MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE GOODNEWS (I)
“Ninguém será mantido em escravidão ou servidão...”.
(Artigo IV, Declaração Universal Dos Direitos Humanos).
Habito nas proximidades da zona Cracolândia no centro de São Paulo. O epicentro dos zumbis fica nas proximidades da estação ferroviária da Luz, praça Julio Prestes e ruas adjacentes. O aglomerado de seres desumanos habitantes das sombras parece estar, desesperadamente, em busca de uma cintilação de alienação mental quando aspiram as pedras de crack acesas nos fornilhos dos cachimbos. A fumaça em contato com o cérebro provoca um impacto devido a imediata aceleração dos batimentos cardíacos.
O usuário de crack, a cada inalação da pedra queimada no fornilho, tem aumentada a pressão arterial, a dilatação das pupilas. O efeito imediato causa tremor na musculatura e excitação da capacidade física e mental, fornecendo uma ilusória impressão de força e onipotência pessoal. Seis vezes mais potente que a coca, ainda que seus efeitos sejam mais rápidos, torna-se uma droga mais cara que a coca devido à urgência com que seus efeitos precisam ser renovados na mente deteriorada do usuário.
A síndrome de abstinência vem logo após quinze minutos. Logo, a necessidade de uma nova dose se faz intensa: há necessidade de inalação dos vapores de outras pedras. Se a nova pedra não se apresenta ao viciado, segue-se o desgaste, a prostração e a depressão resultante da falta de estímulo. A fingida simulação de autoestima forjada pelos vapores da pedra esvaiu-se na fumaça e voltará, por momentos, apenas se inalada outra pedra na lápide sepulcral em que se transformou a mente do viciado.
Durante a abstinência, esses mortos vivos são capazes de qualquer crime para a obtenção desesperada de uma nova porção de pedras. Sem a nova ração, eles se retraem na obscuridade demencial resultante do sentimento deletério de auto piedade, tristeza, desolação profunda e sinistro constrangimento interior, gerado pela síndrome de abstinência.
Os zumbis do crack são extremamente fracos e covardes. Reúnem-se em grandes grupos para atacar transeuntes portadores de bolsas, carteiras, bens de consumo, qualquer coisa que possam trocar por uma pedra ou um conjunto delas. Menores são usados para atrair suas vítimas nas imediações da Crakolândia. Menores podem matar impunemente porque têm a garantia de leis que favorecem o perverso homicida “de menor”. Isso lhes dá uma sensação de que estão livres para assaltar, agredir violentamente suas vítimas e até matá-las, se elas reagirem.
O OVO DA SERPENTE
Dirigia o carro em direção ao apartamento, quando uma adolescente estendeu a mão a pedir carona. Parei, baixei o vidro: evidente que estava drogada e em plena síndrome de abstinência.
— E aí, tudo bem? — Fiquei surpreso com os olhos grandes e puxados na vertical das pupilas. A ação de parar tinha por finalidade satisfazer a curiosidade:
— “Essa criatura é uma adolescente ou uma velha?”, perguntei-me.
A aparência era um misto de ambas. O rosto indefinido tinha as marcas de uma grande e irreversível fixação. Algo a obsecrava e fazia as faces parecerem tomadas por uma ansiedade absolutamente feroz.
Ponderei os riscos de entreabrir o vidro do carro, mas, a textura dos olhos de serpente da mulher fazia a face da vadia desenhar-se em contornos de ofídio. Venenoso. Uma atração deveras das trevas. As pupilas dilatadas na vertical da íris fixaram-me a implorar.
— Por favor, eu não durmo há três dias. Não estou me sentindo bem, você paga um quarto de hotel para dormir? — Hesitei, ao mesmo tempo em que essa abordagem despertou em mim a memória de uma frase de Hannah Arendt, epígrafe do livro “Gomorra”, autoria de Roberto Saviano, que estava lendo. A frase havia me chamado a atenção por seu tom de desafio:
—“Compreender o que significa o atroz, não negar-lhe a existência, enfrentar despudoradamente a realidade”. Aquela Nóia que estava me olhando da janela entreaberta do carro era um desafio vindo de uma dimensão da realidade que me instigava a sair de minha zona de conforto. As atrocidades de que aquela adolescente era capaz não se podiam esconder em sua fala supostamente suplicante.
