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Holocausto Nunca Mais (PsychCity) — ROTEIRO DE CINEMA (IV)
188. EXTERIOR. NOITE. PÁTIO DO HOTEL. BARRA DO GARÇAS
O índio PERIMURICÁ aproxima-se de ROSSI que está dirigindo-se a um utilitário. TAUIL pergunta:
— PERI, você vai mesmo conosco? (ele balança a cabeça como quem diz: “Sim, sim”.)
(Um barco a vapor os conduz até Rondônia. Mudam de carro para uma camionete cabine dupla. Em Mato Grosso param num bar onde a TV-Canal 10 está exibindo um filme. Nele um personagem entrevistado por um locutor de jornal diz):
—“ Não fosse a amblose disforme e os ETs que trabalham com o governo dos Estados Unidos na Área 51, e em muitas outras, os ETs do mau, teriam escravizado a população da Terra, como fizeram em outros planetas, de outros sistemas solares, em outras galáxias.”
— “A Área 51 com aproximadamente 1550 quilômetros, condato de Lincoln no deserto de Nevada, uma área do complexo industrial militar sob administração da Nellis Air Force Range, possui túneis subterrâneos com 3651 X 61 metros.
— Este local de pesquisa tecnológica avançada, assim como outros, tipo a AUTEC, estão produzindo armas de dominação planetária assim como seres híbridos, humanos e máquinas, que garantem a escravização da população da Terra sob comando, comunicação e controle dos “homens de preto”, representantes do governo centralizado do planeta Terra na Nova Ordem Mundial.
— "A New World Order, diz o locutor do filme do dia na TV-Ghost, visa transformar a Terra numa colônia galáctica lemuriana.”
(A reportagem continua mostrando os subterrâneos da Área 51, agora abertos à reportagem. A voz em “off” informa):
— “Havia seis níveis de hangares subterrâneos. Todas as estruturas com formato de pentágono. A pesquisa de armas avançadas estava possivelmente em seus últimos estágios. Foram encontrados robôs gigantes com mini-mísseis acoplados à estrutura mecânica. Assim como seres híbridos humanóides.”
— “Um e meio milhão (l.500.000) desses humanóides já habitavam o planeta, mesclados à população de humanos. Em todas as metrópoles da Terra. Supõe-se que estavam todos preparados para substituir as principais autoridades nas principais instituições representativas de seus governos. Substituiriam parlamentares, autoridades militares e juízes do Judiciário. E também nas cortes supremas e em outras instâncias igualmente influentes no comando, comunicação e controle da sociedade.”

189. EXTERIOR. NOITE. TRECHO DE ASFALTO NA ENTRADA DA CIDADE DE GOIÂNIA
ROSSI (olhando compassivamente para TAUIL no banco de passageiro ao lado) — Esses filmes “full-time” do Canal-10 são impressionantes. Esse que vi hoje desvenda o mistério por detrás dos eventos de CHE.
(A TV-Virtual do Canal 10 mostra cenas que atestam a realidade da tecnologia extraterrena em conluio com governos da Terra, empenhada em semear pânico na população planetária. A Combustão Humana Espontânea era produzida pelo “efeito raios X” de alta potência, emitido por raios gama da central orbital invisível, a lua simétrica de configuração e simetria esférica, em rotação do outro lado da Terra, em simetria à da lua natural.)
— “Lua estranha. Ninguém vê”. — (PERIMURICÁ falou em dialeto karib. Comentou com sua expressão de quem sabe muito mais, tanto, que possui dificuldade em sintetizar verbalmente as coisas que vê em suas visões de Xamã da tribo Kalapalo do Alto Xingu.)
ADRIANE TAUIL — Que você disse, PERI? Traduz.
PERIMURICÁ — “Eles”, dominação, medo. — (PERI está com os olhos fixos, longe, dentro dele mesmo) — (complementa): Guerra. Horror. — Kugihe Oto. Akunga. Oto Cebus. Oto Kahü. Todos escravos.

190. EXTERIOR. DIA. TRECHO DE ASFALTO FRENTE À PRAÇA DOS TRÊS PODERES. BRASÍLIA
(O utilitário pára próximo ao jardineiro que apara a grama frente à Praça dos Três Poderes.)
ROSSI — Era daqui que as excelências pirateavam o país inteiro, a propósito de defender a democracia.
TAUIL — (chama a atenção de ROSSI para membros dos Três Poderes, curiosos, aproximarem-se) — A imagem da decadência prepotente. Eles não perderam a empáfia.
ROSSI — Confiavam na vitória da “Nova Ordem Mundial”. Na escravização total dos habitantes do planeta. Mesmo agora, derrotados pela “amblose disforme”, pretendem manter a soberba.
TAUIL — É, mas não conseguem. As articulações estão claramente oxidadas. E suas caras de paxás consumidores dos produtos produzidos pelos “spas”, não traem a inutilidade total de seus mandatos.

191. EXTERIOR. DIA. RUA JORGE CHAMAS. IBIRAPUERA. SÃO PAULO
(ROSSI se distancia deles . ADRIANE e PERIMURICÁ tentam achar o endereço do SPA da filha, ou neta, de TAUIL.)
ROSSI — “Deus não pode ser mantido vivo à custa de preces e injeções”.
(após alguns momentos de busca nas ruas desertas do Ibirapuera, o NATIVO chama por TAUIL.)
PERI — Aqui, venha vê, aqui!
(ADRIANE TAUIL lê a placa: “SPA Ariadne Tauil: GERIATRIA”)
PERI — (vê as faces de ADRIANE ficarem muito brancas, sem sangue) — Você está bem?
ADRIANE (o coração batendo muito rápido) — Essa ansiedade. Parece impossível alguém está nessa situação. Insustentável.

192. EXTERIOR. DIA. RUA JORGE CHAMAS. PARQUE IBIRAPUERA. SÃO PAULO
TAUIL — (olhando para PERI mostra certo nervosismo) — O lugar está vazio. Não funciona mais. (As folhas outonais das árvores são, em grande quantidade, levadas pelo vento ao redor.)
PERI — (fecha os olhos, seu corpanzil parece crescer com a inalação. Os pulmões se enchem de ar, como se este fosse uma substância medicamentosa) — Muita chuva. ROSSI não vem?
ADRIANE TAUIL — (nervosa, olha PERI apertar outra vez o botão da campainha) — Vamos, não há ninguém aí. Faz tempo essa lugar está desabitado.
PERI — (volta sua atenção para a câmera de vigilância que começa a se mover.)

193. EXTERIOR/INTERIOR DO SPA. DIA. SALA. MESA DO CONTROLE INTERNO DE MONITORES. PORTA DE ENTRADA
(Chico Cesar, o operador de monitores, está pasmo. Sua expressão ao ver a face de ADRIANE TAUIL é simplesmente horrorizada.)
CHICO CESAR — (muito nervoso, mal consegue articular as palavras) —QaaaquQuêe desejam? (encostando os olhos no monitor como se a atestar se é mesmo verdade o que vê) — Aquele maldito baseado! Mama África! Mas que coisa é essa? É muito novinha! Essa mulher não pode existir. (Olhando outra vez estupefato para ADRIANE, ele exclama: "Tá totalmente fora dos conformes".)
ADRIANE — (compreende o estresse do operador de vídeo-fone) — “Take it easy”. Meu nome é ADRIANE, este é o senhor PERIMURICÁ, Xamã do Xingu. Queremos visitar o SPA. Ficar um período como hóspede. Podemos entrar? Se não for incômodo!
CHICO CESAR — (gaguejando nervosamente) — AAndridriAdridriDRIane...Então é isso. Elalalá da equipipe Ostrowsky... Isso é queququê é progresso em geririatria... Cêcêcerto!!... Dra. Adridriadridriane... Então é isso... Um mememento... Momento, por favor!
(Ouve-se o ruído das lingüetas metálicas do trinco da porta de entrada que começa a abrir.)

