Textos

Coesão & Coerência Em Roteiros De Cinema (I)
“Amor, Trabalho E Conhecimento
São Os Centros Da Nossa Vida.
Deveriam Também Governá-la.”
           (Wilhelm Reich)


RESUMO

Coesão e coerência nascem, caminham e crescem juntas. São como gêmeos univitelinos. Não apenas se parecem, mas têm intensa dependência interativa. Coesão e coerência sempre mantêm uma relação harmoniosa. Uma não existe sem a outra. Nenhum discurso pode ser articulado de maneira aceitável sem a presença e a participação ativa de ambas. Simultaneamente. Sabemos por experiência própria que os vários segmentos literários de um texto, em quaisquer dos gêneros de escrita e comunicação social, necessitam estabelecer unidade de sentido, motivação, desenvolvimento e composição em seus propósitos de aliciar os leitores ou espectadores de um texto alfabético, numérico, imagético. Ou alfanumérico. Sabemos ainda que a coesão é a cola que une a unidade semântica entre as relações proximais que fazem um texto se desdobrar na expressividade de seus enunciados. A busca de uma narração excelente numa história é sempre o principal objetivo de quem escreve. Se o leitor de um Roteiro de cinema não se sente motivado pelo entusiasmo da narrativa, certamente não irá em frente e o filme não poderá ser produzido.
Compreendemos que, em toda obra de arte, em todo texto, há a pretensão do autor em conduzir o leitor ou o espectador a um lugar de sua imaginação a partir do qual ele possa construir seus próprios e íntimos sentidos. A coesão e a coerência os conduz na trilha que orienta, cria e reproduz imagens em outras imagens memoriais, por vezes intertextuais, de natureza pessoal e coletiva. A coerência, consideremos, deve muito aos referenciais alusivos de uma relação memorial (referencial) definida “a priori” entre os elementos culturais que permitem ao leitor ou espectador agenciar a inter-relação na rede de correspondência neural que conduz, primeiro, à compreensão, depois, à aceleração dos conteúdos mentais em busca da construção de um novo e, por vezes, inusitado sentido. O tempo de uma pessoa é um valor subjetivo superior. Ela, pessoa, fica agradecida quando um texto ou imagem valoriza seus conteúdos psicológicos a ponto de suscitar uma superação da qualidade anterior dos mesmos. Uma boa história, contada através de imagens, possui a possibilidade de suscitar essa experiência. Transformando-a, por vezes, em uma epifania. A coesão e a coerência textual possuem essa propriedade de agilizar o aprendizado da própria natureza. Tudo que uma pessoa aprende, aprende, primeiro, com sua percepção. Aprende, primeiro, consigo mesma. Os personagens de uma história pensam e sentem por si mesmos. Mas seus pensamentos e sentidos não seriam de nenhum valor se o leitor e/ou o espectador não fossem capazes de empatizar e enfatizar suas representações. A partir de sentidos e percepções. A coesão e a coerência textual excelentes conduzem a imaginação ao domínio de conhecimentos técnicos a partir dos quais, as imagens subjetivas realizam novas combinações e suscitam uma mudança de percepção, de modo que o mundo interior desse leitor e/ou espectador continue a crescer e a evoluir. Superar-se. Este artigo insere o Roteiro de cinema enquanto gênero textual na prática de análise linguística a partir dos postulados teóricos do estudo da coesão e da coerência textual. A metodologia utilizada, desde que inexiste uma bibliografia sobre o estudo de Linguística Textual que mencione o Roteiro de cinema, é a pesquisa em livros e a inserção dos postulados teóricos de criação de um Roteiro que justifiquem os processos de escrita do mesmo, a partir da interação com as teorias linguísticas existentes. Serão mencionadas as instâncias estruturais de maior relevância na composição técnica e estética de um Roteiro de cinema: Argumento, Sinopse, noções de Tempo e Espaço cinematográficos, Personagens, Beat, Conflito Principal, Estrutura, Sequência, Cena, Ato, Tema, Trama, Subtrama, Ponto de Virada, Cabeçalho, Ação, PV (ponto de vista), Voz em Off, Diálogo, Flashback, Rubrica, Estilo. Outros. Este artigo científico posiciona-se enquanto precursor de outros que certamente virão a contribuir com o exame, a investigação e o desenvolvimento das argumentações desenvolvidas no corpus bibliográfico mencionado.


A COESÃO E A COERÊNCIA NA
LINGUAGEM ROTEIRIZADA

Inexiste na teoria da comunicação de gêneros textuais literários, referências a roteiros de cinema. Há uma indisposição dos teóricos de comunicação com a linguagem cinematográfica. Falam em centenas de possibilidades de gêneros textuais literários, mas, em nenhum momento, mencionam o roteiro cinematográfico.

Nele, Roteiro, como verá nosso leitor, Coesão e Coerência são igualmente necessárias. Talvez seja até mais essencial mencioná-las no Roteiro, desde que, como afirma o dito popular, uma imagem vale por mil palavras. E um roteiro de cinema é um guia de imagens. Imagens destinadas a contar uma história, segundo os procedimentos aceitos por profissionais da área. Cinematográfica. Roteiro é dissertar por imagens.

