Textos

O Buraco Negro Solar De Vidas Secas
INTRODUÇÃO

Graciliano Ramos, autor da 2ª Geração do Modernismo do qual fizeram parte Raquel de Queiros, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Dionélio Machado e Jorge Amado. Na poesia sobressaíram-se Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Vinícius de Morais.

Os romances de Graciliano Ramos caracterizam-se pelos segmentos literários narrativos com preponderância da abordagem social e existencial. Seus romances são considerados obras de arte da literatura nacional, desde sua estreia com Caetés (1933) até seu romance de despedida, Vidas Secas, editado pela José Olimpio em 1938.

Seus personagens costumam apresentar certa “tensão interior” com a qual convivem e se fazem desdobrar seus conflitos internos em protestos veementes contra as condições sociais perversas e as adversidades da natureza ou do lugar em que vivem. Adversidades e condições sociais que animalizam as personagens de Vidas Secas, tirando-lhes até mesmo as motivações básicas de uma esperança que teima as mantê-las vivas, sobrevivendo.

As personagens de Vidas Secas precisam do alimento da esperança para continuar sobrevivendo, sofrendo e acreditando em dias melhores a partir de um mínimo existencial que teima em produzir seus efeitos com procedimentos literários próprios do Realismo e do Naturalismo: denúncia social, análise psicológica, objetividade denotativa.

A linguagem literária de Vidas Secas é o discurso indireto livre com foco narrativo em terceira pessoa. Há a presença de adjetivações e figuras de linguagem tipo Metáfora (“Você é um bicho, Fabiano”) e Prosopopéia (a cachorra Baleia mencionada como gente).


MEIO DE CAMPO
DESENVOLVIMENTO

As quatro pessoas animalizadas e a cachorrinha Baleia, e o papagaio da família de Fabiano e dona Vitória, peregrinam pelo deserto da caatinga em busca de melhores dias. A narrativa, preservada as dessemelhanças, assemelha-se à busca da Terra Prometida pelo Senhor do povo hebreu em sua peregrinação pelo deserto.

A grande família do povo hebreu saído da escravidão em terras do Egito tinha um profeta, Moisés, a guiá-lo. E um Deus com a promessa da Terra Prometida.

Na romaria errática da família de Fabiano e dona Vitória através do deserto da caatinga não havia nem profeta nem um deus para guiá-la. Sob os pés a areia quente e a vegetação rara e ardente. Entre esse solo seco e o céu solar a provocar a estiagem nos doze meses do ano, a paisagem desértica a perder de vista. Os lábios secos, a pele queimada, a sede intensa, a fome imensa e os excluídos da cultura e da civilização a vagar no ermo da exclusão total. Sem direitos, sem água, sem alimento, sem jeito. Mas com a política da Sudene a explorá-los.

Em Vidas Secas as condições sociais desumanas, a ausência do Estado na proteção das pessoas desprovidas das mínimas condições para o exercício de seus direitos fundamentais, fazem da família de Fabiano, dona Vitória e seus filhos, a cachorra Baleia, uma estrada sem caminhos sob a luminosidade de um sol escaldante que lhes queima a paisagem, os passos, a pele, as Vidas Secas. Eles habitam o buraco negro solar do camponês brasileiro: o sertão.

A família de Fabiano habita o sertão solar que está sempre a cozinhar suas vidas antes mesmo que elas tenham uma oportunidade de crença numa esperança ressecada a  brotar na intencionalidade da vida espectral da qual nada vem, nada foge, nada escapa.

A família de Fabiano faz parte do espectro da caatinga. É parte das emanações espectrais no solo rústico, agreste, seco. A família de Fabiano resiste ao convívio sertanejo com a intimidade com corpos ressecados, esqueletos e ossadas do gado morto e esganado, estendido na flora rara e seca, entre os gravetos ásperos na aridez da vegetação espinhosa no agreste da caatinga. A carência até mesmo do mínimo existencial. A carência até mesmo de um mínimo social.