194. INTERIOR DO SPA. DIA. CORREDOR DE ENTRADA E SALA DE ESPERA
(ADRIANE TAUIL e PERIMURICÁ são conduzidos por uma atendente enfermeira do SPA. Ela os recebeu com uma saudação em voz alta levantando o braço direito: “Fervet Opus”. Passam por uma grande sala de prática de exercícios. Nela se vêem compridas bandeiras vermelhas com a inscrição em preto: “Fervet Opus”. Algumas pessoas que não faziam exercícios aeróbicos estavam alojadas em poltronas estilo Luis XV.)
1° CLIENTE DO SPA — (levanta-se apressadamente e encosta o rosto no vidro que separa a sala de exercícios do corredor) — De qual SPA essa mulher deve ter vindo? Fantástico.
2ª CLIENTE DO SPA — (cara de muito admirada) — Eu também quero saber.
3ª CLIENTE DO SPA — (o rosto colado ao vidro, expressão abismada) — Bar-ba-ri-da-de! Agora sei que existe mesmo evolução em pesquisa geriátrica.
4° CLIENTE — (aproximando-se da parede de vidro com cara de espanto) — Isso sim é que é progresso em geriatria.
5ª CLIENTE — (olhando TAUIL afastar-se) — E dizem que este é o melhor SPA do Brasil...
1° CLIENTE — (ainda superlativamente admirado olha TAUIL sumir pelo corredor) — A Romênia possui mesmo os melhores SPAS do planeta.

195. INTERIOR DO SPA. DIA. SALA DE ESPERA CONTÍGUA AO JARDIM DE VERÃO
ENFERMEIRA GUIA — (faz gesto em direção às poltronas em estilo Luiz XV) — Por favor sentem-se e esperem um pouco.
PERIMURICÁ (chegando-se a um patamar circular de mármore sobre o qual estão alguns termos de chá. Ele fica matutando como servir-se.)
— “Que coisa essa! Ele pensa. Só tem pinça. Ninguém põe chá em pinça. Não pode”.
— (Ele observa pequenas vasilhas contendo líquidos de diversas cores, e exclama): — “Que raios de trambique é esse? Esse lugar só pode ser do mal. Estou com sede e não posso beber”.
(As etiquetas nos termos indicam: 19%, 20% e 21% de plasma antígeno. Ele olha para os lados ainda na busca, inútil, de algum copinho descartável ou canudo.)

196. INTERIOR DO SPA. DIA. SALA DE ESTAR/JARDIM DE VERÃO
(TAUIL está a lê um artigo da revista científica do SPA intitulado “Perenidade: A Realidade Do Sonho” — Dr. KLEIN ZADILETT. Enquanto ADRIANE lê o artigo, PERIMURICÁ continua concentrado numa possível solução do quebra-cabeças dos termos sem copos ou canudos ao alcance das mãos.)
PERIMURICÁ (olha de soslaio TAUIL lendo o artigo. Os olhos movimentam-se também em direção aos termos de chá. Como uma criança grande e traquinas, pega um dos termos e aperta o botão da saliência superior, onde, pouco abaixo, há um espaço vazio por onde sai um pequeno globo envolto numa membrana transparente. Dentro do qual há um líquido verde. A bolinha está aquecida.)
(ELE olha TAUIL de soslaio. Ela permanece concentrada na leitura do artigo. TAUIL tenta concentrar-se na leitura. Quando olha PERI, este disfarça, como quem não está fazendo nada demais.)
PERI (fora do campo de visão de TAUIL, joga a bolinha de uma para outra mão. De quando em vez sopra a bolinha no ar. Já agora ELE a lança no interior da boca. As bochechas se enchem de ar. A bocarra permanece fechada. ELE parece sufocar. Os olhos se enchem de lágrimas. Ele se concentra enquanto as lágrimas escorrem pelas faces rubras. De repente abre a boca num rompante e dela sai um jato de fumaça soprado para fora.)
(O rosto do ÍNDIO é de sofrimento. O corpo hirto, a visão contemplativa. Os olhos pasmos lacrimejam. Os cabelos eriçados. Ele aspira o ar e transpira pela boca, abrindo e afunilando os lábios para fora. A cena é simplesmente cômica. De quando em vez PERI abre a bocarra a expelir o excesso de vapor quente também pelas narinas.)

197. INTERIOR DO SPA. DIA. SALA DE ESTAR ADENTRADA PELO JARDIM DE VERÃO
(Chama a atenção de TAUIL a inquietação de PERIMURICÁ. ELA olha para ELE de maneira interrogativa, como quem pergunta:
— “Que está acontecendo”, PERI?
— Chá ruim! Muito quente! — PERI responde enquanto cospe o invólucro para o lado, quase a engasgar. Na carranca vermelha contraída, pequenas quantidades de liquens escorrem das fossas nasais. PERI ajeita-se na poltrona, os olhos ainda cheios de lacrimação. O índio enche as bochecas de ar soprando pela boca pequenas quantidades de vapor que saem também pelas fossas nasais.
(O nativo tenta se recuperar arfando, de vez em quando, ar pela boca entreaberta. Começa então a puxar metros de finíssimo fio verde que havia conseguido encontrar a ponta após introduzir os dedos indicador e polegar da mão direita na bocarra. PERI, por mais que puxe o fio, ele continua a teimar em continuar saindo. A situação se torna cada vez mais cômica e embaraçosa.)
— Aquilo é um medicamento, PERI, eu não teria feito isso! — A situação para eles é muito tensa. E TAUIL , por isso mesmo, não percebe a veia cômica da mesma. ELA volta a lê o artigo. Olha outra vez para PERIMURICÁ que ainda parece estar agitado com os desdobramentos da situação vexativa de ingestão da bolinha de chá.
(Adriana aproveita a passagem de uma enfermeira e pede um copo de água gelada para ELE. Em seguida continua a leitura que lhe parece muito interessante.)

198. EXTERIOR/INTERIOR. DIA. MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA NO PARQUE DO IBIRAPUERA
(ROSSI é atingido brutalmente por uma pancada na cabeça desferida com um pedaço de cano. Do grupo de quatro idosos conhecidos por “hot-dogs”, um deles diz:)
1° “HOT-DOG” — (o sangue escorre do ferimento na cabeça de ROSSI) — Ele não morreu. Vamos matá-lo logo!
2° “HOT-DOG” — (olhando para ROSSI desmaiado, sangrando) — Maldito “pig”.
(Eles levantam suas armas para bater no JORNALISTA. Um deles berra, impedindo o massacre.)
1° “HOT-DOG” — Esperem! Os malditos! Vocês não estão vendo? A aparência dele. Parece muito rejuvenescido.
— Caramba!
— Impressionante!
— Credo! Parece um adolescente.
4° “HOT-DOG” — Como os canalhas estão conseguindo esse resultado? Esse cara está rejuvenescendo ao invés de envelhecer. Isso é demais!
3° “HOT-DOG” — Precisamos saber como é que isso funciona.
— Os malditos “pigs” estão mesmo fazendo progressos.
— Não mata agora. Vamos fazê-lo falar.

199. INTERIOR DO SALÃO DE JOGOS. DIA. SALA IMPROVISADA DENTRO DO ESPAÇO DO MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA. PARQUE DO IBIRAPUERA
(Os idosos amarram ROSSI sobre um globo mapa-mundi enorme, sobre o qual jogam um tipo inovado de “war-game”. O grupo está admirado com a aparência rejuvenescida do JORNALISTA. Sua aparência jovial provoca neles o exacerbo de sentimentos de revolta contra a política de rejuvenescimento praticada nos spas.)
— Danação! (comenta uma senhora) — Poderia ser meu neto.
— Se você tivesse um, BELLA, mas não teve filho. Provocou BIAL, um senhor próximo a ela.
— Ele está envelhecendo às avessas? Comentou o ALEX TOMIX, aproximando-se do rosto de ROSSI.
— A bruxaria desses spas...! Ele vai sangrar até morrer? (criticou maliciosamente JACI CARRASCO, um velhote baixo e atarracado) — Melhor costurar logo esse ferimento, se quiserem que ele viva mais um tempo.
— Calma JACI, apaziguou a senhora ANOLANDA, o XANDE já está costurando o ferimento. Após catorze pontos, PADILHA cauteriza a cicatriz no couro cabeludo de ROSSI (linhas de sangue descem sobre o rosto do JORNALISTA.)
— Por que não deixaram sangrar até morrer? — (comenta a idosa TeTê Dopêlo). Afinal, o cara é um “pig-spa”. Pela aparência deve ter chips implantados no lugar de órgãos internos.
— Vivo é mais divertido, provoca NANDO HADADH, um hot-dog risonho, com cara de sádico compassivo.
(Submerso na ironia raivosa dos idosos hot-dogs, ROSSI está convencido que dificilmente escapará vivo desse lugar onde todos parecem loucos senis. Mas muito energizados para a idade.)