Comecemos pelo (Argumento). Você vai agora acompanhar o processo de fazer um filme a partir de um Roteiro sobre uma garota (Personagem Principal) que teve um sonho: “O Sonho Lacaniano de Camila”. O Roteiro é uma adaptação desse mencionado conto. Conto esse que narra a história do sonho que originou o (Enredo ou Trama). O Roteiro precisa mostrar quais as imagens desse sonho são as mais adequadas para impressionar o espectador através de (Cenas e Sequências).  

As (Cenas e Sequências) contêm os (Diálogos) e os (Beats) necessários que dinamizam os conflitos internos da (Personagem Principal) com relação às suas reações e questionamentos de natureza psicológica, assim como expõem os conflitos externos, tipo os com seu psiquiatra e ou com suas amigas: Marta Lambs e Edna Manhattan.

Indaguemos: como elas, imagens, interagem com os desdobramentos dele, sonho? Quando? (Tempo) ela sonhou? Quanto? (Tempo) ela sonhou? Onde? (Espaço): sonhou na cama em seu quarto de dormir, se no sofá vendo TV, se no divã do psiquiatra, ou na cama do motel?

O roteirista, consideremos a hipótese, precisa mostrar (sempre através de metáforas imagéticas dinâmicas interiores e/ou externas) como acontecem os conflitos vicinais e o Conflito Principal inseridos nas subtramas ou na Subtrama. O Roteirista precisa saber como desenvolver da melhor forma possível os conflitos e gestos (Beats) inseridos nos tic-tics nervosos dos (Diálogos) que suscitam maior ou menor polifonia (diversidade de conteúdo discursivo).

"A coesão sequencial diz respeito aos procedimentos linguísticos por meio dos quais se estabelecem, entre segmentos de texto (enunciados, partes de enunciados, parágrafos e sequências textuais) diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmáticas, à medida que se faz o texto progredir (...). O texto é, como diz Weinrich (1964), uma “estrutura determinativa” cujas partes são interdependentes, sendo cada uma necessária para a compreensão das demais. Esta interdependência é devida, em parte, aos diversos mecanismos de sequenciação existentes na língua" (Koch, A Coesão Textual, p. 53).

Estabelece este trabalho que os processos linguísticos na redação de textos literários são também válidos para a construção de imagens num Roteiro de cinema. A presença deles evidencia-se nele, Roteiro, da mesma forma que os textos literários, o Roteiro consiste numa “estrutura determinativa” cujas partes interdependentes dependem de sequenciações técnicas e formais de acordo com o gênero em pauta: Roteiro. Roteiro é cachoeira. De imagens.

Ao escrever o Roteiro cada autor desenvolve certos aspectos formais que fazem parte de sua maneira ou de se expressar cinematograficamente (Estilo). O Roteirista passa a desenvolver e narrar e/ou fabular, através das imagens suscitadas no texto original do conto “O Sonho Lacaniano de Camila”, de olho no objetivo de atingir o Clímax no terceiro (Ato) do Roteiro cinematográfico que finaliza o filme.

Podemos observar que as palavras entre parênteses se sobressaem das demais no sentido de que fazem parte do conjunto de termos técnicos utilizados na corrente de imagens cinematográficas que compõem o texto no gênero Roteiro.

As imagens do Sonho Lacaniano de Camila suscitam o (Tema). Seriam essas imagens produto de uma imaginação fértil? Ou de expressões oníricas de traumas? São elas produtos de sua vida atual ou de vivência ontogênica ancestral? As imagens são coerentes ou ilógicas? São imagens formais ou de intensidade alucinógena?

O Roteiro, passo a passo, começa pelo primeiro (Ato) que finaliza no primeiro (Ponto de Virada). Se o filme for um Curta-Metragem de 45 minutos, esse primeiro (Ponto de Virada) ocorrerá entre os dez ou doze minutos. Aproximadamente.

Após ele, primeiro (Ato), os desdobramentos da história chegam ao final do segundo (Ato), entre trinta e trinta e cinco minutinhos. Nele, final do 2º (Ato) o Roteiro indica o segundo (Ponto de Virada) em torno dos trinta a trinta e cinco minutos. De que maneira o Roteirista vai contar essa história em três (Atos) de modo que, ao final do terceiro (Ato) o (Clímax) faça o espectador ficar satisfeito intelectual e emocionalmente?

Satisfeito emocional e intelectualmente por ter pago o ingresso e reciclado os conteúdos de sua mente, formatando uma superação de conteúdos sob nova mundividência, a partir das percepções pessoais e coletivas sugeridas pelo autor do conto que motivou a (Adaptação) cinematográfica do “Sonho Lacaniano de Camila”.

Se devidamente contente, o espectador com certeza divulgará o filme, baseado a partir do “Sonho Lacaniano de Camila” que se tornou também parte de seu psiquismo e de suas maquinações psicológicas. Seus pensamentos agora se permitem raciocinar a partir das convenções aceitas por seus raciocínios. Pela mensagem do sonho que ele terá de decifrar também. Ao seu modo. À maneira de suas referências. Culturais.

Se muita gente gostar, questionar, discutir, badalar... Se o filme servir para transgredir, mesmo que provisoriamente, sua maneira de pensar (do espectador), ele se posicionará nas mídias enquanto um filme Cult, e/ou num “blockbuster” cinematográfico: ao atingir e motivar espectadores de todas as classe sociais, idades cronológicas. Em pouco tempo ele ficará restrito ao público de museus. Do cinema.