A vadia me pedia para pagar um quarto de hotel onde pudesse dormitar sua irreversível situação de vítima da sociedade regida pelo tráfico.
— Por favor, me leva para um quarto de hotel. Eu chupo, faço qualquer coisa...
A sociedade que produziu aquela cascavel penitente do crack era a entidade obscura por detrás dela. Nela, em suas faces de cascavel, havia a ira incontida contra todas as entidades de direitos humanos que a protegiam e realmente haviam determinado esse encontro macabro.
JORNALISMO EM CAMPO MINADO
Eu não queria fugir dessa oportunidade, apesar dos muitos perigos imediatamente abaixo da tonalidade adolescente suplicante. A realidade perversa que se insinuava para dentro da poltrona do carro. Ao meu lado. Eu não ia fugir dela, nem negar-lhe existência. Presente em mim o interesse investigativo, a curiosidade por saber mais sobre como funcionam os mecanismo sociais que mantêm a Crakolândia funcionando. A pleno vapor barato. Tenho por profissão primeira o jornalismo investigativo.
Pensei nos perigos inerentes a essa investigação de campo. O Brasil se tornou o país com a maior quantidade de jornalistas mortos nas Américas. A estatística da organização Repórteres Sem Fronteiras (RFS), com sede em Paris, emergiu na memória, enquanto olhava o olhar esquisito da serpente em forma de adolescente que me implorava socorro.
Ao meu lado, de repente, não mais que de repente, estava a serpente com ares de inocente vítima das circunstâncias. Era evidente que de inocente não tinha nada.
Os juízos éticos ignoram que tal realidade ninguém cria nem por ela é responsável. Todos preferem ignorar: “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, como se todos aceitassem a nostalgia de uma dinâmica do vício. Dinâmica da fumaça endereçada aos pulmões do sistema nervoso central dos miseráveis emocionais, de todas as classes sociais, da sociedade capitalista, parte integrante do inconsciente coletivo da cidade das sombras.
Pensei nos atacadistas do crack que retalham o coração e a mente dessas pessoas no varejo. Teria ela quinze anos, dezoito, vinte e dois, trinta e seis, trinta e oito, quarenta e dois? Quarenta e seis? Ela possuía todas as idades, como todas as adolescentes das cidades das sombras. Que responsabilidade alguém poderia assumir por ela? As delegadas dos direitos desumanos supunham defendê-la?
Agora ela olhava em direção ao fecho ecler da calça. Sua mão avançou para abri-lo e apalpou a genitália em meio às minhas coxas. Curvou o rosto em direção ao bilau com lábios que se abriam abaixo do nariz, os olhos de víbora não continham a ansiedade.
— Esperaí, você não queria dormir? Vou te levar a um hotel, pagar o quarto. Tá bem assim? O faro me dizia que longe de um Chanel Five, aquela mulher exalava um odor de promiscuidade que estava longe de ser afrodisíaco. O vestido se desabotoava e abria mostrando as coxas tatuadas e a perereca de poucos pelos púbicos se mostrava sem calcinha. Aparecida nas sombras da madrugada, a franga aparecia agora não tão cansada. Insistindo na possibilidade da felação.
BOQUETE CARRASCO
Desconfiei das boas intenções. Por que a insistência? Lembrei-me de um chargista amigo que em tempos de comercialização de livros em bares, botecos e restaurantes na noite paulistana, me disse de uma pessoa de seu conhecimento que quase perdeu a trolha para uma dentuça que se dizia chamar Zélia. A mulher quase arrancou, à dentada, seu orgulho nacional.
