INTERIOR DE POBRES — LASAR SEGALL (1916/21)
INTERIOR DE POBRES — LASAR SEGALL (1916/21)
COMO NÃO PUDERAM, Mãezona e Paizão Coisinha chegar a um acordo sobre a miserável condição familiar??? Paizão tentou. Eu o vi falar com ela que não poderia dar conta de mais despesas, todos os anos, com ela parindo um filho a mais. Eu o vi reclamar que estava esgotado fisicamente, que ela reconsiderasse sua deliberada atitude de parir todos os anos, como se fosse um animal de rebanho. Mas a criatura com quem se casara era uma reprodução ao vivo da estatueta de calcário de há 28 mil anos antes de Cristo: a Vênus de Willendorf.
MÃEZONA SE TINHA por uma deusa-mãe reencarnada do paleolítico superior. Uma deusa pagã, uma divindade da fertilidade com origem nas tribos nômades de caçadores dos chamados povos indo-europeus. Seu sobrenome alemão a fazia sentir-se superior aos povos nativos, negros trazidos pelos navios tumbeiros, e portugueses que aqui aportaram trazidos nas caras-velhas de Cabral. Ela certamente se achava portadora de poderes ocultos. E realmente os tinha. Cada filho parido era uma forma de se empoderar dos processos ocultos decorrentes da germinação do feto, de seu desenvolvimento até ser repelido de seu interior e tratado como um boneco ou boneca vodu em seus rituais de direcionamento energético.
TUDO QUE ELA DESEJAVA era viver essa sensação de empoderamento, oriundo de uma ancestralidade matriarcal. Ela não precisava de estudo, de letramento, de escola: ela tinha o poder absoluto de ficar grávida todos os anos. Os filhos eram formas de ter fiéis para cultuá-la. Ela desejava partejar seguidores concebidos para adorá-la. Pelo menos até onde ela pudesse ter pleno controle sobre as crias, até uma certa idade. Para ela bastava vivenciar, a cada 365 dias, o poder feminino do estereótipo associado às deusas-mães do paleolítico. Ela representava a máquina de montagem em série, a grande fábrica de mão-de-obra barata para o enriquecimento supremacista da industrialização, num país subdesenvolvido.
EM SEU DELÍRIO INTERIOR, ela representava a criação e a sustentação do universo. Ela trabalhava para a prosperidade dos que usariam, futuramente, seus filhos para o enriquecimento próprio. Ela era uma supremacista branca, descendente dos deuses nórdicos, a “Grande Mãe” dos seguidores da Wicca. Ela ensinou as filhas uma linguagem própria, na qual falavam entre si, quando não queriam ser entendidas pelos filhos e pessoas que as cercavam.
PAIZÃO COISINHA ESTAVA inteiramente “comendo na mão” dela e de suas filhas Wiccanas. Seus argumentos em prol de uma sensatez familiar, não repercutiam. Afinal, ele, Paizão, não pertencia aos antepassados da raça nórdica à qual ela, supostamente, pertencia. Certo dia perguntei a ela se não sentia vontade de viajar, conhecer outras terras, sair do cercadinho da filharada. A resposta dela não se fez esperar. Tudo que eu sempre quis na vida foi ter “meus’ filhos. Criança, eu puxava conversa com ela no sentido que ela pudesse me ver. Eu escrevia historinhas influenciado pelas HQs que gostava de ler. Ela sempre jogava uma balde de água fria em minha suposição de que ela poderia dizer que gostava de lê-las. Eu torcia para que ela me incentivasse a escrever.
MAS, AO CONTRÁRIO, Mãezona dizia que escrever, desenhar, ou qualquer outra forma de arte era uma tarefa que era para loucos. Gente esquisita:
— “Wagner, um músico alemão, costumava se vestir com roupas com tiras de pano de várias cores, era sonâmbulo, não acredita em deus...”. Quando Mãezona hesitava em seu falar, eu desconfiava que ela estava inventando história para me enganar. Nessas ocasiões ela parecia concentrar-se em algum lugar dentro dela para achar argumentos que me convencessem a legitimar o que ela dizia.
EU FICAVA A IMAGINAR o porquê de suas hesitações narrativas. Por que ela parecia admirar sobremaneira as falas do marido quando esse, no exercício do ofício de dentista, costumava, excitado, elogiar o ditador alemão Hitler e suas conquistas quando do início do II° Conflito Mundial. Paizão parecia se fortalecer, nessas ocasiões, com relação ao respeito dela. Respeito que normalmente ela não tinha por ele. Ele parecia temê-la, talvez porque ela tivesse conhecimento de coisas sobre o passado dele que ele queria que não fossem reveladas. A magia wicca possivelmente tivesse algo a ver com isso.
ELE, PAIZÃO, SE TINHA por um ser inferior a ela??? Acreditava que ela, na real, provinha das sagas heroicas dos deuses vencedores e bárbaros indo-europeus??? Porque ela não me queria um possível escritor??? Porque combatia minha produção literária infantil por medo de que eu pusesse, futuramente, através de meus escritos, denunciar a perversidade familiar com que seus demais filhos eram motivados a me ver??? Eles me viam enquanto uma ameaça familiar que tirava o “pão da bocados irmãos menores”.
EU MANTINHA UMA forte admiração pela cultura judaica, devido não apenas às leituras das HQs sobre as histórias do Antigo e do Novo Testamentos. E a cultura dos deuses nórdicos e do nazismo tinha os judeus enquanto inimigos comuns. Os padres e monitores das aulas semanais de catecismo na Igreja do Amparo, costumavam distribuir pequenas e coloridas passagens épicas e heroicas de bravura das personagens bíblicas. Eu queria imitar a vida desses personagens, mas a realidade da educação familiar me coagia a seguir caminhos bem diferenciados.
UM ACERVO DE EVENTOS familiares e sociais, nos quais eu observava o comportamento rebuscado, confuso e indeciso dela, me conduziu à uma falta de confiança irreversível, nela e no marido. Condigno a essas observações, futuramente concluí que aquela mulher a quem eu, apesar de tudo gostava e chamava mãe, não era mais do que uma alma penada que já havia sido passageira da Barca de Caronte, centenas, talvez milhares de vezes, através dos séculos, quem sabe milênios, cruzara o Hades, sempre a alimentar a megalomania daqueles grupos de pessoas que têm a crença enganosa de que são superiores aos demais seres humanos. Que esses seres humanos são dominados por membros supostamente superiores, particularmente dotados de privilégios genéticos advindos de uma origem racial, com evidências científicas adulteradas, conservadoras e culturalmente colapsadas. Falidas.
(P.S: TEXTO DO LIVRO: "ONDE A LUZ DA LUA ME VÊ BRINCAR").
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 08/02/2023
Alterado em 09/02/2023