Considerando-se que cinema é, não apenas entretenimento, mas gênero de primeiríssima necessidade social (comparado ao futebol), que faz nascer na mente dos espectadores novos pontos de vista sobre a atividade psicológica, política, econômica, social e jurídica, não é pouca coisa criar um Roteiro que consiga esses resultados coletivos de expectação expressiva. O mundo globalizado via satélite terá ganho uma chuva de meteoritos tipo raios catódicos TVvisivos, cinematográficos e internéticos.

O ROTEIRO COMEÇA A
ACONTECER NO PAPEL
(E/OU NO MONITOR)

De maneira resumida vamos sintetizar os itens aqui mencionados de modo a criar a formatação adequada à construção “literária” das imagens do Roteiro do filme “O Sonho Lacaniano de Camila”.

(Argumento):

Camila, 25, aparência adolescente, sonhou que passarinhos saíam da vagina. Esses partos espontâneos não sugeriram desenvolvimento fetal. Encontrava-se ela de cócoras no sofá da sala de jantar e olhava para a calcinha preta sendo bicada por passarinhos que começaram a sair do colo do útero pela vulva. Ao cruzar a linha da calcinha começavam a voar em seu redor.

Camila sai em busca de uma amiga no apartamento dela no bairro dos Jardins. Queria contar seu sonho, mas não a encontrou no apartamento de uma amiga. Não encontrando a mesma, sentindo-se oprimida pela presença da amiga com a qual não simpatizava, resolve sair apressadamente em direção ao divã do analista. Estava apreensiva. E quase na hora do começo da análise.

Após muitos conflitos internos, resolve contar seu estranho sonho ao psiquiatra. O analista ouve calado, fazendo suas anotações. No final da sessão ela, desculpando-se, atende o telefonema da amiga no celular. A amiga por sua vez narra rapidamente um sonho que teve. Camila diz que depois liga para ela, desliga o celular e transmite o sonho de Edna ao psiquiatra que, após ouvi-lo, dá algumas dicas. Vagas dicas de interpretação.

Depois que ela sai da sessão, o psiquiatra grava alguns comentários sobre a interpretação psicanalítica do “Sonho Lacaniano de Camila”.

(Sinopse):

Camila, muito apreensiva, busca em sua amiga Edna Manhattan Nestor, um apoio psicológico para a interpretação pessoal de um estranho, mórbido e estético sonho. Não a encontrando em seu apartamento, dirige-se ao consultório do psiquiatra e, após várias atitudes de indecisão, resolve narrar o sonho ao médico antes mesmo de conversar com ela, Edna. O tempo da análise havia terminado. Ela atende a um telefonema desculpando-se por ter esquecido o celular ligado. A amiga Edna fala dizendo ter tido,   enquanto dormia, uma enigmática sequência de fenômenos psíquicos que, de algum modo, mantinham correspondência com seu próprio fenômeno onírico (de Camila). Ela sintetiza verbalmente o sonho da amiga e o médico sugere que houve sincronicidade (Jung) entre ambos os eventos. Oníricos.

O (Argumento) e a (Sinopse) precedem e antecipam os acontecimentos que serão narrados na linguagem técnica específica do Roteiro. São linguagens descritivas que antecipam as (Cenas) e (Sequências) que se desenvolvem logo após o enunciado do (Cabeçalho) que indica o (Tempo) e o (Espaço) dos acontecimentos narrativos.

"(...) como acontece na recorrência de termos, a cada representação do conteúdo, ele sofre alguma alteração que pode consistir, muitas vezes, em ajustamento, reformulação, desenvolvimento, síntese ou previsão maior do sentido primeiro. Cada linguagem possui uma série de expressões linguísticas introdutoras de paráfrases (...). Em todo enunciado fala-se de um determinado estado de coisas de uma determinada maneira: isto é, ao lado daquilo que se diz, há o modo como aquilo que se diz é dito: Recorrência de recursos fonológicos segmentais e/ou suprassegmentais. Tem-se a existência de uma invariante, como igualdade de metro, ritmo, rima, assonâncias, aliterações..." (Koch, A Coesão Textual, pgs. 56/57).

Podemos observar que os mecanismos literários constitutivos dos textos nos diversos gêneros, têm composição semelhante. As classes de palavras, sentenças, os conectivos nos processos de ordenação e sequenciação temática, os tempos verbais e outros fenômenos narrativos, equivalem-se aos mecanismos expositivos da história no Roteiro de cinema. Ficam evidenciados os processos de registro e exposição semelhantes, e as diferenças de terminologia entre eles: os textos de gêneros literários das escolas literárias e a textualidade do Roteiro:

FADE IN

(Cabeçalho):

1. INT. DIA. RUA AUGUSTA. BAIRRO JARDINS. SÃO PAULO
(Ação):

CAMILA busca ansiosamente a amiga EDNA dirigindo-se ao apartamento de MARTA após estacionar o carro. No rosto a presença do desejo de expor seu sonho buscando apoio na amizade entre elas, antes de expô-lo ao psiquiatra.