200. INTERIOR DO SALÃO DE JOGOS. ANOITECER. SALA IMPROVISADA DENTRO DO ESPAÇO DO MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA. PARQUE DO IBIRAPUERA
(Os braços amarrados em cruz sobre o globo, os olhos de ROSSI abrem-se temerosos do que poderá fazer com ele o hot-dog PADILHA que se aproxima com um bisturi eletrônico.)
— Agora vou abrir um talho em seu abdome, filho. Você entende! Precisamos saber que tipo de coisa puseram em você no lugar do fígado.
— Por favor, não faça isso, replica ROSSI. Expedição Norton! Lembram? Expedição Norton!
— Se você não é um deles, como explica sua aparência? Desafia GARIBALDES, um senhor com visível sotaque nordestino. Vocês fazem coisas muito piores com os hot-dogs aprisionados.
— Não sei do que estão falando! Hot-dog para mim é salsicha dentro de pão com mostarda e ketchup.
(A aflição extrema com que foi dita a frase do JORNALISTA provocou intensas risadas entre membros da platéia de “hots”.)
— O filho da puta ainda é cheio das gracinhas! Comenta CHARLES BROWN que parece exercer liderança sobre o grupo.
— Norton! Norton! Expedição Norton! Novembro de 2035. Lembrem! Vocês não têm memória? Estou com minha companheira de Expedição, ADRIANE TAUIL. Ela está lá fora. A fotógrafa da Expedição Norton! Expedição Norton!
(As risadas se fazem ouvir com maior intensidade. Gargalhadas soam de bocas escancaradas, surpreendentemente cheias de dentes. A platéia de “hots” está se divertindo mesmo.)
— TAUIL! Ele ainda confessa que conhece a pilantra assassina! Chefe da equipe médica da clínica TAUIL & OSTROWSKY. É muita safadeza!
— Vamos ver se compreendi. Você fez parte de uma expedição em
2035? É isso? E onde está seu envelhecimento, garoto? Hein? Hein? — Desafiou CHARLES BROWN (aproximando-se mais de ROSSI.)
— Quantos anos você tem rapaz? — Chega! Já é demais tanto cinismo. Corta ele que ele merece! Passa o bisturi para a MIRIAM PATOTA que ela faz logo o serviço. — Berrou o hot-dog ZÉ LOBÃO. E completou: Quantos anos você tem, rapaz?
— È uma longa história, se vocês me permitirem contá-la. — Falou ROSSI visivelmente cansado, olhando o idoso PADILHA (após o consentimento de CHARLES BLROWN), começar a cortar a superfície de sua pele à altura do fígado.
— O BERNARDO está trazendo uma coisa para você. Alguém do grupo berrou. — BROWN dá a entender ao PADILHA que cesse, por momentos, a “operação”.
(Entram na sala três sujeitos armados com revólveres e fuzis-metralhadoras, um deles entrega um pedaço de papel a outro que o encaminha ao chefe do grupo. Após ler o bilhete que ADRIANE havia posto no pára-brisa do carro para ROSSI, BROWN o repassa para outros membros do grupo. Alguém comenta):
— Parece que agora vamos ter de ouvir a história dele. — Ouve-se alguns protestos que fizeram contraponto com algumas risadinhas.
(Sinais de estresse e sono são evidentes em ROSSI. Alguém põe um comprimido em sua boca com um pouco de água e pressiona o maxilar. A cabeça do JORNALISTA pende para trás e depois para o lado e para baixo. A câmera fecha na imagem dele semelhante a um Cristo crucificado sobre o globo onde brilham os continentes desenhados em tinta fosforescente.)

201. INTERIOR DO SALÃO DE JOGOS. NOITE. SALA IMPROVISADA DENTRO DO ESPAÇO DO MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA. PARQUE DO IBIRAPUERA
(ROSSI despertou disposto, revigorado, agente de forças inusitadas. Dormiu 45 minutos. Pensou ter dormido pelo menos oito horas. O salão estava cheio de gente. Desamarraram-no.)
— Conte sua história, esperto, talvez você convença alguém de nasceu mesmo no século XX (risadas debochadas acompanham a fala de Charles Brown.)
— Vocês sabem muito bem de que a “amblose disforme” não foi o único fenômeno estranho aos acontecimentos que despovoaram o planeta. — ROSSI resumiu os acontecimentos. Ao lembrar as vítimas da CHE, das viroses, ele fala do Dossiê Jângal. Da chegada aos subterrâneos na Amazônia, da TV full-time, até a chegada na pousada em Barra do Garças.
(Ao terminar sua exposição dos eventos, ele vê a platéia mudar de atitude. Não estão, seus espectadores, tão debochados como antes dele começar a falar.)
— Preciso falar com ADRIANE TAUIL. Ela não sabe onde estou. Preciso procurá-la. Talvez ela tenha encontrado o SPA da filha e esteja lá.
(Muitas risadas se fazem ouvir outra vez. Sorrisos abafados transformam-se em gargalhadas.)
— Que coisa que disse pode ser tão engraçada? Não sou humorista. Vocês riem fácil demais. Parecem uma gangue de bufões.
— Escuta, filho, pega leve! O mundo agora está dividido entre os “hot-dogs”, que somos nós, e os “pig-spas”. A explicação vem de um idoso que parece ser o braço direito de CHARLES BROWN.
(As explicações sobre o mundo pós-“amblose-disforme” se sucedem. De repente todos querem falar. E trocar idéias com ROSSI.)
— Uma década depois das últimas crianças terem nascido, os barões do planeta investiram em pesquisa geriátrica e em rejuvenescimento. PADILHA explica não apenas a parte política e econômica dos eventos que modificaram radicalmente o planeta, mas em como as relações entre ricos e pobres se tornaram violentas e radicalizadas. Ao extremo.
— A preocupação com a vaidade tornou-se a única motivação de vida dos “pigs” que passaram a produzir produtos que apenas eles poderiam ter acesso ao consumo. Principalmente cosméticos, soros, chás, medicamentos de combate aos radicais livres. O soro hepático da longevidade, aliado à atividade física intensa nos “spas”, provoca um período de rejuvenescimento das células.
(Sucede-se à explicação uma preocupação geral em retirar ADRIANE e o índio PERIMURICÁ de dentro do “SPA TAUIL E OSTROWSKY”.)

