MENINO — PORTINARI (1950)

LEGIÕES DE ÍNCUBOS e súcubos tentavam inutilmente em meu cérebro se instalar. Não conseguiam. Meu corpo e minha mente estavam atentos a essa possibilidade que não parava de se querer afirmar. Meu corpo e espírito, eu tinha a sensação de que estavam envolvidos num campo de força a me defender das constantes investidas e adversidades. Manter-me vivo mais um dia se havia reduzido à uma arte. Uma arte de me preservar da influência nefasta de cada um deles.

MEUS TIOS POR parte dela, a quem eu deveria chamar mãe, tio Nenê e a tia Acássia, eram mostra de que nem tudo estava perdido em meu redor. Nem todos polarizavam contra minha tentativa de existência segundo meus próprios valores. Eles pareciam saber que eu estava, devido à pobreza de recursos do casal, e a quantidade de filhos à qual todos os anos se somava mais um, sempre pressionado à aceitação do mínimo necessário à minha educação. Eles estavam mantendo-me num cercadinho de bode expiatório. Prisioneiro de suas necessidades de me reduzir às suas conveniências, sem considerar minimamente minhas necessidades básicas.

EU NÃO PARAVA de reclamar a falta de recursos para minhas necessidades de crescimento. Enquanto eles, a quem eu deveria considerar pai e mãe, não paravam de me saturar de inumeráveis tentativas de idiotização. Os espancamentos eram constantes e visavam fazer com que eu me subordinasse de uma vez por todas a todas as suas inumeráveis incongruências. Faziam questão de me mostrar todos os dias que eu estava fatigando os planos deles de manter recursos mínimos para a educação dos demais filhos.

INSISTIAM SEMPRE QUE eu tinha obrigação de me sacrificar por eles. Independente de que eu quisesse ou não isso. Qualquer migalha que jogassem sobre mim significava tirar o pão da boca dos demais. Era como se me responsabilizassem pelo alimentar seus filhos que eram deles, não meus. Não paravam de me acumular da responsabilidade de suprir as necessidades básicas deles, como se eu fosse o responsável por tê-los feito nascer e crescer.

MINHA SIMPLES PRESENÇA diária entre eles era uma ameaça à sobrevivência de todos. Alegava, minha mãe/madrasta que eu deveria me conformar com o mínimo e muito pouco, porque qualquer reivindicação de mais do mínimo, seria como que tirar o pão da boca dos demais filhos seus. Não meus. Suas taras físicas iam se acumulando. Enquanto o dentista, marido dela, acumulava o vício de cheirar coca que me mandava comprar na farmácia do Tomazinho. Quando não coca, cheirava lidocaína.

EM VERDADE EU não passava de um menino que era visto e usado por minhas parentelas próximas, irmãos e irmãs, para as quais eu deveria ser submisso e me sacrificar como dizia sempre aquela mulher autoritária a quem eu deveria chamar mãe:

— “Você deve ter orgulho de se sacrificar por seus irmãos menores”. A loucura dela eu deveria aceitar calado, porque senão, haja tapas na boca e ameaças de “vou dizer a seu pai que você está me faltando com o respeito”. Isso significava espancamentos: murros, tapas, chutes, surras de cinturão ou corda: e o que mais estivesse à mão. Eu ficava como que a criança absorta de Paul Gauguin em sua pintura pós-impressionista: “Menino Bretão Em Uma Paisagem Com Ganso”.

TODOS SABIAM EM casa que qualquer acusação que me fizessem, quando aquela pessoa a quem chamavam pai perguntasse algo de mim, eles inventavam um malfeito para caírem na graça do Paizão Coisinha, que os agraciava com bombons e chocolates. Após inventarem uma fake-news sobre mim, Paizão tinha uma razão para começar me ameaçar com promessas tais de espancamento:

— “Você não perde por esperar”, dizia ameaçador. Deveriam inventar sobre mim, qualquer tipo de realidade que motivasse uma culpa qualquer, quando não tivessem a realidade de um feito ao qual me pudessem acusar, inventavam uma. Todos naquela família, zelavam por criar acusações a mim, que pudessem gerar agressões, ameaças e espancamentos. Todos eles tinham plena consciência de que eu estava sobrando naquele arremedo de família.

PAIZÃO COISINHA NÃO poderia, de jeito nenhum, continuar fazendo o pinto subir depois de um dia estafante de trabalho árduo no consultório de dentista, pegado ao quarto dele e dela.  Dormir não conseguia devido a excitação emocional causada pela droga. Sua sexualidade era dia a dia mais carente e castrada pela sobrecarga de trabalho no consultório dentário. Ter mais um filho ou filha todos os anos, após um período de nove meses, era para a mulher dele, a quem eu deveria chamar de mãe, uma rotina que escondia sua falta de tino e feminilidade. Quanta mais miserável os familiares, mais ela tinha um motivo para exercer a função de mãe. Afinal, havia sido criada na miséria. Sem uma família miserável, ela não saberia exercer o papel de mãe.

ESCONDIA-SE POR DETRÁS da barrigada anual, como se estar grávida, todos os anos, pudesse esconder sua falta de ser feminil. Desesperada por lhe faltar o prazer que o marido não mais sentia nas relações sexuais, na cama do quarto ao lado do consultório dentário, ela apelava para as gemas de ovos batidas nas madrugadas insones. Apelava para as gemadas: gemas de ovos batidas com açúcar e leite quente. Lá estava ela, tentando combater na cama com sua cara metade. Cansado de um dia estafante de trabalho no consultório, ambos tentavam levantar-se e ao "imbrochável" dele, sem sucesso. De que modo um corpo depauperado por um dia estafante, em contato com a dentição podre e as gengivas infeccionadas de seus pacientes, poderia ele atuar na vagina de Mãezona nas madrugadas da cama de casal???

MAIS OUTRO DIA de trabalho sem resultados financeiros compensadores. Gemas de ovos batidas com açúcar e leite quente, as famosas gemadas, não estavam mais surtindo nenhum efeito. O "imbrochável" Paizão, tinha ele virado um simples trabalhador escravo da mulher dele, dos filhos e filhas dela, que se acumularam todos aqueles anos. Não havia gemada possível de fazer a cobra subir. Ou o pinto piar de galo. Desta forma ela garantia seu lugar no larbirinto: um lugar para comer, fazer suas necessidades básicas e embuchar outra vez.