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OS COMEDORES DE BATATA — VAN GOGH (1885)
OS COMEDORES DE BATATA  — VAN GOGH (1885)

É CERTO QUE as leis existem para punir procedimentos, comportamentos que estão errados. Mas, quando as leis não punem os acontecimentos familiares que não estão visíveis aos olhos de pessoas que não os veem, e de outras que os veem, mas não têm disposição para denunciá-los??? Vizinhos sabiam as barbaridades que aconteciam na sala de estar da família de Paizão Coisinha e de Mãezona, que se fazia de ceguinha. Ela não via nada. Impressionava-me sua altivez e hipocrisia. Estava praticamente ao lado da rede de tucum onde Paizão tinha orgasmos nos bumbuns dos filhos. Não estava nem aí.

A TRANSFERÊNCIA do magnetismo privado, unida à força do Inconsciente Familiar, exercia-se em direção a um único objetivo: o de me atingir com hostilidades crescentes, constantes, contínuas: manifestas ou silenciosas. Atitudes domésticas, provocavam em mim um persistente mal-estar. Uma sensação de me sentir sempre inoportuno, inconveniente, deslocado, inadequado.

TODO O TIME de meus pais (se é que é justo esta forma denominá-los) os nove irmãos, assim como os reservas eventuais, parentes, amigos e vizinhos em visitas, renovavam uma pressão insuportável dentro de minha mente indefesa a ataques silenciosos de hostilidades. Lembro-me desses familiares na mesa. Na hora do almoço, na hora do jantar. Ao lembrá-los, lá estão eles, personagens no quadro de Van Gogh: os comedores de batatas. Os antropófagos que devoravam os filhos todos os dias, saboreando a carne tenra, como se quisessem absorver suas essências e depois jogá-lo na lixeira.

A CIDADE de Theresienstadt estava a se transformar numa capital de transformistas. Num reduto satanizado de crianças traídas. Crianças que cresceriam aceitando essa condição vivencial nefasta. Quando a criança é traída por uma farsa de educação escolar, familiar e dificuldades sociais de se adaptar à uma sociedade hostil, de competitividade covarde, onde alguns têm privilégios e outros apenas malefícios e sortilégios, essa criança, ensinada a se dar mal, vai viver no sofrimento das tentativas de sobrevivência.

MÃEZONA, RAINHA e mãe da zona familiar, administrava a energia do Inconsciente Coletivo Doméstico para melhor sugar a vitalidade física, mental e roubar de mim a consciência pessoal de que tinha direito sobre à própria liberdade de ser uma criança diferenciada da vontade domesticada dela. Vontade essa de dirigir as intenções e quereres de cada um, segundo suas percepções de cidadã da cidade troglodita de Theresienstadt.

QUANTO MAIS traumatizada a criança ficasse, mais ela teria como mostrar o quanto era boa e compreensiva. A oportunidade de colocar panos quentes nas feridas só poderia acontecer se a criança tivesse sido espancada, de alguma forma hostil, traumatizada. Ela sugava energia dos traumas que enfraqueciam física e mentalmente o filho. Eu tinha plena consciência de que aquele não era o papel que desempenharia uma mãe que fosse realmente materna.

O ATO DE PENSAR a natureza sádica das barbaridades das quais eu era vítima, de alguma forma me confortava. Afinal eu tinha um lugar mental, espiritual, íntimo, no qual nem ela nem o marido podiam chegar para me reprimir e maltratar. O ato de pensar me distinguia daqueles animais de racionalidade duvidosa.

APESAR DAS tentativas daquela mulher acabar com minhas melhores possibilidades, negando-me uma educação de qualidade, no lar e na escola, eu gostava dela. Afinal aquela coisa lésbica, sem feminilidade, sem urbanidade, suavidade ou erudição, aquela coisa era minha mãe. Havia-me parido de suas entranhas. Havia por certo vivido os traumas que uma mulher troglodita, habitante de buracos escavados nas rochas, sob a dominação de um hominídeo temeroso, quase um gorila, eu imaginava quanto tempo a havia submetido às suas brutalidades. Ela certamente, de alguma forma, ainda pertencia ao povo que habitava as cavernas.