202. INTERIOR. NOITE. SALA DE ESPERA. SUBNÍVEIS SUBTERRÂNEOS DO “SPA TAUIL E OSTROWSKY”. IBIRAPUERA
(O doutor IRWIN FEIFFER ao adentrar a sala de estar, faz a saudação nazista “Fervet Opus”, e convida ADRIANE a acompanhá-lo.)
— Entrem, por favor, faremos tudo o que estiver ao alcance para que sua estada seja a mais proveitosa possível. — O médico nem desconfia de que o sobrenome de ADRIANE é TAUIL. E de que, simplesmente, está a conversar com a mãe da dona da clínica no Brasil. Apesar da aparência dela ser bem mais jovem que a da Dra. ARIADNE TAUIL.
— Perfeitamente, doutor FEIFFER. — Responde ADRIANE, mantendo-se o mais distante possível de qualquer palavra que possa trair sua verdadeira identidade. Ao que tudo indica, a dona da clínica poderia ser mesmo sua filha. Ou neta.
— Romenos são realmente insuperáveis! Ele pega o braço de ADRIANE e começa nervosamente a apalpar sua pele, como se não acreditasse na textura da mesma. — Como podem ter chegado a esse grau de perfeição? Um tanto afetado ele exclama: Di-vi-no, é simplesmente i-na-cre-di-tá-vel, per-fei-ta de-ma-is. Que textura! FEIFFER pronuncia as palavras como se estivesse mais que comovido, extasiado.
— Deus! Vocês avançaram muito. As novidades devem ser realmente fantásticas. Que inusitada qualidade epidérmica! Os avanços geriátricos da equipe Ostrowsky são realmente fantásticos. — Olhando com certo desdém para PERIMURICÁ ele exclama: “O segurança vai acompanhar a inspeção?”.
— Ele nunca fica distante de mim. São ordens. ARIADNE responde com certa ironia, olhando sorrateiramente para PERI. Este, pousa a manopla no ombro de ADRIANE, numa mostra de intimidade que suscita uma expressão de incontrolável desdém do médico.
(A sala onde adentram é um laboratório de horrores. Dezenas de corpos de hot-dogs estão sendo assados vivos dentro de cápsulas rotativas nas quais vários medidores externos de temperatura e reações químicas indicam o gradativo estado comatoso das “cobaias” hot-dogs.)

203. INTERIOR. NOITE. ELEVADOR E SALAS SUBTERRÂNEAS DO “SPA TAUIL & OSTROWSKY”. IBIRAPUERA
(FEIFFER continua explicando como os processos químicos agem para expelir o humor aquoso das glândulas sudoríparas através das secreções viscosas que “exulam” das fadigas orgânicas dos hot-dogs.)
— Quanto mais resinosos os líquenes, melhores os resultados dos medicamentos geriátricos.
(Os comentários explicativos de FEIFFER soam aos ouvidos horrorizados de ADRIANE como se ele não fosse humano. E estivesse completamente incapaz da mínima empatia para com os hot-dogs presos às máquinas numa temperatura média mínima de 45°, padecendo indizíveis horrores para manter a viciosa vaidade dos “pigs”. PERIMURICÁ mantém a expressão de quem está, simultaneamente, enojado e contido.
— Infelizmente nessa fase, eles não duram muito tempo. A extrapolação orgânica do fígado ressecado, a fibrose e formação de nódulos, semelhante ao processo de cirrose, a bílis segregada inutiliza os subprodutos químicos das secreções...
(A causa da irritação, quase insuportável, tanto de ADRIANE quanto de PERI, está na excessiva soberba com que o doutor FEIFFER pronuncia as palavras. Como se afirmando a altivez para eles inexplicável, por estar partícipe dessa dominação excessivamente sádica da população de hot-dogs aprisionados para serem cobaias dessas pesquisas sobre o “soro da longevidade”.)

204. INTERIOR. NOITE. SALAS DO LABORATÓRIO EXPERIMENTAL DO “SPA TAUIL E OSTROWSKY”. IBIRAPUERA
(ADRIANE mostra-se realmente atordoada à vista de tanto sofrimento e ao mesmo tempo da absoluta insensibilidade do médio FEIFFER.)
— Os médicos juraram cumprir! Infelizmente a maioria deles apenas jurou! TAUIL mencionou de si para consigo a falta de ética do doutor.
— Como? Repita! Não ouvi!
— Ah! Não foi nada. Estava pensando em voz alta.
— Não tarda eles vão descobrir que você não é a pessoa que pensam ser. PERIMURICÁ, aproveitando certa distância ganha pelos passos apressados do médico, sussurrou para ADRIANE. — Aí a cobra vai fumar.
— Não dá para continuar por mais tempo, ela diz. Os olhos esbugalhados de estupefação fazem ADRIANE verter lágrimas ao passar pelas imensas galerias subterrâneas, olha as imitações de seres humanos arrastando-se por detrás das grades. A pele reluzente de suor antígeno.
— Fantasmas podem sonhar? Pergunta PERIMURICÁ olhando para os hot-dogs prisioneiros arrastando-se em direção às grades em câmera lenta.
— É a mesma luminescência, ela exclama. Lembrando-se da luz azulada nos túneis de acesso assim como nos subterrâneos na selva Amazônica.
— O médico, a certa distância havia parado para atender uma ligação no celular.
Voltando-se para TAUIL e PERI, ele berra, ignorando a presença do nativo: “Venha, doutora, precisa andar mais depressa!”.
— “Belial empinava-se na montanha de escórias fumegantes e sulfúreas bem no centro do reino de gritos e estertores onde Éris, a Discórdia, dominava os infernos”. TAUIL repete as frases a partir de uma memória distante. Algum texto que um dia havia lido.
(Alguns prisioneiros aos vê-los estendem os braços lentamente em direção às enormes mãos do índio que estava a segurar as grades de uma das celas. Da garganta de alguns “hots” prisioneiros saem sons ininteligíveis. PERI estende-as em direção a um deles olhando em seus olhos interrogativos, como se não compreendesse por que lhes imputavam tantos horrores.)

205. INTERIOR. NOITE. CORREDORES E SALAS SUBTERRÂNEAS DO SPA
(Fazem-se ouvir ruídos de tiros, disparos de metralhadoras. Uma e outra explosões.)
— Chuva! Chuva!
— Que quer você dizer com isso? Ela interroga PERI.
(O índio apenas sorrir complacente para ela.)
— Não pode estar sabendo se está ou não chovendo. Estamos no sexto subsolo. Diz ADRIANE em tom interrogativo.
— Você quer dizer chuva de balas?
— Depressa! Entre no elevador. FEIFFER continua ignorando PERI. Fala como se apenas ADRIANE estivesse presente.
(O elevador industrial começa a subir lentamente. CHARLES BROWN abre a portinhola superior do elevador e pula em seu interior.)
— Você deve ser ADRIANE, viemos resgatá-la. (puxando-a pelo braço ele sugere que saltem do elevador em movimento. Depressa! temos de sair daqui!)
— Esses malditos “dogs”, o SPA está sendo invadido. (FEIFFER aperta um botão de alarme ao mesmo tempo em que pega um aplicador de choque de alta-voltagem de um escaninho interno) — Esses malditos “dogs”!
(CHARLES BROWN é atingido pela extremidade do bastão de choque empunhado por FEIFFER. O impacto o lança para fora do elevador industrial. Ele ainda segura na borda, mas, para não ser esmagado pelo movimento de ascendente, ele salta para o piso externo.)

206. INTERIOR DO SPA. NOITE. PARTE INTERNA DO ELEVADOR
— Vê se morre sub-raça! FEIFFER joga o peso do corpo sobre o tórax de PERI, pressionando com os dois braços a extremidade da arma de choque à altura do coração do índio.
— “Huuuuaaau!” PERI abre a bocarra mas dela não sai nenhum som. Há apenas o pressentimento de um estrondo colossal, virtual, que se lança de suas entranhas, a abranger todos os espaços e subterrâneos do SPA. O nativo paralisado momentaneamente, cai de joelhos, parece arregimentar forças internas inusitadas, enquanto FEIFFER vira-se em direção a ADRIANE tentando atingi-la com a ponta da arma de choque.
— Piranha! Vadia! Juro que vou comer seu fígado vivo.
— Maldito porco nazista! ADRIANE fala enquanto segura com as duas mãos o punho do médico, impedindo, por momentos, que a arma de choque a atinja. — PERI estende o braço esquerdo em direção aos bagos do médico. Levantando-se, ele suspende a mão para trás e para cima, num movimento que alavanca o corpo de FEIFFER fazendo-o virar em cambalhota, ao inverter a posição do mesmo.
(As luzes internas do SPA piscam e voltam a acender, enquanto o elevador ora desce, ora sobe, conforme os movimentos dos membros de seus ocupantes que, involuntariamente, atingem os botões do mesmo.)
— HUUUAAAUAUUAU! O berro de FEIFFER traduz a intensidade da dor que o atinge em cheio. Ele perde completamente a noção de espaço. Após a cambalhota a cabeça atinge com força o chão do elevador arrastando-se nele, indo alojar-se entre as coxas do índio que a prende ao fechar as pernas. — O elator firma-se em movimento descendente. Enquanto se fazem ver nos corredores e salas fora dele, bandeiras vermelhas compridas a mostrar em meio a elas o logotipo negro das indústrias de cosméticos e produtos “Tauil e Ostrovsky”: FERVET OPUS, comercializados via sites na Internet.

