Textos

"COMEDIANTE" — PAUL KLEE
“COMEDIANTE” — PAUL KLEE

NENHUM MEMBRO daquela família me via com bons olhos. Todos estavam plugados no fato de que eu era uma ameaça à sobrevivência material deles, uma ameaça de dividir um pouco da pobreza familiar comigo. Pretendiam saber, melhor do que eu mesmo, o que era bom ou mal para mim. A força do Inconsciente Coletivo Familiar era superlativa. O que eu podia contra ela??? Talvez estivessem todos com medo de que eu cumprisse minha promessa de um dia revelar toda aquela insana relação de um pai pedófilo e de uma mãe conivente com embuste familiar: denunciar seus corações e mentes infectados por aquela energia tenebrosa que os envolvia nas sessões de transtorno da preferência sexual paterna.

EU NÃO TERIA nunca um lugar em que pudesse ser ouvido e visto em minhas reivindicações de oportunidade de vida. Eu tinha em mente que tudo poderia terminar bem. Se eles não estivessem tão fanaticamente polarizados. O ódio de Paizão por mim, sua implacável concentração na negação de qualquer iniciativa minha, mesmo que ele dela se beneficiasse, não permitia que ele me visse como seu aliado.

AO VOLTAR DO RJ, Mãezona se dedicava a fazer valer seu tempo ensinando uma turma de alunas a modificar com pinças quentes, aquecidas em pequenas lamparinas à base de álcool, abrasadas por sobre um pavio, a forma de bonequinhas tipo Barbie, transformando-as em bailarinas, príncipes, nobres, reis, rainhas, bailarinas, anões, espadachins, palhaços.

TALVEZ ELA TENHA feito esse curso no intuito de, não apenas se divertir manipulando bonecas manualmente, já que não podia manipular como queria, a direção para a qual pretendia que eu seguisse. Depois da desfiguração das pequenas manequins, era só uniformizar as bonecas, vestindo-as a contento com calcinhas, saiotes, sapatilhas, pulseiras, culotes, colares, pulseiras e enfeites, finalizando com retoques de pintura nos olhos, nos lábios, nas unhas e sobrancelhas. Após sobrepor artificialmente os supercílios, ou desenhar as sobrancelhas, tecia os cabelos com certo tipo de linha, com os fios das quais moduladas as cabeleiras: lá estavam suas criações manufaturadas. Seus bibelôs.

NESSE PERÍODO, após a volta da viagem, ela ficou outras vezes grávida, até o décimo filho nascido vivo, o Coisnha Jr. Num domingo de sol, fazendo-se exasperar com a demora do marido e filhos que saíram para se divertir na coroa de areia do rio Parnaíba que, nos meses dos “b-r-o-b-r-ó-s” (setembro, outubro, novembro, dezembro) atraía centenas de pessoas que iam se bronzear próximas aos quiosques de palha onde a cerveja gelada e a cachacinha com tira-gosto de petiscos, os fazia parecer adultos. Marmanjos embebedando-se, dando vazão às suas temeridades, seus cansaços, complexos e recalques, em papos de grupo onde a pobreza de espírito os fazia embarcar na nau dos náufragos das piadas sexistas, machistas, bem ao gosto do servilismo baixaria, estrutural, que escondia a impotência de suas ideias e a morte de qualquer ideal que não fosse habitual, ordinário, vulgar.

MÂEZONA, LÁ pelas dezesseis horas, saiu de casa acompanhada por mim e pela Zélia, uma moça do interior que era hóspede de casa e viera para estudar na capital do Estado. Ela olhava para a barriga inchada, grávida, próxima à data do parto e abanava as mãos sobre ela, injuriando com palavras ofensivas, o embrião que estava próximo à data de ser vomitado de suas entranhas que o amaldiçoavam. Sim, porque o Coisinha Jr., prestes a nascer, estava certamente empatizando todo aquele discurso de rejeição que ela fazia com relação à Paizão e ao Coisinha que estava para nascer. Ela agora, depois que o marido arranjara uma amante, mostrava-se disposta a verbalizar hostilidades contra ele, em qualquer oportunidade que aparecesse.

DÉCADAS DEPOIS de parir Coisinha Jr., esse se revelou uma criatura desmiolada, frágil, que ameaçava suicidar-se para fazer chantagem emocional com o agora casal idosos que eram seus pais. Coisinha Jr. se refugiava no apartamento de um irmão em Brasília. Depois, pediu guarita na casa de Fernão e Vanja, primos que haviam se casado e moravam em Natal. Algum tempo depois saiu brigado de lá porque queria apossar-se da parte anexa da casa que o casal havia liberado para ele morar, alegando que haviam doado a casa para ele nela instalar uma academia de musculação. O Coisinha Jr. Era mesmo muito doidão.

PAIZÃO E MÃEZONA não tinham mínima noção da responsabilidade superlativa que é planejar trazer uma criança para o mundo. Esse mundo cão. Este é um livro sobre verdades que raramente, ou quase nunca são ditas. Talvez porque tenham tudo a ver com a base frágil nas quais se erguem as palafitas da maior parte das famílias pequeno burguesas no Nordeste. O casal prosperava apenas em desditas, revés e tribulações.

PAIZÃO TARDIAMENTE se deu conta dos malefícios que processou em meu desfavor durante toda sua vida. Testemunho reiteradamente essa ocorrência do pedido de perdão ajoelhado diante de mim, com braços esticados para cima, e comparo à imagem do desenho figurativo “Comediante” obra ode Paul Klee. Ele, Paul Klee, afirmou: “A Arte Não Representa O Visível, A Arte Torna Visível”. O expressionismo tragicômico de Paizão Coisinha Comediante, ajoelhado diante de mim a repetir:

— Perdoe-me. Perdoe-me. Perdoe-me.

EU ME DETIVE A olhar surpreso, sem saber o que fazer: se me ajoelhava frente a ele e o abraçava também dizendo:

— Tudo bem. Não é preciso fazer isto. Levante-se. — Mas o amontoado de indignidades ao longo da vida que eu havia presenciado nele, não me permitiu senão me ausentar da presença patética que, de joelhos, me pedia perdão. Nesse momento surge, súbito, Mãezona. Ela quebrou a continuidade de um possível desfecho outro, que não meu simples afastamento da cena e de sua estranheza. Mãezona olhou para mim, interrogativa, enquanto o marido se levantara e se afastava rumo ao quarto. Essas personagens desse mundo familiar, que têm de moderno??? Eu testemunhava a precariedade do olhar racionalista sobre essas personagens, poder-se-ia dizer: modernas???

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 29/10/2022
Alterado em 12/11/2022
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.


Comentários