(Cabeçalho):

2. INT. DIA. JARDINS. APARTAMENTO

(Ação):

CAMILA aperta a sineta. Ao adentrar o apartamento de MARTA, após beijinhos e cumprimentos, senta-se e depara-se com certa provocação dela:


(Diálogo PC) MARTA
(Rubrica)             (provocativa)


Tudo em sua família parece certinho
demais. Pelo menos de seu ponto de
vista.



(Diálogo PP) CAMILA
(Rubrica)            (afirmativa)


Vivo num ambiente familiar harmonioso,
onde descascar uma cebola na cozinha
parece uma delícia sem fim. Vou ter de
sair agora, senão perco a hora de
cinquenta minutos, mais ou menos,
dependendo da disposição do analista.


Tivemos contato com as atitudes comunicativas, algo tensas, entre duas personagens, a principal (Camila) e a da coadjuvante (Marta). A linguagem do Roteiro se expôs em suas principais vertentes narrativas: (Cabeçalho), (Personagem Principal), (Uma Personagem Coadjuvante), (Ação), (Diálogo), (Beat), (Rubrica). Esta é a maneira como as personagens do diálogo são inseridas na linguagem do Roteiro: nome das personagens em caixa alta no meio da página, com as falas digitadas em margens mais estreitas que num texto de gênero literário que não o Roteiro.


(Beat): como podemos observar, houve uma troca de “gentilezas” no comportamento entre as personagens do diálogo acima. Essa troca de “delicadezas” ação/reação pouco amigáveis entre personagens caracteriza a ação da cena em dois níveis: o externo (a ação que a personagem parece estar a fazer) e o interno (subtexto) que induz o espectador ou leitor das imagens a saber o que a personagem ou personagens estão a fazer realmente. (Beat) é o menor momento psicológico de uma atuação.


Numa cena mais longa podem ser incluídos inúmeros (Beats). Frases de representações psicológicas que se intercalam no (Diálogo) tipo réplica/tréplica, nas quais a presença de contestação, objeção, refutação, insinuações, produz uma série de ações/reações que fornecem eficiência aos conflitos. Conflitos esses que mantêm vivas as expectativas de ações e acontecimentos inusitados com o propósito definido de manter plugado o espectador no desenvolvimento da história do “Sonho Lacaniano de Camila”.


"A ordem de apresentação desses elementos, o modo como se inter-relacionam para veicular sentidos, as marcas usadas para esse fim, as famílias de significados as quais as palavras pertencem, os recursos que permitem retomar coisas já ditas e/ou apontar para elementos que serão apresentados posteriormente, enfim, todo o contexto linguístico — ou co-texto — vai contribuir de maneira ativa na construção da coerência" (Koch & Travaglia, A Coerência Textual, p. 59).


Os teóricos da Linguística não são motivados à menção do Roteiro enquanto linguagem nos gêneros textuais. Talvez porque as particularidades da terminologia da nomenclatura que define o “corpus” enunciativo do sistema de signos de enunciação dele, Roteiro, exija uma mais complexa composição de sentidos que o faz distinguir-se de outras formas também “literárias” de expressão.

A forma “literária” de expressão em um Roteiro de cinema é a linguagem visual. Por ser uma linguagem que privilegia os processos de estabelecimento do vocabulário para suscitar a percepção dos sentidos através de imagens, ela, linguagem “literária” do Roteiro, é mais complexa. Exige uma terminologia diversa de outros gêneros literários.

Nele, vocabulário do Roteiro, não é preciso especificar elementos de formatação específica da linguagem cinematográfica tipo enquadramentos, ângulos de câmera, movimentos de câmera, planos sequência, primeiro plano, plano americano, plano geral, close-up, steadycam, câmera subjetiva, plongée, contre-plongée, travelling (afastamento/aproximação), câmera normal, plano aproximado, meio primeiro plano, tilt, panorâmica, movimentos óticos, entre outros.

O Roteiro de cinema não é um bicho de sete cabeças. É apenas um guia de imagens descritas através de cenas e sequências que servem de base para outros estágios na produção de imagens cinematográficas, tipo roteiro técnico, que se sucede a outros estágios de produção, até a exibição do primeiro copião do filme.

NO DIVÃ DO PSIQUIATRA

3. INT. DIA. CONSULTÓRIO DO PSIQUIATRA

Camila, mãos apertam-se, ela desliza os dedos por sobre os braços. O pescoço gira de um lado para outro, os olhos sondam por cima o psiquiatra, lábios se comprimem, cruza as pernas e as descruza logo depois. Sempre a olhar fixa e interrogativamente o médico.


CAMILA
      (incômoda)

  
   Não sei se é certo contar esse sonho.
   Muito íntimo. Foro íntimo. (Calou-se
   e voltou a olhar desconfiada para o
   médico). Preciso mesmo contar esse
   sonho? (Os pés separaram-se, os joelhos
   comprimiram-se. Baixando o queixo
   levantou os olhos interrogando o dr.
   que permanecia impassível).


                PV DO PSIQUIATRA
                 (indiferente e interrogativo)

      
           PV DE CAMILA
            (desconfiada)
                                    

Camila fixa o rosto do médico. (V. O.):
“Olha a cara do sem vergonha. Ele quer que eu
conte. Esse sonho é muito comprometedor. Olha
o jeito que o filho da puta tá me olhando. Esse
sonho me faz parecer oferecida. Falar de meu
xibiu para esse sacana. Não! Não vou não! Olha
como ele está curioso. Mas disfarça bem!”.