207. INTERIOR/EXTERIOR. NOITE. ELEVADOR E SALAS SUBTERRÂNEAS DO SPA. IBIRAPUERA
(CHARLES BRONW entra no elevador ainda em movimento, pega o bastão de choque da mão direita de FEIFFER e começa a aplicar-lhe choques ininterruptos, sob os olhares nas faces ofegantes de ADRIANE e PERIMURICÁ. A jornalista, percebendo que o médico está possivelmente morto, pega no bolso de BROWN.)
— Basta! Ele está sem vida.
— Esse maldito nasceu morto — BROWN leva os dedos à garganta de FEIFFER e sente que não há mais pulsação jugular. BROWN salta e sobe correndo a escada onde se encontra com ROSSI.
— Ela está bem. Está no elevador com um índio.
— Por que você não os trouxe? Não é para isso que estamos aqui?
— Não há tempo para explicações. Pegue-os e os conduza até o segundo pavimento onde há o rombo na parede. O reforço da segurança não tarda a chegar.
(Guiados por outros membros do grupo, ADRIANE, PERI e ROSSI dirigem-se para o lugar onde uma explosão abriu uma grande fenda na parede do 2° andar do SPA que dá acesso à área externa.)

208. INTERIOR DO SPA. NOITE. SALAS E CORREDORES SUBTERRÂNEOS
— Sigam, depressa! Encontro vocês mais tarde. Saiam daqui logo. ROSSI após abraçar ADRIANE, volta-se e corre em direção ao interior do SPA. Mais jovem, sem treinamento no manejo de armas. Acredita-se perfeitamente hábil para manejá-las.
(Após pegar a metralhadora de um “pig-spa” atingido no olho direito, ROSSI dispara no colete do morto verificando que o mesmo é, realmente, à prova de balas. Veste-o. Um hot-dog, no calor do combate atira nele supondo estar atirando num “pig”. Com um gesto desculpa-se, e retira de um inimigo morto o colete, protegendo-se ele também.)
— Sou eu, ROSSI. Não atire.
— Vamos buscar CHARLES BROWN, ele não vai querer sair do SPA até matar o último “pig”. A Força Armada não tarda a chegar. É suicídio ficar mais tempo.
(A visão das enormes jaulas onde são mantidos a 45° centígrados mínimos os prisioneiros “hots” capturados nos “pogrons” de detenção dos “hot-dogs”, os odores do suor antígeno que dessas celas exalam, a aparência física ultrajada dos “dogs” em seus trajes sumários, as expressões corporais abatidas...)
— ““Esse, pensou CHARLES BROWN, é apenas uma mostra das centenas de guetos onde os “pigs” mantêm encarceradas as vítimas de suas experiências genéticas criminosas das quais derivam os chás, as bebidas fermentadas à base de cevada, lúpulo e demais cereais, produtos cosméticos e serviços dos “spas” em redor do mundo”.”
(A revolta de BROWN transforma-se em ódio operante.)
— Abram as grades das enxovias! Acionem os controles. Libertem os presos! O velho CHARLES se transformou numa máquina de matar. Qualquer residente do “SPA” que não seja um “hot” ele elimina impiedosamente. — Matem todos os malditos, berra ele. Não sejam fracos. Não tenham piedade. Dêem-lhes o troco.

209. INTERIOR/EXTERIOR. NOITE. DEPENDÊNCIAS SUBTERRÂNEAS DO SPA. LOCAIS DE SAÍDA DOS GUERRILHEIROS “HOTS”
(Os “hots” que fazem parte do grupo de ROSSI chegam a BROWN. Apesar de ferido, ele luta com os poderes do Leão. Há estilhaços de vidraça nos ombros, no rosto, nos braços, cabeça e mãos. Meia dúzia de seguranças “pigs” entram na sala onde são recebidos com rajadas de metralhadoras à altura da parte superior do tronco, pescoço e rosto. Os corpos “pigs” são lançados bruscamente para trás. As pernas patinam no ar.)
— Vamos depressa, os reforços estão chegando! Logo a Força Armada estará aqui. O apelo de um “dog” no ouvido de BROWN acompanhado de um puxão no braço, serve de alerta.
— Os portões das celas estão abertos?
— Sim, mas não serve de nada. Os prisioneiros estão desidratados, eles não podem mais andar, simplesmente se arrastam. Não há tempo para esperar.
(Os caminhões da Força Armada começam a chegar. Oficiais e soldados vestidos de uniforme verde-oliva vieram restabelecer a lei e a ordem. Vieram defender a tirania dos ricos contra os pobres, dos poderosos contra os fracos. A ditadura da vaidade contra os sobreviventes das ruas.)

210. INTERIOR DO ABRIGO “HOT”. MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA. IBIRAPUERA
(ADRIANE e ROSSI foram resgatados. Os “hots” feridos e exaustos, os que saíram com vida da invasão do SPA, trocam impressões.)
— Vocês puderam ver: idosos ainda dão no coro. Estamos, os que sobramos, vivos para contar a história. ZECA ZUMBI está sendo atendido por estar ferido de bala na perna. O colete havia salvo sua vida. Há marcas de tiro no tórax e na parte posterior do tronco.
— Como pode aquela casa dos horrores, aquela Ilha do dr. Moreau, esse campo de concentração ser obra de minha filha... Ou neta? Como pode ela prestar-se a essa empresa macabra? ADRIANE está inconsolável.
— Fica calma, estamos bem! Estamos aqui (ROSSI fala olhando em volta) eles foram mesmo impressionantes. Muita coragem, arriscar dessa forma suas vidas por pessoas que conheceram apenas há poucas horas.
— Chá muito ruim aquele. Sabor infernal! PERIMURICÁ faz uma careta. Depois sopra um pouco de fumaça, aliviando-se. ADRIANE sorrir e pergunta:
— Como você conseguiu retê-la tanto tempo nos pulmões? Eles devem ter cozinhado mesmo (risos gerais) — A câmara afasta-se do grupo. Os que ficaram cuidam dos feridos.

211. INTERIOR. DIA. ESTÁDIO OLÍMPICO MONUMENTAL. PORTO ALEGRE
(A câmara focaliza no Estádio onde se realizam as competições das Olimpíadas entre os membros dos vários templos da Igreja do Salvador dos Últimos Dias, à qual pertencia, antigamente, o Pastor MCKENZIE. As arquibancadas estavam cheias de idosos sarados de todos os cantos do país. Afinal, aquele era um evento ao qual não podiam faltar. Os principais espécimes dos SPAS exibindo-se mutuamente. Logo estariam definidas quais as práticas de nutrição mais avançadas nas pesquisas genéticas de rejuvenescimento.)
(Os atletas que ganhariam os melhores lugares nas mais diversificadas formas de competição foram focalizaqdos recebendo seus prêmios, suas medalhas de ouro, prata e bronze, pela TV-Ghost. Todos eles foram intensamente treinados nos quartéis e Centros de Treinamento da Força Armada, antiga Polícia Militar. Na capa da minuta dos jogos vê-se o desenho de um atleta com o número 111 estampado na camiseta estilo regata-fashion. Os “pig-spas” aproveitavam o evento esportivo para comemorar o assassinato covarde de 111 “hot-dogs” pegos fora das grades das enxovias durante a invasão do “SPA TAUIL & OSTROWSKY” pelos "hots".)
(As autoridades máximas do país estavam presentes nos camarotes especiais, ingerindo os mais destacados produtos dos “spas”: bebidas com maltes envelhecidos em tonéis contendo a “dosagem certa de plasma antígeno que acelera a produção de anticorpos específicos ou de linfócitos sensibilizados. Através de toda a área das arquibancadas do Estádio Monumental estavam à vista bandeiras enormes, no formato das exibidas nos eventos esportivos e políticos nos tempos do III Reich. Compridas e vermelhas, tendo no centro o logotipo em preto: FERVET OPUS.)

