RETIRANTES — PORTINARI (1944)
RETIRANTES — PORTINARI (1944)
FICAVA PARA O próximo fim de semana a aventura de tentar penetrar no aposento proibido no Colégio Leo XIII do senhor professor e diretor Juracir. Isto se o vigia não estivesse por lá a impedir que tomássemos conta dos espaços internos vazios do Colégio no fim de semana, com foco na misteriosa Secretaria. Passou um tempo sem que nossas incursões tivessem continuidade. Até que aconteceu. Num desses fins de semana de traquinagem, o Zuca, exímio jogador de futebol, conseguiu vazar para dentro da misteriosa sala através do buraco arqueado na parede.
NUM PRIMEIRO momento ele não disse nada da proeza que tinha promovido lá dentro, ao sondar o interior da escrivaninha do professor Juracir. Ao voltar, apenas disse do que tinha visto por lá: ventiladores, arquivos, máquinas de escrever e calcular. Mas, eis que três dias depois o Zuca aparece em frente, na calçada da casa onde eu morava e me passa um envelope recheado com alguma coisa dentro dele, dizendo:
— É teu, fica pra você, eu não posso ficar com isso. Surpreso, abri o envelope grande de carta e vi que estava recheado de dinheiro. Pô, cara, por que você vem me dá isso??? É seu, como você conseguiu essa grana toda??? Por que não quer ficar com ela??? Ele logo respondeu aflito e apreensivo:
— Não tenho como ficar com esse dinheiro. Não posso gastar, vão pensar que eu roubei e não sei como vou dizer como consegui. Podem chamar a polícia, a maior confusão. Não quero não. Fica pra você. Estendendo a mão ele disse: pega, é seu. Abri a parte de cima da mesa do professor e vi esse envelope lá dentro de um escaninho. Vi que era dinheiro e escondi dentro do bolso da bermuda. Mas, se minha mãe me pega com esse dinheiro, vou apanhar até ficar de cama. Se for gastar, todo o dono de venda vai estranhar eu com esse dinheiro. E aí o bicho vai pegar mesmo. Fica pra você, faz alguma coisa boa com ele.
EU NÃO ME FIZ de rogado e disse:
— É como ter ganho um prêmio na loteria do Geraldão. Não sei também o que fazer com ele, mas vou encontrar um jeito de gastar essa grana. Pô, cara, obrigado mesmo. Tu não queres ficar mesmo nem com uma parte desse dinheiro??? Toma, leva uma nota pra comprar alguma coisa pra você. — Geraldão era o dono da loteria que vendia bilhetes sorteados todo fim de semana.
— Não, cara, eu não posso, nem quero ficar com isso. Só vai me causar problema. Fica pra você, eu não quero não. Deus me livre. Você pode saber o que fazer com ele. Fica pra você e seja o que Deus quiser.
ZUCA ERA UM CARA humilde, a mãe doméstica, o pai pedreiro. Eu compreendi que aquele dinheiro todo seria muito problema para ele explicar como tinha conseguido. Comecei a comprar HQs nas bancas de revistas na praça em frente aos dois cinemas da cidade. Comprava, lia, colecionava álbuns de figurinhas, comercializava elas nos fins de semana e as vendia também à molecada da escola. Gostava de ler todos: Superman, Batman, Capitão Marvel, O Fantasma, O Santo, Mickey Mouse, histórias góticas de terror, as histórias da vida dos santos, os contos de Poe, Histórias Extraordinárias, A Mulher Gato, Homem Aranha, Os Titãs, Liga da Justiça... Uma infinidade delas.
EU AS ESCONDIA nas prateleiras inferiores das estantes de livros. Mas aí a mãe me denunciou a Paizão Coisinha que disse não querer que eu lesse “essas porcarias” e não queria mais ver nenhuma delas em casa. Passei então a escondê-las nas salas subterrâneas, empoeiradas e cheias de teias de aranha do Tribunal Regional Eleitoral, na esquina da quadra onde eu morava, em meio do quarteirão.
O DINHEIRO SE acumulava e eu não sabia como guardar toda a grana que vinha da comercialização de figurinhas de álbum e revistinhas HQs. E é aqui que voltamos àquela pergunta da mãe:
— Menino, como você conseguiu todo esse dinheiro todo??? — A explicação justificava a fonte da grana sem que eu me fizesse vítima das circunstâncias. Então eu disse, meio que alegando inocência e ao mesmo tempo justificando-me:
— A senhora pode guardar para quando eu crescer??? Eu quero estudar Economia, e aqui não tem onde. Só tem uma faculdade de direito. — Estava pensando sim, em garantir meu futuro que eles, aquele casal sem nenhum compromisso comigo, esquecia que um dia eu precisaria sair daquela cidade sem possibilidades de ter uma educação de faculdade.
— Vou falar com seu pai, ver o que ele diz. Eu não tinha esperança de que aquele dinheiro voltasse um dia a ser meu. Eu estava lidando com pessoas que não tinham nenhuma empatia com meus objetivos futuros de vida. Ao contrário. Mas, vamos ver o que aconteceria com minhas economias.
UMA SEMANA SE passou. Ela então me chamou dizendo:
— Vamos depositar esse dinheiro, como você pediu, na Cooperativa aqui perto, vai render juros e você vai ter como pagar seus estudos quando tiver idade para fazer uma faculdade. A ideia era essa. Eu estava a querer sair daquela arapuca familiar onde não tinha nada para mim. Exceto agressões, rejeição, problemas. Conseguiria esse objetivo, sabendo que todos em volta estavam sempre a puxar o tapete de debaixo de meus pés??? Mãezona dizia que estávamos próximo ao dia de mudar para a nova residência. Como se isso fosse uma grande mudança de vida para melhor. Não era. Longe disso.
POSTERIORMENTE, Mãezona sempre conseguia argumentar em favor de gastar minhas economias depositadas na Cooperativa próxima de onde morávamos. Seu procedimento era calcado nas mesmas menções:
— Seus irmãos estão precisando de roupas novas.
— Seu pai está passando por dificuldades.
— Esse mês seu pai não tinha dinheiro nem para fazer o mercado.
—Seus irmãos precisam de material escolar.
MÃEZONA, A MÃE da zona familiar, a poderosa mulher ariana, descendente dos deuses nórdicos, estava sempre a puxar o tapete de minhas economias, privando-me de prosseguir meus estudos em grau superior. Eu, em minha juventude tardia, teria de migrar várias vezes para a cidade do Rio de Janeiro, onde me sentia um retirante nordestino, que eu realmente era. Começava então a sobreviver de empregos provisórios, até o esgotar das forças me fazer voltar, forçando-os a me receber na residência de juma família na qual nunca me senti protegido. Na qual nunca tive bem-estar.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 29/10/2022
Alterado em 08/12/2022