Enquanto o cara gemia com a mordida dos dentes dela que se estreitavam em torno do zezinho, no auge dos ai-ais, sob a ameaça de perder um pedaço do trabuco para a dentada frenética que abocanhava com força o pinguelo, ameaçando ferrar, à dentada, o picolé de alcatra dele, ficando, quando muito, o cotoco. Ele perdera a excitação e dizia:
— Para com isso, você quer dinheiro, eu dou. A dentuça da Zélia mexia freneticamente o polegar, esfregando-o contra o indicador e o dedo médio, como a dizer que queria sim, dinheiro. Que sem grana o pau Brasil do cara ia ser podado mesmo.
— Tudo bem, quanto você quer? Dez? Zélia balançava a cabeça dizendo não, mas sem afrouxar a pressão sobre o pipi. Vinte? — Não! Trinta? — Não? Cinquenta? Cem? Ela havia arrastado o sujeito em direção à poltrona do passageiro. A porta aberta e o corpo dela metade para fora.
Desesperado, o conquistador conquistado pelo boquete carrasco puxou a carteira e botou toda a grana que tinha em notas de dez e vinte reais na mão da canibal. Ela pegou a grana e saiu correndo para alívio do mijão.
A lembrança do “boquete carrasco” foi embora como se fosse uma piada de mau gosto. Eu não corria esse risco. Transar com esse tipo de marafona só é atrativo para dementes drogados que estão numa situação de extremo desprezo por si mesmos e pelo próximo.
— Você já pensou em sair fora dessa vida? O que ela tem de boa? Olhaí teu estado, você parece uma velha. Você não sente o desgaste? — Nesse momento ela reagiu dizendo ser mais ela, “eu sou a Fulana da Zona Norte, eu me garanto!”.
— Uma pessoa naquele estado deplorável e estava cheia de si, dizendo se garantir.
— Você é a parte mais fraca dessa danação. Na hora do arrego, dos finalmentes, essa bando que te explora vai cobrar caro, já está cobrando, pela tua participação nos trampos. A corda sempre arrebenta para o lado do mais fraco. Você é a parte mais fraca. Já pensou em sair dessa vida?
CONVERSA AFIADA
Ela parecia extremamente ansiosa com esse lero-lero. Eu via que essa conversa não ia levar a lugar nenhum. O carro chegou ao hotel. O portão da garagem abriu. Estacionei e ia pagar o pernoite da maníaca, quando, de repente, ela diz que não. Nóia nunca é dona da própria vontade. A droga fica agindo na cabeça oca e flutuando de um para outro estado de depressão, exaltação momentânea e cólera a olhos vistos.
— Quero voltar para o lugar em que você me pegou. A voz saía da boca encolerizada. Como se eu tivesse feito algo de errado. Ela estava cheia das exigências. Eu estava fazendo-lhe um favor, uma caridade, atendendo um pedido dela que “não dormia a três dias”. A ansiedade ofídica da megera era tão encorpada, maciça, que quase se podia apalpar. Parecia centrada num lugar de fogo nuclear dentro dela. A sensação de que estava queimando um combustível interminável, alimentado por uma demência sugerida por traumas precoces, uma sensação de ressentimentos e ódio, sobrenaturais. A perversidade exalava da expressão facial.
As coisas que disse para ela despertaram uma rejeição insólita e promíscua. Para ela, qualquer demonstração de visibilidade de sua deplorável condição, era proibitiva, porque aumentou sua baixa autoestima. E eu havia revelado esse lado que ela escondia nas sombras. Ela pensava, talvez, que poderia continuar a escondê-lo.
Olhei para ela e o que vi revelava uma criatura perversa, com uma vida pregressa demasiadamente dolorosa para sua idade. E tinha de aguentar até o estertor toda essa carga de truculenta malignidade que avassalava seu psiquismo, enquanto vivenciava a crise da síndrome de abstinência do crack.
