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RODA INFANTIL — PORTINARI (1932)
RODA INFANTIL — PORTINARI (1932)

CRESCIMENTO MESMO, sem ser o físico, inexistia. Nem intelectual, emocional nem espiritual. A parte interna da personalidade dela e de seus familiares estava estagnada. Havia a volta ao mesmo lugar no qual a possibilidade de evolução mental esbarrava numa espécie de arrecife onde todos ficavam, náufragos, sem possibilidade de analisar espaços sensíveis, fenomênicos, adiante um palmo do nariz. Espaços de ganho em conhecimento, sabedoria, ciência, cultura. Não, mas sempre havia lugar para bobagens e ignorância.

DESEJAVAM TALVEZ que outros educassem seus filhos porque, eles mesmos, não se haviam educado, nem tiveram alguém que soubesse orientá-los. Nada era responsabilidade daquela mulher perdida no tempo e no espaço de seus delírios. Seu espírito era completamente desnorteado. Espírito é energia. Energia emocional. Energia transmitida por fótons??? O fóton é indiferente à interação eletromagnética. Viaja mais rápido do que qualquer outra partícula. O autor chama o leitor a especular: aceitemos o fato de que somos seres de luz. Quanto menos luz, menor a consciência.

A LUZ É FORMADA por fótons. Um fóton é um “fardo” de energia que transporta certa radiação eletromagnética. Paizão e Mãezona tinham perdido a consciência do que significava ser pai e mãe. Para eles valia tudo para continuar mais um dia fazendo de conta que eram pai e mãe de família. Não eram. Não sabiam gerir a economia, a cultura, a moral, a educação intelectual da prole. Se não tiveram essa educação e cultura, como poderiam transmiti-las???  

PERDERAM-SE DE SI mesmos. Da parte melhor de cada um deles. Como poderiam transmitir segurança aos filhos se não tinham confiança neles mesmos??? Restava-lhes impedir-me de crescer. Meu crescimento intelectual era um perigo para o caos gerado por eles. Não tinham força emocional para criar condições de educar. Era incompreensível para eles que eu, tendo sido gerado da bagaceira do esperma e do óvulo deles, pudesse querer algo diverso de suas limitações. Tinham raiva, e demonstravam isso, por eu querer realizar meu potencial literário, criativo, intelectual. Não aceitavam eu querer ser eu, e não uma cópia de suas limitações.

SE EU PUDESSE alcançar um estágio racional mais adequado às possibilidades naturais de meu intelecto, eles se sentiriam rebaixados na atuação de pais. Na avaliação deles, poderiam ser humilhados por seu próprio filho diante da plateia para a qual atuavam: seus vizinhos, as empregadas domésticas, amizades próximas e distantes, a prole que se auto-observava. Eu, ainda que muito jovem, estava sendo pressionado cavilosamente, ardilosamente, por ela que queria manter-me num estado de penúria física, uma pedra bruta na qual ela pudesse sempre praticar sua nefasta e paupérrima empatia de mulher que cursou, quando muito, o segundo ano ginasial. Mas a sabedoria de vida não se adquirem bancos escolares. É inata em todo ser humano. Não neles.

ELA TINHA REALIZADO o feito de se casar com aquele sujeito, Paizão desavisado, para dele se aproveitar, por ser tão bronco quanto ela. Ou mais. Cultura escolar não quer dizer muita coisa. Mas ela valorizava sobremaneira a própria ignorância emocional. Uma mãe que sempre se recusava ter mínima empatia com um filho, não merece essa designação. Não é mãe, é bruaca, jararaca, mariposa, megera, canhão. Tio Nenê certa vez me disse:

— O que teus pais querem é se preservar de tua proximidade. Eles não têm planos de te aceitar. Você quer ir morar em São Luís, na casa de seus primos e de seus tios??? Lá você vai sentir-se melhor, mais em casa. Eles não vão mudar de atitude.  

MÃEZONA TINHA um tipo de energia cativante. Por mais perversa que fosse em suas intenções de me travar o desenvolvimento, seus fótons de luz brilhavam quando queria enganar e transmitir um efeito de afeição e amabilidade. Supostas. Dizia ela:

— “Quem com suas boas Marias faz, em sua casa está em paz”. Ela não queria me perder de vista. Não admitia que um filho dela pudesse se afastar de sua proximidade, com ou sem seu consentimento. A conversa que tive de ir para São Luís habitar tia Larissa e tio Nenê, não teve futuro. De repente, não mais que de repente, ela estava a me acariciar, coisa que nunca fazia, e a dizer que mãe e pai, por pior que fossem (ela movia nervosamente as mãos, como se estivesse querendo amarrar os dedos) são insubstituíveis. Dizia que parente, por melhor que fosse, não substitui os pais e os irmãos com quem eu já estava habituado. Acolher-me em seu regaço, só numa ocasião como essa.

