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A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA — SALVADOR DALI (1931)
A PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA — SALVADOR DALI (1931)

EU ESTAVA SEM NENHUM controle sobre minha própria vontade. Isso do ponto de vista externo. Em meu interior eu sempre soube o que querer. Não me haviam consultado sobre se eu queria ou não ter sido comercializado por eles para quem quer que seja, Maçonaria ou outra qualquer instituição, secreta ou não. Não me perguntaram se eu queria ser o “cordeiro do sacrifício” ou “o bode expiatório” da família. Era como se eu fosse uma coisa e eles pudessem mudar-me de lugar ou de função ao bel prazer. Eu não me convenci, em nenhum momento, que deveria submeter-me a esse controle satanizado.

QUE PODERIA EU FAZER para defender meus direitos de viver segundo minhas escolhas??? A mulher a qual eu deveria chamar de mãe levou-me até a Cooperativa próxima de onde morávamos. A Cooperativa tinha uma sequência de quadros que mostravam dois burros atados por uma corda. Eles se dirigiam em direções opostas. cada um visando uma moita de capim que não estava ao alcance de ambos. Não conseguem avançar em direção a elas para matar a fome.

OS BURROS VOLTARAM-SE um em frente ao outro e parecem compreender que precisam dirigirem-se simultaneamente, primeiro à uma, depois à outra touceira de capim, ambos numa mesma direção. O cartaz com a sequência de quadros estava encimado por um título: “Cooperação: — Até os burros compreendem”. Ou seja: quando o burro da esquerda se une ao da direita, nenhum dos dois vai brigar ou passar fome.

ELA DEPOSITOU MINHAS economias. Passou-se um tempo sem que se falasse mais nisso. Eu estava tranquilo porque, se o dinheiro do comércio de revistinhas e figurinhas, umas que se valorizavam mais que outras, continuasse prosperando, rendendo juros, eu estaria com as mensalidades de minha futura faculdade garantidas. Eu continuei depositando as economias na caderneta de poupança da Cooperativa. Um dia Mãezona me chama para dizer:

— Meu filho, seu pai está passando por dificuldades e seus irmãos estão precisando comprar roupas e sapatos que já estão gastos. Ele mal está conseguindo no consultório, dinheiro para manter as compras no mercado. Você precisa ajudar seus irmãos com suas economias. Quando esse período passar, ele deposita seu dinheiro outra vez na cooperativa. Eu sei, você quer garantir seus futuros estudos. Mãezona, perversamente sabia de antemão que jamais esse dinheiro seria outra vez depositado em minha caderneta de poupança. Novamente ela e o marido postulavam que eu sacrificasse minhas economias em proveito de seus demais filhos. Confiavam em minha perda de memória.

MEU AMIGO ZUCA continuou a fazer incursões na sala proibida do Colégio do professor Juracir nos finais de semana em que o vigia não estava presente. Nós, os meninos travessos da rua, só sabíamos se o vigia estava ou não presente quando pulávamos as grades de ferro do Tribunal Regional Eleitoral e, após subir as escadas de um dos pátios, nos ajudávamos a descer em direção ao acesso ao interior do colégio.

O PROFESSOR JURACIR continuou a depositar o envelope com parte do dinheiro de matrículas e mensalidades, que certamente depositaria em banco na 2ª feira. Zuca continuava a me abastecer de grana que eu usava para negociar HQs, álbuns, figurinhas, e demais “artigos do dia” que se fizessem presentes. Continuei a abastecer a caderneta de poupança e a mãe continuou a me roubar o dinheiro depositado com alegações, posteriores aos depósitos, as mais diversas. Eu dizia que não estava certo, dessa forma eu não conseguiria nunca financiar meus estudos no futuro próximo. Ela, raivosa, reagia às minhas reclamações. Mandava-me, alterando a fala, calar a boca e dizia:

— “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”.
— Mas eu não roubei nada, disse, quem me deu o dinheiro foi o Zuca.
— Mas você aceitou, é quase a mesma coisa.
— E quem vai financiar meus estudos??? Nessa cidade só tem uma faculdade de direito.
— Depois seu pai, quando a situação melhorar, deposita outra vez seu dinheiro.
— Isso é mentira. Ainda hoje ele não depositou o dinheiro da outra vez.
— Cala a boca, pare de ser ruim. Com ou sem sua aprovação eu vou usar seu dinheiro.