A soberba ansiedade que a alma penada com olhar de víbora, tão oferecida, demonstrava, poderia ser a revelação de que encontrara uma saída para a síndrome de abstinência. Via em mim uma vítima que poderia explorar. Seu delírio de onipotência de há pouco, “sou a Fulana da Zona Norte, eu me garanto” era um sintoma. Acreditou em suas tatuagens. Elas tomavam a coxa esquerda, iam também da virilha ao joelho direito. Certamente era um símbolo de poder delinquente e da suposta onipotência criminosa que, de algum modo intenso, a fazia pertencer ao agrupo de periferia para o qual trabalhava e se exibia.
Eu poderia simplesmente parar o carro numa rua sem movimento e a remover à força do banco de passageiro. Mas eu queria saber que tipo de singularidade perversa aquela criatura violentada por uma vida excessivamente desprezível, me reservava. Se não fosse até o fundo daquele poço de ansiedade, e fizesse o que ela me pedia (“quero que me leve até o lugar que eu quero ficar”), como poderia saber o que havia no fundo do poço? Eu queria ser forte e pagar para ver. Se não fizesse o que ela me pedia, perderia para sempre a oportunidade de saber do que a víbora seria capaz. Por que ela estava tão confiante? Que poderia fazer?
Essa era a oportunidade de sair de minha zona de conforto para saber como funciona a mecânica da sociedade explorada pelo crack no centro da cidade de São Paulo, a essa hora da madrugada. Como aquelas promessas de ameaças que eu sentia emanar do quarto escuro da mente degenerada daquela viciada, poderiam se fazer manifestas? Isso exigia certa dose de coragem pessoal. “Vou aceitar esse desafio”.
SEGURANDO AS PONTAS
— Não vou fugir do perigo, pensei. Melhor encarar essa pesquisa de campo agora, do que fugir das consequências de uma situação inusitada que não se repetirá. Eu não abriria a porta do carro para fazer adentrar no banco de passageiro uma adolescente tão velha e depravada, corrompida e estragada, outra vez. Essa era uma oportunidade única. Eu teria de pagar o preço para saber por que ela existia nas condições em que se fazia ver. Aquela criança mirrada, caduca, era simplesmente uma abominação social. Um ser sobrenatural.
Perguntava-me que tipo de sociedade poderia conviver.com.br com essas criaturas das trevas, mantendo-as na escuridão desse abismo mental coletivo dos viciados e indigentes mentais da Crakolândia, alimentados por seus próprios traumas e pelo desprezo que as autoridades dedicam a seus cidadãos que trabalham e pagam seus impostos. Que tipo de Secretário de Segurança Pública daria um exemplo pior de desapreço pela ideia de cidadania das pessoas, famílias ameaçadas por esses dementes da cidade do crack?
— “Qual o valor de mercado dos zumbis da Crakolândia?” Perguntava-me.
— Quem usufrui da condição miserável desses sobreviventes tóxicos que assombram o centro da cidade de São Paulo? Quem vive da miséria existencial desses consumidores de veneno de ratos? Que tipo de autoridade governamental faz de conta que esses zumbis não estão a obstruir as artérias do comércio no centro da cidade? E a impedir e ameaçar o tráfego de pessoas para as estações de trens e metrôs e os terminais de ônibus? Esses zumbis são cobaias de quem? Quem se responsabiliza pela segurança da população dessa zona tóxica do centro da cidade?
Talvez, ao ir até o fundo do poço para o qual essa pequena víbora me conduzia, eu achasse algumas respostas para a violência e os abusos testemunhados diariamente pelos habitantes de apartamentos adjacentes à Cracolância e pelos transeuntes em busca de voltar para casa, após um dia de trabalho, via meios de transportes da mobilidade urbana.
O medo dessas pessoas, não declarado publicamente pelas reportagens, e ignorado oficialmente pelas autoridades policiais e de insegurança pública, é parte do dia a dia da crackofobia e do horror mórbido nessa zona do centro da cidade de São Paulo, onde crackomaníacos matam e morrem quase que diariamente: uma zona de zorra entorpecente onde os vivos podem se metamorfosearem em fantasmas, ao presumirem que suas rotinas de vida são uma garantia contra o perigo de trafegar nessa zona de conflito. Físico e mental.