212. EXTERIOR. DIA. ESTRADAS. PAISAGENS. PRAIA PARTICULAR DE HOTEL. SALVADOR. BAHIA
(ADRIANE e ROSSI hospedam-se num hotel de turismo na Bahia que possui uma praia particular. São poucos os hóspedes. Mas quando a notícia corre de que estão hospedados, o hotel começa a se encher de hóspedes curiosos. Resta-lhes, quando isto acontece, sair do lugar e ficar viajando. O casal esquiva-se ao trato e à convivência com os remanescentes da raça Homo sapiens/demens e seu triste e lamentável passado.)
— O “full-time-movie” mostra a maior tragédia ecológica nacional: o governo do PT e suas obras políticas da primeira presidente da República mulher. Você não quer ver? A pergunta de ADRIANE, suscita a resposta irônica de ROSSI:
— “Recordar é morrer”, como dizia o provérbio popular pós-governo do PT.
(O filme mostra que a Usina de Belo Monte de Merda, construída para o enriquecimento ilícito de empreiteiras e políticos corruptos, resultou em irreversíveis impasses socioeconômicos. A alteração do curso do rio Xingu para alimentar as barragens, gerou o apodrecimento das raízes de milhares de árvores que serviam de diques de alimentação para diversas espécies de peixes ao longo dos municípios de Vitória do Xingu, Brasil Novo e Altamira. Ao final da obra concluiu-se que seria preciso outro rio Xingu para garantir a vazão da represa e a geração de energia elétrica para os 365 dias do ano. 30 terras indígenas e 15 unidades de conservação foram atingidas. Populações nativas foram expulsas de seus ambientes originais.)
(O filme do dia da TV-Ghost, ou Canal 10, mostra cenas da cidade de Altamira transformada numa grande favela. As obras da usina Belo Monte de Merda, mais que duplicou seus habitantes. E o “território mais indígena do país” foi invadido por todo tipo de interesses econômicos criminosos. Muitos líderes de grupos ecológicos foram assassinados. Os crimes continuaram depois de 2001, quando o coordenador do Movimento pela Transamazônica e do Xingu, Ademir Federicci morto covardemente com um tiro na boca quando dormia ao lado da esposa e do filho caçula, após sua participação em debate de resistência contra a construção da Usina de Belo Monte de Merda.)
(A TV-Virtual mostra no filme do dia, cenas do passado, ocorridas na 1ª década do século XXI, quando a coordenadora do movimento Mulheres do Campo da Cidade do Pará, e do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Antônia de Melo, após ameaças e tentativas de assassinato não saiu mais às ruas. Segundo ela, essa Usina foi “um crime contra a humanidade” perpetrado contra nove povos ribeirinhos e trabalhadores da agricultura familiar que seriam simplesmente expulsos da região. Cenas de mobilizações populares e de ambientalistas que há décadas realizavam ações de resistência contra a usina com repercussão internacional.)
(A TV-Ghost exibe cenas do passado, antes da construção da usina Belo Monte de Merda, em doze de abril de 2010 o diretor de cinema James Cameron, a atriz Sigourney Weaver e Joel David Moore participaram de ato público contra a obra. O GREENPEACE, em 20/04/2010, protestou contra a Agência Nacional de Energia Elétrica em Brasília, despejando três toneladas de esterco na porta de entrada da ANEEL. As faixas do protesto diziam: “O Brasil precisa de energia, não da usina Belo Monte de Merda".)
— Se é que um monte de merda poderia ser Belo, comentou ROSSI.
— Um modelo de desenvolvimento para encher os bolsos dos amigos da corrupção institucionalizada, contra a qual os parlamentares desse partido foram eleitos.
— Vergonha e decepção, foi tudo que sobrou das promessas “éticas” desse partido.
(O documentário da TV-Virtual mostra a transamazônica das centenas de comunidades ribeirinhas, os atos públicos manifestaram, no começo do século XXI, a indignação e o repúdio a mais essa “obra do PT” construída a partir do Sítio Pimental. O Canal 10 exibe cenas do livro do Cacique Raoni, “Memórias de Um Chefe Indígena”, lançado no longínquo ano de 2010, prefaciado por Jacques Chirac. Recebido por Nicolas Sarkozy, Raoni, em entrevista À RFI, disse que os índios reagiriam com “guerra de guerrilha” àqueles que estivessem construindo a barragem, durante todo o período de construção da usina Belo Monte: Monte de Merda.)
(O “canal-ghost” mostrou também o recrudescimento das queimadas e da devastação da floresta pelo desmatamento, por aqueles trabalhadores que, após a construção da Usina, ficaram sem trabalho. Os slogans pós-Usina diziam: “Após O governo Do PT Sobrou Para Você A Amazônia Devastada”.)

213. EXTERIOR. NOITE. HOTEL 5 ESTRELAS. PRAIA DE BOA VIAGEM. RECIFE. PERNAMBUCO
— Venha ver! — (ROSSI aproxima-se dela) — Advinha quem está no “full-time-movies” de hoje?
(Sentado numa poltrona frente à praia, ele atende ao chamado de ADRIANE. Chega-se ao lado dela e visualiza a TV-Ghost. Um monge está ao lado de NORTON junto a uma esfinge num enorme salão onde se vêem estátuas gigantes dos “Guardiões Silenciosos”.)
— Por favor, senhor NORTON, venha ao stand seguinte. Acredite! Diz o monge, a Esfinge costuma devorar os que dela se aproximam. Literalmente, às vezes. O senhor pode não ser uma exceção.
— Há tempo decifrei, eu mesmo, meu enigma, responde NORTON. ÉDIPO decifrou a trindade do tempo do homem. Haverá algo mais obscuro e difícil?
— Para cada ser o imprevisível começa no momento em que é gerado. Apenas um embrião, e já está a vivenciar seu enigma. Quanto mais cedo compreender isso, mais chance terá de decifrá-lo. As palavras do monge soam a NORTON como um desafio.
— “O estar preparado é tudo”. Ele cita a frase de HAMLET em resposta ao anacoreta. Ele nem desconfiava de que o cristal “high-tech” de que é feita a Esfinge já o havia devorado mil vezes mil vezes. E rastreado seu código genético de trás para frente, de frente para trás, por milhares de gerações passadas, desde o momento em que ele não passava de um aminoácido perdido numa cadeia genética elementar.
— NORTON parece confiante demais, pondera ROSSI. ADRIANE oscilando a cabeça de cima para baixo e de debaixo para cima, mostra que está em plena concordância com ele.
— “Não percebeu que nessa guerra nada é previsível”. Ela ouve ROSSI dizer, num murmúrio, como se falasse para si mesmo. Os grandes olhos de ADRIANE estão temerosos e atentos.