       CAMILA

Subitamente Camila abre a boca. Os lábios
movem-se querendo dizer, mas não dizem.

      
            PSIQUIATRA


Levanta os dedos destros até o queixo.


              CAMILA
    

Para de hesitar e abre-se de uma vez:

                                  
          Sonhei que saía passarinho de meu
          xibiu. Não, não um passarinho. Vários,
          sei lá, dezenas, centenas. Mas não doía
          nada. Eu ficava acocorada no sofá da
          sala e olhava a calcinha preta rasgada
         pelo bicar dos passarinhos que saíam
         do canal vaginal... Estava tão, tão, como
         dizer? Superlativamente espantada e ao
         mesmo tempo encantada na contemplação
         desse fenômeno, que pareci satisfeita com
         a visão dos bichinhos saindo, alados, da
         vagina.


Este é o primeiro (Ponto de Virada) do Roteiro. Camila, afinal, resoluta, ganha de sua inibição e conta ao médico seu sonho. As tensões pessoais, por momentos, parecem diminuir.

         CAMILA
  
   Tá entendendo doutor? Saíam passarinhos
   De lá de dentro. Do vinco. Da racha.
   Entende? (Ela aponta o dedo indicador destro
   em direção à vagina).

     PSIQUIATRA

Recosta-se no espaldar da poltrona.

         CAMILA
                      
                     Um após o outro, eles esvoaçavam
                     pela sala. Ganhavam espaço pelo
                     terraço e se dirigiam a algum lugar
                     predeterminado que eu não tinha
                     ideia de onde seria. Para onde
                     estavam se dirigindo ao celebrar
                     os movimentos em desassossego
                     das asinhas?


4. INT. DIA. SOFÁ. SALA. APARTAMENTO DE CAMILA

        
        CAMILA

(Flashback do sonho) De cócoras no sofá, ela olha os orifícios na calcinha preta rasgada pelas bicadas dos passarinhos que continuavam a promover a inquietação das asas. E logo depois voavam em direção ao mundo além dos limites da janela do apartamento.


5. INT. EXT. DIA. SALA DO APARTAMENTO. PAISAGEM EXTERNA


(Flashback do sonho) Perplexa, Camila acompanha com os olhos atentos de espanto e admiração os pássaros ganharem espaço a voar pelas ruas, praças e avenidas da cidade. Sempre em direção a um lugar que ela não sabia onde. Quando levanta-se do sofá pisa no chão de cimento de uma necrópole.


"É o nosso conhecimento do mundo que nos faz considerar estranho o texto. Sabemos, por exemplo, que o sol não brilha à meia-noite. Que não é possível alguém enforcar-se num pé de alface. É também esse conhecimento que nos permite detectar uma série de contradições: a princípio é dito que o cego estava de roupão e, mais adiante, que estava pelado; que quem está despido não pode estar com a mão no bolso, que não se lê o jornal quando se está absorto em pensamentos; que não se fala quando não se está calado; que quem se enforca não recebe honrarias; que algo que gira não pode estar parado; que um objeto não pode ser redondo e quadrado ao mesmo tempo. É a partir dos conhecimentos que temos que vamos construir um modelo de mundo representado em cada texto — é o mundo textual. Tal mundo nunca vai ser a cópia fiel do mundo real, já que o produtor do texto recria o mundo sob uma certa ótica ou ponto de vista dependendo de seus objetivos. Crenças, convicções e propósitos..." (Villaça & Travaglia, A Coerência Textual, p.63).


Podemos afirmar com pertinência que cada texto produz sua própria coerência, sua própria expressão de sentido estilístico, semântico e estético. O autor presume a existência de um corpus de conhecimentos pertinentes ao leitor e/ou espectador, de modo que acredita haver correspondência entre as dimensões de mundividência (autor/leitor/espectador) ao construir entre eles uma ponte de sugestões pertinentes à multiinteração de sentidos. Sentidos sugeridos a partir das cenas e sequências.


O leitor deve ter observado que as marcas INT. EXT. (Interior. Exterior) são indicações de espaço, tais como APARTAMENTO e PAISAGEM EXTERNA:


6. INT. EXT. DIA. APARTAMENTO. PAISAGEM EXTERNA


               CAMILA
                     Os pássaros mostravam-se imensamente
                        agitados. Pareciam felizes. Súbito o sofá
                        estava num cemitério. Ai meu Deus! Entre
                        lápides, mausoléus e sepulturas. Apurei o
                        ouvido para saber por que razão a sonoridade
                        não chegava mais próxima e intensa.  Mais
                        condizente com a pouca distancia em que
                        alguns estavam. Seus gorjeios eram  trinados ados                 melodiosos ouvidos como se estivessem não                   não ao redor, mas num lugar distante.  



        PSIQUIATRA

O médico entrefechou as pálpebras como quem a observa de um lugar muito distante.