— “Mais adiante, mais pra frente, dobre aí”. A fala irada, voz apressada da adolescente envelhecida, a repetir o refrão com grande ansiedade: “pare aqui, pode parar, é aqui”.
ESTUPRO ÀS AVESSAS
Tirando a carteira do bolso da bermuda, pisei no freio e ia tirar uma nota de dez reais para entregar para ela, quando ela avança na chave do carro com ambas as mãos e começa a berrar: “socorro, estou sendo estuprada, socorro, socorro”.
Imediatamente apareceu uma multidão de viciados nas janelas do carro que ela apressou em abrir a porta do passageiro. Ambos os pés da víbora faziam pressão sobre o painel de controle do carro. Os joelhos dobrados, a fala nervosa e autoritária: “faz a limpa, faz a limpa”.
Eu olhava nos olhos da turba de zumbis que invadiam meu carro pelas quatro portas. A princípio eram entre doze e dezesseis, mas a quantidade logo aumentou. Passavam rapidamente o paletó e os casacos que estavam no banco de trás para os que estavam fora do carro. Estes, faziam “a limpa” nos bolsos, tirando tudo dentro deles. O que não roubavam jogavam, de um lado na calçada, do outro, no chão do asfalto.
Os nóias me socavam no rosto, na cabeça, na nuca. Chutavam minhas pernas, arranhavam meus braços, enquanto a pequena víbora ainda tentava se apossar da chave do carro, sem conseguir. Eu buscava, em meio às agressões, manter a calma. A buzina do carro ressoava de modo insistente na praça visando despertar os vários carros patrulhas da guarda civil, estacionados na praça Julio Prestes. Em vão.
Enquanto meia dúzia de hienas seguravam meus braços na tentativa de me imobilizar, a pequena víbora organizava a matilha, dando as ordens: “leva tudo, leva tudo, deixa só os flagrantes”. Ao ver que não tinha sucesso em se apossar da chave do carro, começou a rasgar o bolso direito da bermuda em busca de tirar minha carteira que eu havia posto de volta no bolso ao ouvir os primeiros berros da facínora. O bolso esquerdo havia sido rasgado. A bermuda estava em frangalhos.
Eu estava a pagar o preço por me inserir na zona de sombras na mecânica do vício e do tráfico da Crackolândia. As agressões estavam a acontecer. A buzina do carro não atraiu os policiais que faziam de conta não estarem vendo nem ouvindo. Repetiam silenciosamente o refrão dos culpados nos escândalos políticos do Mensalão, Pasadena, Petrolão, ao serem flagrados nas investigações dos eventos de corrupção governamental que sempre repetem: “não sei de nada, não sei de nada”.
Mas eles sabiam, sim. E mais: eram cúmplices da barbaridade. Ou melhor: das barbaridades que acontecem naquele lugar de vício, crimes e sangue.
A víbora quando sentiu que eu não abriria mão da chave do carro, mesmo com todas as agressões covardes em andamento, concentrou-se em roubar a carteira com todos meus cartões de crédito e documentos. Olhou para um dos criminosos que estava com a faca em punho e ordenou: “a faca, esfaqueia ele, vai, esfaqueia ele”.
O marginal obediente, antes de cravar a faca no lado direito de meu pulmão, ao lado da axila, próximo ao pescoço, feriu o dedo da mão, molhando de sangue a lãmina. O sangue começou a jorrar fartamente do ferimento em meu ombro, enquanto a víbora e seu bando de crackômaníacos saíam correndo pela calçada da praça em direção às ruas adjacentes.
PÇA. CARLOS PRESTES: O MATADOURO
O sangue saía sem parar da carne lesionada. A camisa estava empapuçada e a bermuda também. Um táxi estava estacionado a poucos metros. O motorista fazia de conta que não tinha visto nada. Estava a manipular um celular. Aproximando-me, perguntei se ele poderia fazer o favor de chamar um socorro:
— Por favor, um bando me assaltou e estou perdendo muito sangue, é possível você chamar uma viatura policial para me levar ao pronto socorro? Ele olhou como quem não está nem aí, e mexeu com a mão no celular, como quem, talvez, fosse fazer o favor de ligar. Meu celular havia sido roubado, assim como outros pertences.