A DIFERENÇA estava em que as cavernas agora eram mais sofisticadas. Contavam com eletrodomésticos, sofás, Tv, fogão a gás, armários decorativos, reprodução de quadros de pintores de talento inigualável, prateleiras de livros em estantes. Mas a essência daquela mulher brutal e brutalizada não havia mudado quase nada com os séculos dos séculos que a separavam da mulher antiga habitante de buracos nas rochas.

Eu, POR VEZES, me divertia com ela. Estava ela na mesa da sala ensinando uma aluna em aula de corte e costura. Habitávamos a casa na rua Senador Teodoro Pacheco. A habitação tinha uma longa extensão ambiental que ia da porta da rua até o quintal. Pequena parte dela era encoberta. A mais ampla, onde havia um tanque, se prolongava até o terreno onde estavam o banheiro e a retrete.

ANOITECIA, A LUA estava atraente e harmoniosa no céu. Eu brincava na área a céu aberto e corria até a calçada na rua olhando o céu de onde se irradiava o luar. Não passava eu de uma criança, mas sabia perfeitamente que havia apenas um satélite terrestre e não dois. Ao olhar a lua no alto, da calçada na rua eu a avistava no céu claro da noite que começava. Eu estava vendo “uma” lua. Então eu corria, através da área coberta do corredor, até o amplo espaço descoberto do qual se descortinava a área da sala e os quartos da casa.

ENTÃO, DESTE lugar eu olhava para o céu e via no alto “outra” lua. E chamei com grande convicção Mãezona, enquanto afirmava:

— Mãe, venha ver. No céu estão duas luas. Duas luas. Não é só uma. A lua são duas. Uma deste lado e outra que pode ser vista lá na rua, da calçada. Venha ver se você não acredita. Venha ver. Eu tenho certeza: são duas as luas.

MÃEZONA, DO alto de sua cultura e de seus conhecimentos inexistentes de astronomia, ficou, por momentos, convencida de que, realmente, as luas no céu poderiam ser duas. Eu a segurei por uma das mãos e mostrei, da ária aberta da casa, uma lua no céu:

— Você está vendo, veja, ela está ali. Logo depois a puxei pela mão, atravessando a área do corredor, até a rua. Chegando na calçada apontei para o céu a segunda lua:
— Veja. O dedo apontando para o alto na extremidade superior do braço esticado, mostrei com toda convicção:
— Aquela outra lua estava lá do outro lado. Esta que estamos vendo agora, é outra. São duas as luas, tá sabendo. Esta e a outra.

MÃEZONA PAROU para pensar e disse, interrogativa:

— Será que é mesmo??? São duas as luas??? Demorou um bom tempo para ela se convencer, após interrogar-se a si mesma, que a lua era mesmo apenas uma, vista de dois ângulos diferentes.

EU SORRI DA ingenuidade dela. Daquela mulher grandona, cheia de emoções empoderadas de vontade de dominação. Ela, em seu modo de ser, talvez amasse tanto a mim, que fazia de tudo um pouco para que eu ficasse, nunca saísse de perto dela. Sua ignorância se mostrava escancarada. A inocência estampada no rosto interrogativo de até então, pasma:

— Será que são mesmo duas as luas e eu nunca tinha visto isso??? A complexidade inquisitiva da pergunta se expressava em seu rosto, em sua cara. Logo ela se deu conta de que a estava zoando, e disse:
— Para de besteira, menino. Não pode haver duas luas. Mas, por não poucos momentos, ela acreditou mesmo que as duas luas existiam.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 29/10/2022
Alterado em 18/12/2022
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