TIO NENÊ SÓ conversava comigo quando nenhum deles estava por perto. Mãezona era intensamente vigilante em seus domínios. Intensamente repressora. Eu, apesar de saber que o larbirinto era e sempre seria um lugar hostil, pensei de mim para comigo que, por melhor que fosse a mudança de ambiente, eu, de alguma forma continuaria hostilizado. Um estranho no ninho dos filhos ciumentos dos pais, meus tios.

— Tio, disse eu, de algum modo relutante, eu vou ficar aqui mesmo. Constrangido por não aceitar o convite dele, agradeci e permaneci sob a chibata perversa de uma realidade familiar que eu já conhecia. Não precisaria adaptar-me a outro convívio familiar. Onde certamente, por melhor que fosse acolhido, teria problemas de rejeição.  

EU QUERIA garantir menos sofrimentos e injúrias em meu futuro, mas estava difícil de convencê-los que não se protege um filho dos perigos do mundo agindo como eles agiam para comigo. Certo dia eu me acerquei do colo dela com um farto maço de dinheiro. Abracei-lhe as coxas tentando não ser rejeitado, porque por vezes ela simplesmente me afastava com gestos de mãos e braços de quem queria distância de mim. Repelia, com frequência, minha aproximação. Dessa vez não aconteceu a refutação de minha presença, porque talvez tivesse lhe causado certa curiosidade aquele maço farto de papel moeda que causou surpresa nela e ao mesmo tempo interesse. Curiosidade.

ELA LOGO SE dispôs a me azucrinar numa tonalidade simulada de repreensão perguntando com presumida reprovação:

— Como você conseguiu esse dinheiro??? O interesse dela pelo dinheiro estava evidenciado pela maneira com que ela parecia valorizar no olhar e no apertar o maço da grana em mãos, que aconchegava contra o ventre.  

EU TERIA DE LHE contar toda a história que até aquele momento eu mantive em silêncio. Antes de respondê-la é preciso explicar ao leitor que o Zucca, um amigo meu de cor, que morava próximo à beira do rio Parnaíba, vinha juntar-se à turma de meninos da vizinhança que nada tinham a fazer, senão explorar as redondezas. Nos finais de semana lá estávamos, a turma de garotos a brincar de esconde-esconde, quando nos infiltrávamos nas dependências do Colégio Leo XIII que nos finais de semana ficava com as salas de aula e o grande pátio de recreio, vazios. O vigia nem sempre estava por lá.

ÉRAMOS INTRUSOS a penetrar um território inexplorado, como se fôssemos exploradores de cavernas, entrávamos nas salas de aula abandonadas, corredores, banheiros, e buscávamos penetrar também no aposento principal da secretaria que estava com portas trancadas a sete chaves. Para ter acesso ao lugar em que, na nossa imaginação seria o local mais misterioso do colégio, buscávamos uma entrada de acesso aos segredos da hermética câmara ou recinto proibido: a secretaria do colégio. Não era muito fácil a entrada em suas dependências, mas conseguíamos através de uma espécie de coreto contíguo ao Tribunal Regional Eleitoral. Após escalarmos as grades pontudas em direção ao interior do saguão de entrada, o colégio, quando o vigia não estava, era nosso.

HAVIA UM ACESSO à secretaria, na forma de uma pequena abóbada, na qual mal passava com dificuldade, um corpo infantil que fosse bem magro. Um nicho através do qual o professor e diretor Juracir mantinha contato nos dias úteis, com seus subordinados, professores, funcionários e alunos. O acesso permitia comunicação entre a secretaria e a sala dos professores. O local era cercado de proibições de entrada. Era lá que a burocracia da escola guardava o papelório e os professores se reuniam e os arquivos de alunos, pagamentos, recebimentos se faziam por lá.

TENTÁVAMOS PENETRAR, um e outro garotos, pela pequena arcada há um metro e meio acima do rodapé na parede. Enquanto tentávamos a proeza de passar para o salão proibido, eis que chega o vigia e, após interrogar sobre o que fazíamos ali, que era proibido, como havíamos entrado, que iria dizer aos nossos pais que certamente seríamos castigados. Usei o argumento que estávamos apenas a brincar, que nada demais havia acontecido, E que, já agora, estávamos de saída. E logo nos dirigimos a passos apressados, ao caminho de volta. De alguma forma essas incursões endereçavam-me às pinturas de Portinari que mostram crianças a brincar:

— Vamô, vamô, logo, eu disse. A reinação terminara sem que tivéssemos conseguido desvendar os segredos da sala proibida: a secretaria do colégio. Combinamos depois, que numa próxima vez fosse possível penetrar naquele aposento místico, hermético. Os pequenos Cavaleiros da Távola Infantil retratada por Cândido Portinari saíram fora da proximidade do vigia o mais rápido possível.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 17/02/2023
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