Voltei em direção ao carro. O sangue não parava de escorrer. Duas viaturas da Guarda Civil Municipal passavam lentamente. Fiz gesto para que parassem, mas elas passaram como quem não está vendo nada.
Uma atitude totalmente inconciliável, avessa a qualquer código humanitário. No momento não poderia haver urgência maior do que socorrer uma vítima de agressão que sangrava excessivamente e tinha as vestes banhadas em sangue. Mas elas continuaram como quem diz: “não vejo nada”. — “Não sei de nada”.
Uma atitude revoltante. Desumana. Os guardas estavam, possivelmente, indo em busca da divisão do butim, antes que os marginais dividissem entre eles o dinheiro, mil e quinhentos reais que eu havia tirado do banco para fazer pagamentos no dia seguinte, e alguns pertences, tipo os mencionados documentos e os cartões de crédito.
Não encontrei outra explicação para tamanho descaso dos policiais com um ferido que estava a perder tanto sangue, com as roubas em farrapos. Um casal, talvez de moradores do bairro, parou próximo e o homem falou:
— “É aqui que eles trazem as vítimas. Esse lugar da praça eles chamam de matadouro. Não adianta buzinar, gritar, que a polícia não está nem aí”. A mulher vendo minhas roupas encharcadas de sangue, falou:
— “O senhor precisa de socorro urgente. O sangue continuava saindo do ferimento. A roupa está toda molhada de vermelho. O que sobrou dela”.
— Está certo! Obrigado, respondi enquanto me dirigia ao carro e vi, ao abrir a porta, que a chave estava no tapete em frente ao banco do motorista. Estava torta. A prostituta, a pequena víbora, havia feito de tudo para se apropriar dela, mas não conseguiu, apesar de todos os esforços das hienas de seu bando que, com certeza, nos desfechos da agressão eram, no mínimo, umas vinte, esmurraram-me sem parar e me esfaquearam, ainda assim impedi que se apropriassem da chave.
O SANGUE A SE EXAURIR
Desentortei a chave usando o apoio da ignição. Consegui ligar o motor e me dirigi a uma série de viaturas policiais da Guarda Civil Metropolitana que estavam estacionadas ao largo da Praça Julio Prestes, próximo ao local do sinistro. A multidão de zumbis cercava as viaturas. Saí do carro e solicitei que me conduzissem ao pronto socorro do Hospital das Clínicas. Conduziram-me ao pronto socorro do Hospital do Servidor Público Municipal.
Na sala do pronto socorro estava um indivíduo com marcas de agressão por todo o corpo. A sala estava mal iluminada. A maioria das luminárias do teto tinham as luzes apagadas. Reclamei que deveria ter sido conduzido ao HC, como havia solicitado, porém um dos guardas logo se adiantou dizendo que a condução de pessoas lesionadas naquela área, sempre era feita para esse hospital: “é assim que funciona” disse ele.
Ao ver as condições de atendimento precário do hospital, citei meu direito constitucional de ir e vir para sair logo dali. Sugeri que me aplicassem uma vacina antitetânica. No que me atenderam de forma relutante. Uma segunda radiografia do pulmão seria efetuada apenas quatro horas depois. Ainda sangrando, agora menos, solicitei a chave do carro que precisavam liberar após trâmites burocráticos que incluíam autorização para sair do hospital. A alegação de meu direito constitucional de ir e vir surtiu efeito. Dirigi-me então até o pronto socorro do HC.
As condições de atendimento melhores. Mais movimentação de médicos, enfermeiros. Iluminação ambiental adequada. Após os analgésicos de praxe, solicitei internação em quarto, paga pelo plano de saúde. Uma intervenção cirúrgica seria necessária para tirar o ar que vazava do pulmão perfurado e inchava a pele no lado direito do tórax.
