha cabeça no cimento do chão da sala quando, por vezes, parava de movimentar meus ombros para ficar olhando em meus olhos, talvez buscando saber se eu já havia desmaiado. Ao verificar que eu ainda não estava de todo inconsciente, Paizão continuava a mover meus ombros para cima e para baixo. A explosão de dor a cada encontro da parte posterior do crânio com o chão de cimento, me fazia berrar e chamar a atenção de quem estivesse por perto.
MÃEZONA AO me ver desmaiado, sem sinal de vida, aproximava do nariz algodão embebido com álcool ou com outra droga que me despertava para a sensação de tontura, dor de cabeça, cansaço, confusão mental e torpor. Posteriormente aos espancamentos eu ficava acamado, imóvel, o rosto e a cabeça de tão doloridos e inchados, mal sentiam que estavam saturados de vick VapoRub, a testa com compressa de pano com gelo.
EM SEGUIDA a essa sessão de violência e intimidação, ela se aproximava de mim, que, com dificuldade abria os olhos e a via sentada á beira da cama, passando a mão em minhas faces. Mesmo nessas ocasiões ela não conseguia transmitir carinho, solidariedade. Mas palavras de admoestação, tipo:
— Não contrarie seu pai. Ele não tem paciência com ninguém.
— Eu não fiz nada, estava lendo uma revista. Ele puxou a revista de minha mão e começou a me bater dizendo. Não quero você lendo essas porcarias. Eu já falei muitas vezes. Agora você vai aprender. E começou a me bater feito louco.
EM VERDADE a falta de paciência de Paizão Coisinha era devida ao desarranjo emocional, à confusão mental, á falta de paciência própria da intolerância resultante do abuso de drogas analgésicas à base de codeína e outros opioides que ele cheirava, quando chegava à noite, após o expediente no consultório. A facilidade com que comprava cocaína na farmácia do Tomazinho, contribuía para o estado deplorável de estresse no qual sempre se encontrava.
A FALSIDADE afetada da entonação de voz de Mãezona, dizia, enquanto acariciava minha cabeça dolorida:
— Meu filho, disse ela, você gosta mesmo de sua mãe???
— Gosto sim, você sabe. Por que pergunta???
— Porque sua mãe quer ter certeza de que você está dizendo a verdade. E continuou:
— A mamãe vai fazer tudo por você, mas você não vai nunca querer sair de perto dela. Você ama mesmo sua mãe???
— Sim, amo.
— Nunca vai querer sair de perto de mim para toda a vida??? “Formiga quando quer se perder cria asas”, lembre-se disso. Ficar sempre em casa é a coisa mais certa que um filho que gosta da mãe precisa fazer. Não leia mais essas revistinhas na vista de seu pai.
A MÃO DELA continuava a me acariciar a cabeça. Mas a tonalidade de voz denotava uma afirmativa e perversa falsidade na entonação. Eu estava à mercê de suas intenções, quaisquer que fossem. Ela não se fez esperar:
— “Levante a cabeça, olhe bem dentro dos meus olhos, respire fundo”. Ao dizer isto, ela simultaneamente soprou uma vasta quantidade de pó amarelado (ou acastanhado, ou alaranjado, não lembro exatamente porque fazem seis década). Minha visão se turvou, quer pelo pó, quer pela surpresa do súbito susto.
— Tossi, passei a mão no rosto enquanto sentia a visão turvar. A voz dela ficou longe.
— Respire, respire. Respire fundo. Assim.
DE REPENTE fui lançado numa outra configuração perceptiva. Como se tivesse sido ejetado de um lugar para outro que desconhecia. A intensa estranheza durou alguns momentos, os quais não sei definir quanto tempo. Um mundo paralelo me capturou no ciclo quântico do estranhamento. Quando a consciência de que estava a retomar desse outro estranho lugar ao qual subitamente fora conduzido, voltei à realidade de uma esfera familiar hostil, onde havia uma exuberância de atitudes de hostilidades, as quais mantinham minha vida em risco. Eu estava de volta ao larbirinto.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 01/03/2023