214. INTERIOR. DIA? NOITE? SUBTERRÂNEO DO MONASTÉRIO AMAZÔNICO
(NORTON está extasiado com as maravilhas arqueológicas do museu “subway” do Mosteiro amazônico: ídolos esculpidos em pedra, metais, ouro, cobre. Imagens do nascimento de deuses. Peças e utensílios do período minóico. Desenhos em relevo de teogonias, cerâmicas Cnossos e cretense.)
— A pérola lendária, o olho mitológico dos incas. Está aqui! (ele estende a mão destra para pegá-la e ao crânio de cristal com olhos de jade). — Suas propriedades mediúnicas e premonitórias! Exclama.
(A mão agora estende-se em direção a uma adaga de lâmina sutil com dois gumes superpostos.)
— Alguns antigos a chamavam “adaga de cristal”, diz o monge. Algumas dessas preciosidades têm suas origens no limiar do tempo, em civilizações há muito extintas.
— Você está sozinho nesse lugar. Se houver mais alguém estará tão longe que nem preciso me preocupar. Quem poderia socorrê-lo de um ataque traiçoeiro? Ora, traição é minha rotina.
(Dito isso NORTON apunhala o monge com a “adaga de cristal”. Quer vê-lo morto, sair desse lugar levando consigo a maior quantidade possível dessas riquezas arqueológicas impressionantes.)
— É hora de decisão, meu caro. Afirma com olhar alucinado, enquanto esfaqueia compulsivamente o monge repetidas vezes. Passa horas em busca de uma saída do labirinto subterrâneo, caminhando inutilmente entre câmaras, túneis, passagens, salas, corredores, frinchas. Agacha-se para descansar e beber um gole de água do cantil, quando vê, ao lado, as sandálias do “homem da solidão”. Identifica-o pelos pés e a aba da batina. Levantando-se, ameaçador, pergunta:
— Quem é você, maldito? Que faz aqui? Volte para o inferno. NORTON atinge o monge com vários tiros de pistola. Ele permanece impassível.
— Nem todos os caminhos que guiam para baixo conduzem igualmente para cima, senhor NORTON. Ele puxa lentamente para trás, com ambas as mãos, o capuz que lhe cobria as faces. O rosto branco e liso, assustador, vai se transformando na própria cara de NORTON. Isso o tranqüiliza, afinal, nunca faria mal a si mesmo.
(O “olhar de penitência” do anacoreta fixo em seus olhos, começa a aterrorizá-lo. Sua memória traz ao nível consciente matanças indiscriminadas. O prazer cromagnon dos combates. O sangue dos adversários respinga em seu rosto exultante. A adrenalina das batalhas, o transe maligno que o subordinada aos senhores do poder político das trevas. Aos quais serviu servilmente. Os senhores da morte, da guerra, da estupidez, da mentira, da ignorância. Da violência armada. Uma série de fotocópias de sangue das vidas que ele tirou nos conflitos armados dos quais participou, atormentam-lhe os momentos finais.)
(Uma grande quantidade de situações “horribile dictu” aonde se fazem presentes situações manifestas de covardia, agressão, taras, traições, ódios, crimes, causam-lhe um padecimento atroz. Como se estivesse somando às suas dores, o desespero e a dor de seus adversários. Somam-se nele, atraídas por uma irresistível gravidade pessoal, milhares de faíscas quânticas. Nele se alojam como se fossem milhares de marimbondos de fogo. Transformam seus ossos, plasma, pelos, pele e músculos, em poucos segundos, num amontoado de cinzas que logo são levadas por um pé de vento. Misturando-se à areia pardacenta do chão “subway”.)

215. EXTERIOR. DIA. SALA DE JANTAR DA HOSPEDARIA À BEIRA DA PRAIA
(ADRIANE sente a presença do índio PERIMURICÁ na sala. Não pode vê-lo, mas, de alguma forma, ela sabe que ele está ali, perto dela, participando desse momento.)
— Custa acreditar que o corpo, a mente, a memória do todo poderoso líder da Expedição NORTON tivesse realmente virado pó.
— PERI está aqui! Você não sente? (ROSSI faz que não ouve.)

216. EXTERIOR. DIA. HOSPEDARIA FRENTE AO CALÇADÃO DA PRAIA DE PONTA NEGRA. LITORAL SUL DE NATAL
(O filme do dia nos dias que não se contam mais, narra a história de três grandes mistérios. Mistérios sobre os quais haviam especulado centenas de cientistas no segundo quartel do século XXI: os chamados “casos abessivos” por exprimirem a noção de “perto de”, “de fora”, mas não explicavam senão parcialmente, as aberrações tipo Combustão Humana Espontânea, ou a TV-Ghost e a Lua eletromagnética, Drácula Virtual, de posicionamento simétrico à lua natural do outro lado da Terra.)
— A faísca quântica NORTON...
— ...Sua alma.
— Como a chamavam antigamente, em poucos minutos transformara-se em mais uma dentre as bilhões de outras faíscas aprisionadas (escravas) na Lua de Tecnologia Virtual do outro lado da Terra, simétrica à Lua natural.
— Transformou-se, simultaneamente, em ondas VHF/UHF da TV-Virtual. A faísca quântica NORTON virtualizada no universo paralelo simulado, criado pela tecnologia ET, havia partido da estação orbital invisível, datada de um espectrômetro de referência de elétrons, plugado a um altímetro e a outro espectrômetro, este último de florescência de raios-X. Tecnologia da “sintonia quântica” via satélite.
— A TV magnetofenomênicaosmótica. Para NORTON fora preciso morrer para saber como a coisa toda funciona.
— As faíscas quânticas (almas) são similares aos hádrons monitorados por um modelo sensorial, um organizador biosensor. Elas se mantêm coesas e estáveis por serem ligadas aos quarks. O que mantém essa coesão interna é a “interação forte”, de um modo semelhante à interação dos átomos unidos pela força eletromagnética. As partículas em seus nanonichos têm numeração quântica semelhantes às do grupo de Poincaré JPC(m) J é o Spin, P a paridade C, a paridade C e “m” a massa...
(A emissão da voz que explica esses fenômenos científicos. Ela soa semelhante a do robô, computador sensorial Hall, (do filme de Stanley Kubrick 2001: Uma Odisséia No Espaço.)
— O satélite se realimenta a partir de um mapeador espectroestereoscópico acoplado a um radiômetro térmico de infravermelho e a outro espectrômetro. Este, de raios gama, articulado a um eixo de painéis, controlado por um radiômetro de microondas antenado em faixa média “SS” de ganho médio, e em faixa “S” de baixo ganho, tencionado em fontes coletoras parabólicas de energia, calor e luz solar...

217. EXTERIOR. DIA. HOSPEDARIA FRENTE À PRAIA DE JERICOACOARA. LITORAL DO CEARÁ
(O casal adâmico passeia pela paisagem da praia. Conversa descontraidamente.):
— As profecias se cumpriram. Aquele mundo iníquo acabou.
— Aquele mundo perverso dos gangsters políticos, dos membros decrépitos dos assessores jurídicos, dos discursos de palanque e intermináveis promessas que adiavam o amanhã para um futuro inexistente.
— Você lembra? Os parlamentares, os magistrados, os desembargadores e ministros? Olhando-nos com inveja e ira. Vaidosos, rancorosos, mentirosos, até o estertor.
— Até a última cardiopatia.
— Pareciam sombras inúteis, semoventes, a sustentar uma insustentável empáfia.
— Ao memorizá-los você não sente o odor que exalava de seus corpos?
— Sim! Ainda agora a memória auditiva, visual e olfativa os traz aqui (ela tosse e escarra como quem vai vomitar).
— A fétida memória da transpiração dos usuários dos produtos das clínicas dos “spas”: pílulas, sabonetes, desodorantes, “shampoos”, pasta de dentes, creme de barbear, loções cosméticas exalando enxofre.
— À base do suor antígeno dos “hots”. Eles se sentiam muito “chics” ao emanar esse odor.
— (Risos.)
— (Lágrimas.)

218. EXTERIOR. ENTARDECER. SOL DE OCASO. PRAIA DO COQUEIRO. LITORAL PIAUIENSE
(Sentados numa mesa de barraca frente ao quebra-mar, TAUIL e ROSSI conversam.)
— Sabes? Tenho de ficar colada em você todo tempo. Tenho a sensação de que se ficar longe de ti, se você sair de meu campo de visão, nunca mais te verei. Fico aterrorizada só de pensar ficar sozinha nesse mundo. Seria uma solidão insuportável. Um medo insuportável. Uma sensação invencível de desamparo. Abandono.
— Solidão não é estar sozinho. É estar inadequadamente acompanhado. Se estás sozinha contigo e gostas de ti e de tua companhia, então todos os seres do universo paralelo da memória te fazem companhia. Como poderias te sentir só?
— Sei, PERIMURICÁ está presente, sempre. Depois de todo esse tempo deve ter também morrido.
— Aquele CHE GUEVARA fim dos tempos (risos). Ele dizia que a vida tinha um propósito. Ele lutaria para libertar os “hots” aprisionados nas enxovias dos “pigs”. (Risos, gargalhadas.)
— “A matéria é feita de sonhos”, SHAKESPEARE tinha razão.