        
            CAMILA

         Ouvi e, estupefata, vi milhares de passarinhos
                 saídos de outros apartamentos em outros lugares
                 vizinhos ao prédio onde habito. Os espaços estavam
        conquistados pelos movimentos e a música das aves.
        Pareceu-me estar participando de um evento em que
        milhares, talvez milhões de outras mulheres também
        estivessem passando pela mesma situação de
        parturientes de pássaros. Algo tipo suspense de
        Hitchcock... Pairava no ar.


7. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO. DIVÃ

         CAMILA

Estendendo-se de corpo inteiro no divã, ela olha fixo um ponto do teto.                                      
                        

                       Por que voavam em direção às necrópoles?
                       Por que se dirigiam aos cemitérios com suas
                       cores e seus cantos? Por quê? Por que não
                       podiam sair vivos dos cemitérios? Sentir-se-iam
                       pegos pelos cadáveres? Vampirizados pelos
               mortos?  
        

8. EXT. DIA. RUAS, AVENIDAS, PRAÇAS E CEMITÉRIOS DA CIDADE        

Pássaros sobrevoam parques. Crianças, adolescentes, namorados, idosos, garis, executivos, mulheres... Jovens param seus skates e ficam pasmos olhando as milhares de aves dirigindo-se a algures. Suas cores, seus cantos fazem todos ficar extasiados. Após sobrevoar com grande alarde os espaços abertos da cidade, os pássaros parecem dirigir-se para dentro das necrópoles.


9. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO. DIVÃ

                            CAMILA

    (V. O. de Camila) Que força sobrenatural os
    privou por tanto tempo da liberdade? Onde
    eles estavam antes de saírem pelas vaginas? Por
    que se sentem tão ansiosos, agitados, e, vai saber,
    satisfeitos? Pássaros. Tantos e tão tensos.
    (Silêncio).

  
         PSIQUIATRA
(sons fricativos com a garganta)

                    Haum! Hum, Ham!


10. EXT. INT. DIA. DENTRO E FORA DOS MUROS DE NECRÓPOLES DA CIDADE. SÃO PAULO

Os pássaros estão em todas as sepulturas, sobre os monumentos, sobre as asas dos anjos nos mausoléus. Nos galhos das árvores, sobre os fios da fiação elétrica interior e externa dos cemitérios. Pousados sobre as fotografias das pessoas soterradas nos túmulos. Eles cantam, e voam, fazem acrobacias. As pessoas paravam, extasiadas e contaminadas pelas vibrações de nítida felicidade das aves. Pássaros saíam da sala de estar do apartamento de Camila, ao sair além-muros das necrópoles caíam em grande quantidade sobre as calçadas, os capôs dos carros, as mesas dos bares próximos. Agonizavam e morriam.


CAMILA


(V. O. de CAMILA) Cemitérios... Por que
não podiam sair vivos das necrópoles? Que
mistério sobrenatural perverso essas imagens
representam? Caíam mortos ao tentar sair
        da casa dos mortos. Estranho!!! Não sei o que
        significa!!!


11. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO


                PSIQUIATRA

Cruza e descruza as pernas.

           CAMILA

           A vida deles parecia depender da proximidade
           das covas. impressionante o contraste entre
           a alegria contagiante com que saltavam e gorjeavam
           trinados, cantorias de pássaros encantados por
           movimentos e cantos primaveris. Logo depois:
           Agonia, Silêncio. Imobilidade. Morte.

        
                                        PSIQUIATRA
          (com uma careta olha o relógio)

                    CAMILA

Alguém entrou em meu psiquismo para
provocar esse sonho? De qualquer forma é
um sonho perturbador! Sugere crianças, anjos,
que nascem e antes de amadurecerem, morrem.
Morrem. Morrem devido à proximidade das
influências que as cercam: a ascendência da
autoridade e a influência dos mortos. A sala
de jantar é o solo do cemitério. Isso é um
presságio?! Um pesadelo!? Que quer dizer
toda essa coisa?


Verifiquemos agora que, na 2ª Virada do Roteiro, os pássaros morrem e a (Principal Personagem), Camila, está um tanto quanto pânica. Ela quer respostas mas seu analista não está nem aí para a ansiedade com que ela precisa dessas respostas. A ação da história mudou de paradigma. A interpretação do sonho provoca grandes angústias. O 2° (Ponto de Virada) é logo acompanhado pelo 3° (Ponto de Virada) que é o telefonema de sua amiga Edna Manhattan com quem Camila tanto desejava falar antes da sessão de terapia.


“O cinema não é uma linguagem literária”, dizem a maioria dos que nele trabalham. Os roteiristas em sua quase totalidade afirmam a mesma coisa, a exemplo de Hugo Moss quando diz: “Roteiros de cinema não se enquadram em categorias literárias”. Mas, como diria o dramaturgo Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”. Não sejamos unânimes. Leiamos a opinião do cineasta Luiz Fernando Carvalho que filmou “Lavoura Arcaica” uma (Adaptação) literária do romance do escritor Raduan Nassar:


"Não existe uma receita pronta quando pensamos em (Adaptação). Muito menos um caminho único e inequívoco a ser seguido. É comum que algumas obras fujam da concepção usual do que seria uma adaptação. Uma dessas exceções é o filme Lavoura Arcaica de Luiz Fernando Carvalho. Ele não utilizou roteiro para transpor o livro para o cinema. Houve um contato muito mais intenso (sem intermediações) entre o literário e o cinematográfico. Ao optar por manter o texto literário em seu filme, Luiz Fernando Carvalho decide por fundir e potencializar o que há de melhor nos dois suportes. A manutenção da linguagem do livro no filme parece ter sido a única maneira de não perder a força narrativa das palavras de Raduan. Ao invés de promover o embate entre os signos literário e imagético, a decisão mais acertada foi a de comungá-los. Apesar das influências mútuas é inegável que literatura e cinema são linguagens diferentes. A primeira sustenta-se no verbo, enquanto a segunda utiliza-se de diversas linguagens para enriquecer-se. Além da própria linguagem verbal utilizada nos títulos, créditos, legendas e diálogos" (Palimpsesto, n° 12, p.3).