O fato é que não é possível fixar abstratamente o conteúdo desse mínimo existencial. Suas exigências podem variar de acordo com as condições econômicas, culturais e sociais de um povo. Alguns parâmetros, no entanto, são, hoje, reconhecidos quanto ao que é necessário para uma vida digna. Os direitos sociais como a saúde, a educação e a habitação estão entre eles. Portanto, como uma primeira delimitação, pode-se afirmar que o conteúdo do mínimo existencial é constituído basicamente pelos direitos fundamentais sociais, sobretudo aquelas “prestações materiais” que visam garantir uma vida digna. Isso não significa garantir apenas a sobrevivência física, mas implica no desenvolvimento da personalidade como um todo. Viver não é apenas sobreviver (WEBER, 2013).

A família de Fabiano e dona Vitória eram reféns da paisagem seca e cruel do buraco negro solar do sertão de Vidas Secas. Sartre, longe de idealizar a condição humana, dizia que “o homem está condenado a ser livre”. Mas, que liberdade poderia exercer a família de Fabiano e dona Vitória? Rejeitados por qualquer outro grupo social, como poderia essa família sertaneja exercer outra liberdade que não fosse a de vagar pelos meandros ferventes da superfície seca do sertão?

Peregrinos do cemitério a céu aberto da caatinga, escravos da cultura sertaneja dos camponeses migrantes desprovidos de outra certeza que não fosse o eterno, enquanto dure, vagar? O destino errante, corpos circulando ao acaso, os pés calçados nas sandálias de couro cru. Vagar devagar sobre a paisagem solar implacável banhada pela luz sempre intensa, amarela, do buraco negro solar do sertão.

Lá estão eles na memória do leitor: Sinhá Vitória, mulher de Fabiano, os filhos, o patrão ocasional, a cachorra Baleia, o soldado Amarelo, seu Inácio dono do boteco. E o papagaio que não falava, mas reproduzia os latidos da cadela Baleia. As personagens humanas pouco falavam. Que vocabulário poderia usar os desprovidos de escola fundamental, elementar? O louro, que falava muito menos que o Louro companheiro diário da Ana Maria Braga, nas manhãs da Globo, ouvia apenas os grunhidos e rosnados monossilábicos das personagens da família de Fabiano.

E o que o louro de Vidas Secas reproduzia era exatamente o que mais ouvia: os latidos da cadela Baleia. Mas, quando a fome atazana a necessidade de comer do homem, Fabiano não pensou muito sobre as atribuições discursivas muito limitadas do papagaio da família: torceu o minúsculo pescoço do lourinho e, após depená-lo a seco, todos o devoraram com farinha de mandioca.  Ainda que sob as lágrimas e os protestos dos filhos.

Como se fossem artistas da sobrevivência sob a ingerência e direção das necessidades mais básicas impostas pela seca e a fome, que outras atitudes e pensamentos poderiam ter dentro do cérebro a cozinhar na paisagem solar do luar do sertão?

O cérebro a cozinhar de calor, da carência de palavras para o exercício de uma oralidade discursiva mínima. A oralidade da fome. E comer o louro com farinha ainda provocou o choro e o protesto das crianças. Apesar da falta de alimentos, a despeito da fome, o louro naquele momento “salvou a pátria” da família Fabiano.

A obra é feita de ausências: de água, de nomes, sobrenomes, de palavras, de dinheiro, de respeito. O silêncio fala muitas vezes por eles e, Graciliano mostra, a partir de comparações entre homens e animais, a zoomorfização dos homens (Fabiano se compara intermitentemente a um bicho), assim como seu filho, e a antropomorfização do animal Baleia, embora a cachorra possuísse as sensações mais humanas da história, cabe a ela também o momento mais dramático da narrativa. A ela Graciliano provê de alegrias e tristezas, vida e morte. Aos demais personagens cabe apenas a sobrevivência (BARRETO, 2005).

A família Fabiano se conduz passo a passo acompanhada agora apenas da cachorrinha Baleia. O papagaio no dia anterior havia sido morto e enganado a fome dos familiares. O filho mais velho não aguenta prosseguir viagem e é conduzido pelo pai nos braços.

Os passos se fazem ainda mais lentos. Fabiano para justificar a morte do louro alega de si para si mesmo que o mesmo não servia de nada, exceto imitar a cadela Baleia como se estivesse aboiando um rebanho: au-au-au. De maneira precária, monótona e triste seguindo viagem rumo ao nada, chegam numa fazenda abandonada. Os latidos da baleia pelo bico do louro apenas na memória.

