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OS JOGADORES DE CARTAS — CÉZANNE (1890)
OS JOGADORES DE CARTAS — CÉZANNE (1890)

UM ESCRITOR, PRESUMO, quando estimula a memória sabe, se for criterioso com o que fornece em termos literários a seus leitores, que precisa afirmar as verdades com as quais transmite aos leitores suas considerações literárias. Não poucas pessoas escrevem, mas poucas se fazem ler. Acredito que se precisa escrever para si mesmo. Se o autor fala honestamente consigo mesmo, pode transmitir essa veracidade aos leitores.

JOÃO CABRAL AFIRMOU: “escrever é estar no extremo de si mesmo”. — “Para mim escrever é metamorfosear minhas forças em frases”, no dizer de Joseph Conrad. Machado de Assis nos lembrou que escrever é contar a história toda: o bem e o mal. Essa história, nos afirmou ele, me vai lembrando e convivendo comigo na construção ou reconstrução de mim mesmo. Aprendi com um sem número de escritores técnicas narrativas de pesquisar e achar minhas verdades. Por vezes a vida nos faz delas esquecer.

SE VOCÊ NÃO lembra de si mesmo, como poderia falar ou escrever sobre suas verdades??? Mil histórias nos entrelaçam nos mil caminhos que se bifurcam. Somos formatados por nossas experiências, quer tenhamos ou não consciência dessa formatação. Muitos de nós desistem do autoconhecimento. Por quê??? Porque o autoconhecimento exige que sejamos honestos consigo mesmos. E é muito difícil, exige muita coragem a uma pessoa, qualquer pessoa, ser honesta consigo mesma. Parece fácil, mas não é.

TEMOS DE LEMBRAR de nós mesmos em momentos muito distantes e difíceis. Quando saí das entranhas da mulher que me pariu, minha regressão revelou que fui expelido, vomitado de seu canal vaginal. Acredito que todo recém-nascido abre os olhinhos apavorado com a descoberta de que, agora a contagem de tempo começou realmente. “Estou, em parte, por minha conta”, talvez todo bebê perceba essa verdade primal, esse grito primal e transmita isto no vagido dele mesmo que, incomodamente, o apavora sobremaneira.

NASCER NUM MUNDO inóspito e logo se assustar com a parteira que o pega em suas mãos, o levanta até a altura dos olhos e lá está ela sorrindo e vibrando a palma da mãe em direção a seu bumbum. Que diabos é aquilo??? Aquela coisa sorrindo diante dos olhos e da expressão aterrorizada do ex-feto, segurando a criança entre as mãos. Ela me conduziu à uma bacia de água morna e me limpou dos resíduos advindos da bolha de líquido amniótico da mulher que me carregou nove meses no ventre. A mulher que seria minha mãe. Quem quer que fosse ela.

QUEM QUER QUE fosse ela, a parteira, após me conduzir delicadamente para dentro da água na bacia, suas mãos deslizaram sobre meu pequeno corpo sujo de vérnix, verniz da substância esbranquiçada, gordurosa e melada do sangue misturado à água, aos lipídeos e proteínas que se grudaram em meu corpo desde o 3° trimestre da gestação, pelas glândulas sebáceas do feto. O útero é um local de baixa oxigenação e minha cor era arroxeada por causa disso. O sangue da placenta, aderiu ao cordão umbilical, e estava euzinho sendo limpo da cera grudenta, semelhante a um grande queijo, no qual eu me achava completamente envolvido.

PERCEBI QUE A mulher que me limpava com parcimônia não era uma ameaça, e logo parei de choramingar aos berros. A parteira conduziu-me aos braços daquela a quem eu deveria reconhecer como mãe. E logo notei a decepção em seus olhos ao ver que eu não era a menina que ela queria por filha e companhia. Euzinho, mal havia nascido e já percebia a rejeição mal disfarçada nos olhos dela. Intuí a hostilidade tácita e ao mesmo tempo furtiva no olhar frigidamente maternal dela.

EUZINHO SORRI PARA ela de volta ao sorriso dela. O ambiente que me envolvia era, de algum modo, hostil. E eu estava longe de saber explicar por quê??? Meu espírito logo buscou a quem recorrer para me salvar daquela conjuntura e me conduzir a outro lugar onde pusesse ser melhor aceito, tão patente a rejeição dela por mim. Talvez outras pessoas no quarto que assistiram ao parto tivessem também notado. A parteira eu sei que soube detectar a frustração daquela que terminava de me expelir das entranhas estranhas.

PARA ME DEFENDER, eu não parava de me extasiar com as novidades do ambiente e da luz, para mim intensa, que vinha de uma lâmpada no alto e no centro do quarto, nublava meus olhinhos. Não havia nada que euzinho pudesse fazer para me livrar da pesada carga astral materna que me deu as boas-vindas com um sorriso mal disfarçado de veto dissabor e repulsão.

A CONFIRMAR MEU horror e minhas primeiras apreensões, eis que surge a figura decepcionante e patética da criatura que deveria ser o pai da criança. Por mais que buscasse nele alguma empatia em profundidade, via nele uma sensação contrária às minhas expectativas e propósitos. Erra quem acredita que um recém-nascido nasce ignorante de tudo em sua volta.

HAVIA EU NASCIDO numa com figuração familiar diversa da que poderia ser uma outra configuração na qual eu me sentisse bem, ou pelo menos melhor??? Em minha defesa, que poderia eu fazer senão sorrir, sorrir, sorrir e chorar, chorar, chorar. Quanta adversidade e carência por empatia. Quem no grande oceano estelar do universo além daquele quarto, daquela casa, seria responsável por tamanho erro astral de perspectiva???

EU DEVERIA MESMO estar a me sentir bem com aquelas pessoas ao redor que não sabiam disfarçar a emissão de suas frustrações em minha direção. Eu havia nascido em meio à hostilização de pessoas que não estavam satisfeitas com elas mesmas: com o que haviam conseguido em suas vidas até aquele momento. Eu buscava alguém que me pudesse proteger delas, mas quem???  Quem??? Eu poderia ser salvo do convívio daqueles hominídeos aparentemente festivos??? Daqueles primatas que mal tinham saído de suas primitivas cavernas??? Futuramente descobriria eu que, do que eles gostavam mesmo era de jogar cartas. Jogar o jogo ao qual chamavam de “buraco”. Semelhantes aos Jogadores de Cartas da pintura de Paul Cezanne.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 29/10/2022
Alterado em 08/12/2022
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