EM PRINCÍPIO EU QUERIA estudar Astronomia. Mas, devido talvez às constantes lesões na cabeça resultado das agressões covardes de Paizão Coisinha, eu tenha decidido que dificilmente poderia concorrer com estudantes de matemática e geometria que tinham a ajuda familiar em outros centros urbanos mais desenvolvidos. Concorrer num vestibular com alunos mais preparados em cursinhos, como ganhar essa maratona???

DESCONFIEI, TEMPOS DEPOIS, que as constantes remoções de minhas economias da caderneta de poupança na Cooperativa, tinham por finalidade, entre outras, me impedir de sair da proximidade dela, ou de ter uma esperança futura de investir numa vida fora da perversa determinação deles em me prender nas pesadas correntes que algemavam meus pés na cultura da sala de jantar das refeições, da hora do almoço, sem que parassem de me conectar aos rituais de mentiras, malignidade e atrocidades costumeiras.

PAIZÃO TINHA A INTENSA determinação de me boicotar de todas as formas possíveis. Uma das razões desse boicote era o fato de eu não esconder minha desaprovação aos atos dele, um dos quais estava em sentar os filhos no colo, quando terminava o expediente no consultório, e ficar a excitar o pinto no bumbum deles, até o pijama ou a calça ficar borrado de esperma. O odor de porra se espalhava na sala, mas ele parecia ignorar que as pessoas tinham olfato e sabiam o que estava a ocorrer.

EU NÃO ACEITAVA ESSA atitude perversa de jeito algum. E conversava com eles, o segundo e o terceiro irmãos, dizendo que aquilo não podia estar certo. E que se um dia eu pudesse, diria a todo mundo o que estava acontecendo naquela família que se tornara um antro de perversões covarde dele, para com meus demais irmãos. Estes, diziam a Paizão que eu estava prometendo denunciar essas condutas pedófilas. Eu não conhecia ainda essa denominação para adultos que, de alguma forma, submetem crianças às suas taras.

PAIZÃO FAZIA POUCO de minha pretensão futura em denunciar suas atitudes comportamentais, as mais descaradas e perversas, desde que causariam sequelas futuras no desempenho emocional daquelas crianças, meus irmãos e irmãs, que estavam emocional e intelectualmente sendo sabotados de modo perversamente precoce. Ele me odiava desde a mais tenra infância, porque eu não aceitava as incursões de seu pinto em meu bumbum. Meus gritos angustiados, desesperados, ao sentir que o membro de Paizão Coisinha se excitava ao roçar na bunda, provocavam nele uma ira altiva e arrogante contra essa reação que visava defender-me de suas agressões de pederasta. Ele me jogava longe, no chão de cimento da sala. O que provocava inúmeras escoriações. Por vezes Mãezona demorava vir em meu socorro.

OS ESPANCAMENTOS SE sucediam. As bolinhas prateadas de mercúrio em meu café e, por vezes, em minha refeição de almoço, provocavam dores de cabeça excruciantes. A dor era tão intensa que pensava que não ia sobreviver. Os ossos do rosto eu tinha a impressão de que a qualquer momento poderiam quebrar. Eu não tinha certeza de que sairia vivo da sensação de desmaiar. Quando abria os olhos, lá estava ela, Mãezona, enchendo meu rosto de Vick VapoRub. Com gestos delicados ela passava as mãos sobre minha face e cabeça doloridas. Parecia, por vezes, uma Nossa Senhora a me consolar. Mas era uma soberana de um lugar, de um lar infernal.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 18/02/2023
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