Baleia, abanando o rabo, chega-se a eles com um preá entre dentes. Alegria geral. A refeição está garantida. Na fazenda abandonada, entre os bebedouros quebrados e largados dos bovinos e a vegetação rasteira ressecada, há entre a lama um pouco de água. Fabiano a recolhe. A desesperançada esperança volta aos rostos por momentos. Dentro do buraco negro solar da caatinga há esse oásis provisório onde podem antecipar qual será o próximo passo em direção à luminosidade amarelada e implacável do sertão.

Fabiano e Baleia sonham. Os sonhos de ambos refletem os desejos. Confirmam a teoria freudiana de que sonhos são, frequentemente, a realização de desejos reprimidos na psique. Quantos desejos: trabalho, escola e saúde para os filhos, emprego, salário...

Na esperança antecipadamente frustrada da espera da chuva cair Fabiano sonha fazer nascer de novo à fazenda: "Uma, duas, três, havia mais de cinco estrelas no céu. A lua estava cercada de um halo cor de leite. Bem. A caatinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta".

Fabiano é novamente sugado pelo buraco negro do sonho. A janela da esperança se abre na paisagem solar e desértica do sertão. As Vidas Secas repetem a história da migração do início. O recomeço não tem fim. As sandálias de Fabiano sob os pés que se preparam para uma nova jornada no buraco negro da esperança desesperançada. Enquanto a indústria da seca canaliza as verbas da Sudene para os bolsos ricos dos políticos. Do sertão.

A família Fabiano de dona Vitória, metáfora mutilada de qualquer possibilidade existencial e social de redenção, encontra nas palavras da criança a tradução para suas angústias. Inutilmente o menino expressa-se na palavra de três sílabas a fala monossilábica que busca xingar o ermo até onde o olhar alcança:

— Inferno!

— Inferno!

— Inferno!

À cadela Baleia ao dormir sonha: “Acordaria feliz num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes”.

Metáfora de metáforas se impõe o discurso do narrador com frases secas, rápidas, sem firulas nos períodos simples. Graciliano, semelhante a Fabiano, deseja na literatura de Vidas Secas ser o mais objetivo e monossilábico possível. Uma narração literária antidemagógica, sem surtos discursivos ou verbosidades inúteis.

Imenso e eloquente só mesmo o buraco negro solar da paisagem sertaneja. Ela, paisagem, sugere e dirige as agruras que a família de Fabiano enfrenta ao cruzar caminhos aleatórios no interior do buraco negro solar do sertão nordestino.  A criança a olhar o horizonte amarelado exclama em todos os sentidos:

— Inferno!

— Inferno!

— Inferno!

A esperança infernal na continuidade das Vidas Secas até a próxima parada na jornada diária sob a estrela amarela a sabotá-los, escravizá-los, encarcerando-os nas veredas iluminadas do buraco negro solar do sertão. Enquanto os políticos da Sudene liberavam verbas para suas contas bancárias e os cantores do luar do sertão vendiam discos Brasil adentro. Brasil afora.  

Graciliano Ramos não se quer a simular modéstia nem muito menos grandiloquências despropositadas. Ele diz não compreender os críticos que o comparavam aos grandes autores clássicos da literatura mundial, a exemplo de Dostoievsky.

Antônio Cândido reuniu em livro (Ficção e Confissão) cinco ensaios sobre Graciliano. Este, ao retribuir em comentário de agradecimento afirmou ser ele mesmo “uma espécie de Fabiano”. E complementou:

Onde as nossas opiniões coincidem é em seu julgamento de Angústia. Sempre achei absurdos os elogios concedidos a esse livro e, alguns, verdadeiros disparates, me exasperavam, pois nunca tive semelhanças com Dostoievsky, nem com outros gigantes. O que sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído a minha gente, como você muito bem reconhece (RAMOS, 1992).

Nos treze breves capítulos do romance Vidas Secas, que mais parecem treze textos escritos no gênero conto, tudo o que menciona o humano é mesquinho, acanhado, limitado. As palavras são registros de uma memória devastada pelos passos da próxima jornada na estrela amarelada do buraco negro solar do sertão. O caminhar em meio às ossadas, animais semoventes, a Família Fabiano de dona Vitória espera desesperadamente o sertão virar mar e o mar virar sertão. O mar virar sertão antes mesmo da próxima arribação.