Lembremos que este Roteiro sobre “O Sonho Lacaniano de Camila” é também uma (Adaptação). (Adaptação) de um Conto. (Adaptação) da linguagem de texto literário no gênero Conto, para a linguagem de texto sobre imagens das cenas e sequências contidas na narração de um Roteiro.


Para atingir nosso objetivo temos de, primeiro, compreender as motivações e os significados do texto original, seus objetivos literários, a psicologia de suas personagens, o contexto social no qual está manifesta a história.


Primeiro temos de compreender quais relações de interesses, coesão e coerência que mantêm as personagens interdependentes.  Qual dessas personagens se sobressai e pontifica na narrativa. Quais os questionamentos pessoal e social contidos na história literária original no gênero Conto. Por mais que a linguagem cinematográfica queira se esquivar das associações com a linguagem literária original, não pode. Dela depende o roteirista.


Segundo: é preciso que o autor da (Adaptação) tenha conhecimento da linguagem descritiva específica do Roteiro cinematográfico.


Estamos a caminho do clímax, após o 3° (Ponto de Virada). (Clímax) e (Ponto de Virada) por vezes são igual à mesma coisa. Um mesmo “The End”.  Não temos a mesma atitude do cineasta diretor do filme Lavoura Arcaica. Buscamos a perfeição técnica da formatação das imagens sugeridas pelo Conto. Roteiro é Roteiro. Conto é Conto. Duas linguagens interdependentes quando da adaptação do literário para o cinematográfico.


Roteiro = precisão, concisão, brevidade, objetividade: a imagem mais adequada possível à cada circunstância. As sucessivas interações de imagens precisam chegar ao (Clímax), considerando-se os interesses do espectador. De modo que todos os envolvidos no processo de produção do produto finalizado, o filme, tenham atingido a contento a cena final. E o espectador convicto de que valeu a grana paga pelo ingresso.



12. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO


Em sua ansiedade por obter respostas, Camila consola-se dizendo ao médico:


     CAMILA

Sonhar com pássaros, segundo meu
dicionário de interpretação de sonhos
quer dizer harmonia, alegria, entusiasmo
e amor... Sei não!



       PSIQUIATRA

            
Vamos falar mais desse sonho na
Próxima sessão.

        
  P. V. DE CAMILA

O rosto do médico permanece voltado para um bloco de anotações.


                                           CAMILA

Está certo. (Fala em off) “Eu bem que
queria trocar uma ideia com minha amiga
Edna antes de vir aqui”.

          CAMILA

Ela atende o celular satisfeita em falar com a amiga.


                             Edna, bom falar contigo.

Virando o rosto para o analista:

Desculpe, o celular estava ligado.

EDNA

Sonhei que estava vendo o Jornal
Nacional. O William Boner dizia
que milhões de corpos de, adivinha,
de pássaros, caíram mortos nas
proximidades de necrópoles no
mundo todo.

      
CAMILA


Preciso mesmo falar contigo. Daqui
a pouco. Agora não posso. Estou no
analista. Tchau! (Desligou).


INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO.

        CAMILA

Ao perceber que não havia desligado o viva voz, após inúmeras tentativas.

Porcaria! Eu nunca aprendo a mexer
direito com celulares. Com Internet.
Essas coisas eletrônicas. Desculpe
doutor.

          PSIQUIATRA

Atendendo o interfone.

Sim! Faça ela entrar em cinco minutos.
(Dirigindo-se à Camila): o nome disso
chame de sincronicidade.

          
                                           CAMILA

Dirigindo-se à porta.

     Sim, sim, sim o quê?

      PSIQUIATRA
      (explicativo)

O telefonema de sua amiga.
Sincronizou com seu sonho.

    
                                         CAMILA

Mexendo o dedo indicador da direita para a esquerda frente ao rosto.


                        Sincronizei! O sonho dela. Meu sonho!
O Jornal Nacional, os pássaros. Mortos.
Sincronia com a cidade. As necrópoles.
No mundo todo. Êta! Sincronaço. Tudo
sutilmente simultâneo.

      PSIQUIATRA

Ah! Sim! Por que você não lê o
Salmo 91?
  
         CAMILA

Saindo do elevador na garagem do edifício.
    

                        Salmo 91... Perigos escondidos...
Doenças mortais. Ele o cobrirá com
suas asas e debaixo delas estarei
segura. Não terei medo da peste que
se espalha na escuridão, nem dos
males que matam ao meio-dia.


13. EXT. DIA. AV. PAULISTA
    
Camila dirige o carro na morosidade do engarrafamento. Seu olhar passeia pelas janelas dos apartamentos dos edifícios.