A inserção de um dreno pulmonar se fazia iminente. No outro hospital teria de esperar quatro horas, no mínimo, para tirar outra radiografia do pulmão e, com a chegada de um médico cirurgião, pela manhã, verificar as condições do órgão e a possível intervenção para colocação do dreno e garantir a escoação do sangue e do ar acumulados na cavidade torácica.
— Trouxeram você numa viatura? Perguntou um enfermeiro.
— Não, vim dirigindo o carro. Respondi.
— Você é corajoso, dirigir nesse estado, depois de perder todo esse sangue, é risco de morte. E aí? Provocou ele.
— “A necessidade força a fazer o que não se deve”, eu disse, lembrando minha necessidade de saber o que acontecia nos bastidores da Crakolândia, me permitindo conduzir a essa situação de risco de morte.
CIRURGIA E DRENAGEM TORÁXICA
O médico cirurgião examinou a radiografia, disse que não seria possível evitar a punção pulmonar. A cirurgia de drenagem do ar e do líquido pulmonar, teria de ser efetuada, através do posicionamento do dreno no interior do pulmão. Após a sutura a cicatriz do ferimento de faca fora costurada com pontos de costura perpassando a pele.
No momento lembrei quando as hienas afastaram-se da vítima ao sair correndo pelas quatro portas do carro parado no meio fio da calçada no chamado “matadouro”, quando uma delas, com ares de vitoriosa, bradou: “esse, o rolezinho do PCC, mano”.
Quem pode se considerar excluído da guerra urbana não declarada nas ruas da cidade? Nada nos protege contra o perigo da agressão e da violência. É a guerra sem declaração oficial. As polícias não transmitem segurança. A sensação de estar no lugar errado na hora errada, como se existisse um lugar certo na hora certa para justificar a ação de depredação física dos criminosos.
Qualquer lugar pode ser o território esquecido pelas forças de segurança. Elas não têm condição de estar em todos os lugares todo o tempo. Os transeuntes que se defendam como puderem, porque os direitos constitucionais de ir e vir estão assegurados apenas teoricamente aos cidadãos sem cidadania. Ameaçados com a violência e a impunidade de menores protegidos por leis caducas que os mantêm inatingíveis. Impunes.
A pena de morte existe no país, e o principal carrasco executor é o “de menor” usado e abusado pelas estratégias do furto, do crime de roubo seguido de morte, do crime de tortura seguido de morte, do assalto seguido de morte, do sequestro seguido de morte. Há um genocídio em curso, como nunca se viu antes nesse país. A bactéria da violência guiada pela ganância e a ansiedade por ter sempre mais, asfixia os passantes que caminham pelas ruas e dirigem no trânsito da cidade.
A bandidagem afronta as forças de segurança que estão mais e mais intimidadas. Grande parte da população pobre das periferias assim como a população dos bairros mais centrais da cidade está em vias de se tornar fantasmas. O medo torna-se o acompanhante mais compartilhado também pelas pessoas da classe burguesa movida pela vontade de ter e de poder usufruir de todas as mordomias possíveis. Atitude existencial copiada pelos membros de todas as outras classes sociais. Classes essas que vêm das profundezas da Caverna de Platão, com uma educação paleolítica tipo Bolsa-Família.
A cultura do entretenimento de baixo nível está ao alcance do proletariado intelectual, mental, emocional, globalizado em todos os países, em todos os grupos sociais ditos civilizados. A Aldeia Global Globalizada sente-se culpada. Os vencedores e os vencidos são condenados pela mesma emoção pueril das galeras nos estádios de futebol. Ao comemorar os gols aos berros, pulinhos e simulação de alegria, tentam esconder o sentimento de derrota moral. O confessionário das galeras levianas do neoliberalismo deseja em vão mostrar o sentimento coletivo positivo, através do fanatismo das torcidas organizadas.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 15/02/2015
Alterado em 15/02/2015