Tanto faz a próxima arribação ser pra diante, pra trás, pra direita, pra esquerda. A única coisa que há de grande associada ao humano em Vidas Secas, são as longas caminhadas até a próxima parada na imensa (outra coisa grande) paisagem rural do sertão. O resto é pequeno, curto e grosso: as palavras, as frases, os capítulos, o pensar, o sonhar, a esperança. Outra coisa grande é a estrela amarela sobre os passos papa-léguas da Família Fabiano de dona Vitória.

CONCLUSÃO

De que valem as ciências sociais, as conquistas políticas dessas massas que passam nos projetos do futuro? As Vidas Secas desse povo do sertão se prolongaria, se um dia migrassem para as veredas tropicais das grandes cidades. Cidades, onde continuariam a animalização irracional nos amontoados de gentes nos ônibus, nos trens e metrôs, nas filas dos carros comprados nas concessionárias a longos prazos por onde se esvaem os salários e as Vidas Secas.

As Vidas Secas que se esvaem nos programas de distribuição de renda, conservação e permanência de um Estado primitivo com suas fórmulas sórdidas de manter tudo aparentemente melhor na educação psicótica, aliada à esmola social do existencialismo patronal do Bolsa Família.

As Vidas Secas caladas continuam na aceitação do futuro de uma educação pequena, curta e grossa: educação para o tráfico, a prostituição e a alienação das massas que passam nos projetos do passado, em direção a um futuro de dignidade e cidadania que não chegou. Nem chegará.

As Vidas Secas continuam a ressecar sob o sol dos políticos amarelos, no amarelo solar da demagogia eleitoral mais perversa que mantém a politicagem oficial de um ex-presidente Analfabeto a contemplar as famílias dos fabianos das donas vitórias com um projeto Bolsa-Família que exclui os professores das benesses de um plano educacional que os lança no buraco negro da história, para sempre, gerações e gerações de aprendizes dos entretenimentos da WEB. Per omnia saecula saeculorum. Amen!!!



REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Cintia Cecília, Subjetividade Da Linguagem Em Vidas Secas: V Congresso De Letras: Discurso Popular E Identidade Cultural. Caratinga, 17 a 21 de abril, 2005.

BOSI, Alfredo. História Concisa Da Literatura Brasileira. Editora Cultrix, São Paulo, 1994.

CABRAL, Marina, Equipe Brasil Escola. Publicado por Sabrina Vilarinho em Artigo de opinião. Disponível em:  http://www.brasilescola.com/redacao/artigo-opiniao.htm.

CÂNDIDO, Antônio, A Educação Pela Noite E outros Ensaios. Editora Ática, São Paulo, 2000.

CÂNDIDO, Antônio, Ficção e Confissão — Ensaios Sobre Graciliano Ramos. 3ª Edição. Revista Pelo Autor. Design e Editora Ouro Sobre Azul, Rio de Janeiro, 2006.

CÂNDIDO, Antônio, O Direito À Literatura E Outros Ensaios. Angelus Novus, Coimbra, 2004.


DOSTOISVSKY, Fiodor M. Memórias Do Subsolo E Outros Escritos. Editora Paulicéia, São Paulo, 2002.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos, capítulo VI "O trabalho do sonho”, Obras Completas, vol. V, Editora Imago, Rio de Janeiro, 1972.

GOODNEWS, Decio, Numa Sociedade Acrítica Tudo É Normal, Artigo Disponível no site http://www.recantodasletras.com.br. HOPEFAITH, Sereno, Tudo Normal? Tudo Neymal! Disponível em http://www.usinadeletras.com.br.

RAMOS, Graciliano, Vidas Secas, Editora José Olympio, Rio de Janeiro, 1953.

SARTRE, Jean-Paul, O Ser E O Nada, Editora Vozes, Petrópolis, 2005.

SERENO, Hopefaith, A Sociedade Organizada Pelo Crime Organizado, Artigo disponível em: http://www.usinadeletras.com.br. GOODNEWS, Decio, Artigo disponível em http://www.recantodasletras.com.br.

WEBER, Thadeu (webert@pucrs.br): A ideia de um "mínimo existencial" de J. Rawls. Kriterion. Revista de Filosofia, n° 127, Belo Horizonte, junho, 2013.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 10/06/2014
Alterado em 17/06/2014


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