                 CAMILA
          
        (Fala em off) Anjos vão segurar-me com
        as suas mãos para que meus pés não sejam
        feridos nas pedras. Esmagarei com os
        pés leões e cobras. Leões ferozes, serpentes
        venenosas... Ele me livrará do passo do
        passarinheiro.


14. INT. DIA. CONSULTÓRIO

      PSIQUIATRA

Falando no microfone ao gravar a própria fala:

Camila criou fantasias de maternidade múltipla,
um complexo de Eva a povoar a sociedade com
rebentos frágeis, sem liberdade possível, num
mundo globalizado pela futilidade consumista
e controlado pela onipresença de um
engajamento ético impossível de se realizar.


15. EXT. DIA. RUAS DA CIDADE. INT. DO CARRO DE CAMILA


                                           CAMILA

Fazendo uma careta de dor, ela olha em direção à região vaginal. Movimentos bruscos provocam incômodo. Gemendo ela apoia os calcanhares sobre o banco do carro ficando de cócoras nele.


16. INT. DIA. CONSULTÓRIO. SALA DO MÉDICO

               PSIQUIATRA

A suposta liberdade dos filhos (os passarinhos)
se afirmava muito rapidamente e logo acabava
em morte, assim que, sem tardança, saíam da
proximidade de seus ancestrais: os mortos.
Os mortos que ela mesma representava.


17. EXT. DIA. RUAS DA CIDADE. INT. DO CARRO DE CAMILA


O carro está parado no engarrafamento. As mãos puxam a saia à altura do abdômen. Horrorizada, ela observa a calcinha preta rasgada e passarinhos saindo da abertura entre os grandes lábios. Respingos de sangue nas coxas em decorrência das bicadas dos pássaros a fazem gritar e agitar-se demasiadamente.


18. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO

PSIQUIATRA

O sonho expressa, entre outras coisas,
a impotência da frágil consciência de
uma geração que, ao tentar ultrapassar
as fronteiras que a separam de uma vida
da qual não são capazes de se afastar,
conforma-se à dependência atávica, ao
medo estabelecido pela incorporação
através da história, de pensamentos e
valores interiorizados desde a vida
vegetativa no líquido amniótico.


19. EXT. DIA. TRÂNSITO. INT. DO CARRO DE CAMILA

Camila berra de medo e de dor. Seus gritos são abafados pelo ruído dos motores dos carros em lento movimento. Ela olha para o interior de outros carros onde vê pessoas que também estão aflitas tentando conter com deslocamento de mãos e braços, pássaros que tentam bicá-las com persistência.


20. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDIDO

PSIQUIATRA

O analista coça com a unha do dedo mindinho da mão esquerda o cavanhaque enquanto continua a gravar suas opiniões sobre a análise do sonho de Camila.

A morte dos pássaros, logo depois de
ultrapassarem a fronteira do mundo de
seus antepassados (o cemitério),
representa a idealização voyerista-
masoquista de personalidades infantis
que, na impossibilidade de criarem
sua própria depressão, sua própria
alternativa de vida, passam a simular
uma vida que não é deles, mas a de
seus mortos.


21. EXT. DIA. TRÂNSITO. INT. DO CARRO DE CAMILA


Camila busca sair pela porta do motorista. Um carro bate na lateral do seu, impedindo-a de abrir a porta do mesmo. Nuvens de pássaros projetam-se sobre as laterais das janelas buscando entrar pelas frinchas dos vidros não totalmente fechados.


22. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO

       PSIQUIATRA

A morte dos pássaros simboliza a expectativa
de vida de uma geração que, mal sai do útero
materno, começa a viver uma vida que é uma
extensão dos interesses e da personalidade de
seus mortos. Uma vida que afirma o suicídio
de suas ambições inexistentes.


23. EXT. DIA. TRÂNSITO. EXT. INT. DE CARROS

Pessoas debatem-se contra o ataque furioso dos pássaros. Um motorista irrefletidamente puxa de uma arma e atira, tentando atingir algumas aves. Os tiros quebram vidros do seu taxi e atingem outros carros que estão parados próximos ao seu.


24. INT. DIA. CONSULTÓRIO MÉDICO

A secretária dirige-se à paciente que se encontra na sala de espera, uma senhora perua balzaquiana. Ela mostra-se hesitante e, antes de entrar na sala do médico, desliga o telefone celular.  

SECRETÁRIA

A senhora pode entrar, por favor.

PSIQUIATRA

Terminando a gravação de suas análises preliminares do Sonho de Camila.

Como diria Walter Benjamim, diante do
inimigo e da expectativa deste vencer ao
impedir o impulso que realiza o princípio
                de vida e de realidade, resta apenas,
ao médico, realizar a tanatoscopia. Desde
que a consciência da impotência pessoal
(de si mesmo) e coletiva do Outro se satisfaz
e realiza apenas pelo assassinato em massa
hegeliano.

(AT:) O leitor observou algumas inconsistências na formatação do Roteiro. Isso se deve ao espaço disponibilizado para a redação do
mesmo neste site. Este espaço não aceita a formatação mais adequada. Nem as revisões posteriores à inserção do mesmo neste espaço).
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 24/01/2014
Alterado em 29/04/2014


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