219. INTERIOR/EXTERIOR. DIA. CHALÉ NA PRAIA DE ITATINGA. MARANHÃO
(Ao caminhar pela praia o casal adâmico não mais se incomoda com a companhia daquelas pessoas dos séculos XVIII e XIX, transeuntes fantasmais que cruzam com eles. Esse, afinal, é também o mundo deles. De alguma forma aqueles habitantes ainda estão por lá.)

220. INTERIOR/EXTERIOR. NOITE. CASARÃO EM ALCÂNTARA. MARANHÃO
(O casal adâmico está sentado ao redor de uma mesa antiga num casarão colonial de portas e janelas azuis. Um candeeiro ilumina a sala com suas sombras de antigamente. De repente, como se vindos de um universo paralelo, estavam apreciando cenas de um casamento do século XVIII. As pessoas com seus costumes de há três séculos, rodeavam-nos como se fazendo festa. A mostrar-lhes que ainda não haviam, de todo, abandonado aquele lugar fixo, quieto no tempo. Passado.)

221. EXTERIOR. ANOITECER. TERRAÇO TURÍSTICO. CRISTO REDENTOR. NOITE. RIO DE JANEIRO
(O casal adâmico, idoso, mas incrivelmente energizado, olha a paisagem do alto, a se descortinar frente à estátua onde aparecem, ao longe, o Pão de Açúcar e parte da baía da Guanabara. A desolação ao redor é simplesmente irreversível. A sensação de uma solidão sobrenatural irradia-se das cenas. Uma TV insiste em transmitir, via Ghost-Canal, imagens da ascensão e queda do III Reich, entremeadas com cenas dramáticas de prisioneiros dos campos de concentração.)

222. EXTERIOR. DIA. PRAIA DA TRINDADE. PORTAL DE TRINDADE. PARATY. ESTADO DO RIO
(O casal adâmico passeia pelas areias da praia. A câmara focaliza o local muito do alto, como se numa foto de satélite. Vai se aproximando aos poucos até tornar nítida a paisagem. Ao se avizinhar da praia, aos poucos focaliza em plano geral os passos do casal. ADRIANE sente os dedos de ROSSI a apalpar sua mão. O cabelo longo como se de um hippie. Ela veste um vestido comprido, meio transparente, com motivos florais.)
— Diga o que você quer, querido, diga.
— Que você prometa uma coisa. Por favor, diga que sim!
— Sim, claro que sim. O que ele poderá querer? E logo protesta. — Não, não prometo nada. Só faltava, ser a última mulher da Terra e fazer promessas!
— Porquê...
— O quê? Que você disse?
—...Uma única vezinha, umazinha, você não faz sem reclamar algo que é justo fazer?
— Diga, é só dizer, eu farei tudo, qualquer coisa... Prometo!
— Mesmo? Jura?
— Garanto. Qualquer coisa. O que é?
— Nunca fale com anjos!! Nunca mesmo!!! Não podemos nos arriscar a começar tudo de novo.
— Anjos! Ora!! Anjos!!! Anjos de natureza vegetal? Anjo lagarto, ave, serpente? Ela, uma idosa cheia de manias, defesas e narcisismos atávicos, estranha a rabugice do companheiro.
— Jure! Por favor!! Jure!!!
— “Nos dias de seus pais costumavam dizer das mulheres que sabiam contar até seis porque não havia fogão de sete bocas”.
— E eles riam disso. Riam disso. Riam.
— Não ouvi direito. Que você disse?
— “Se depreciavam as mulheres assim, imagina o resto do mundo”!
— Você está falando sozinho outra vez!
— Nunca fale com anjos. Você promete mesmo?
— Sim! Claro!! Prometo!!!
— Não aceite nada deles. Não faça promessas com eles!
— Nada mesmo! Nenhuma promessa!! Juro!!!
— Por Deus. Páre com isso, querido!
— Anjos!!! Ele está ficando bobo! Como se pudesse alguma coisa com anjos!! — Nunca vi nenhum anjo a vida inteira.
— Eles não virão dessa vez!
— Somos o último casal da Terra. Não precisas ficar caducando! Você não tem o direito de prescrever-se. — Ou tem?
— Quê?
— Querida, ser o último tudo bem, mas começar tudo de novo? Nunca! Tanto horror!!. Todo aquele horror!!! Não, não quero ser essa espécie de criminoso. Nunca mesmo!!!.
— Não haverá nada demais se aparecer um anjo. Eu descarto as pretensões dele. Acredite!!! Coisas da Bíblia. Ora essa! Quem sabe?
— Vocêeeeeeê hussushlksklçsjhfheum. Drysysykjshmsisdjkshosse.
O zumbido soou nítido na tradução de seu significado na mente da mulher:
(““Não quero ser nenhum instrumento virtual de nenhum Deus “ex-machina” disposto a me usar para começar tudo de novo”.”)

223. EXTERIOR. DIA. SALÃO FECHADO DE HOTEL HÁ MUITO ABANDONADO. CIDADE DE PARINTINS. AMAZÔNIA
(O casal adâmico, sorrir de inexplicável felicidade. Estão contentes e se preparam para ingerir uma beberagem de vinho com alguma porção que eles puseram nas taças. Eles ingerem o conteúdo delas, e se abraçam com uma indescritível ternura.)
(Algum tempo depois a câmera começa a se afastar deles e a ganhar velocidade em direção ao horizonte. Vencendo distâncias num movimento de zoom, ultrapassa terras, rios, vales, pântanos, cidades, paisagens até ultrapassar a linha do horizonte planetário. Numa velocidade de escape, o foco evade-se do planeta, entra na esfera do sistema solar, afasta-se deste em direção ao vácuo, vencendo distâncias infinitas, passando por sistemas solares de beleza inusitadas, estrelas, galáxias. Sempre em direção alhures.)

224. INTERIOR/EXTERIOR. DIA. NOITE
(A Câmera exibe cenas do documentário ficcional “O Mundo Sem Ninguém”.)

225. INTERIOR/EXTERIOR NAVE. DIA. TARDE. NOITE. MADRUGADA.
Starnautas caminham para fora da starnave acompanhados por centenas de milhares de exemplares da espécie Homo sapiens/demens.  
Os milhares de exemplares de indivíduos de ambos os gêneros são tangidos em direção à superfície selvagem do planeta. Entre eles estão militares das três armas, representantes dos Três Poderes vestidos à caráter. Roqueiros, concertistas famosos, tenistas, atores, cantores, atrizes, diretores de cinema, atores famosos da Broadway e de Hollywood, escritores, jornalistas, vê-se os principais atores e atrizes da série LOST, modistas, modelos, paparazzi, religiosos, homens, mulheres, crianças.

226. INTERIOR/EXTERIOR NAVE. DIA.
Todos desembarcam como se estivessem meio que drogados, desde que nenhum deles mostra resistência. Apenas caminham passivamente em direção aos redutos de rocha maciça onde se encontram milhares de cavernas desabitadas para as quais se dirigem como se elas fossem suas únicas possibilidades de abrigo. (Em “off” ouve-se a trilha musical da canção da banda Titãs denominada “Vossa Excelência”.)

227. EXTERIOR/NOITE. GRANDE ÁREA DE TERRA DE CAPIM BAIXO COMO SE DESTINADA À PASTAGEM. NOITE.
Uma adolescente vestida de noiva destaca-se do grande aglomerado de pessoas. Ao se vê sozinha agacha-se em meio à vegetação para fazer necessidades fisiológicas. Enquanto seu olhar fixa uma estrela muito brilhante próxima a uma das duas luas do planeta. A estrela brilha numa constelação até então desconhecida em meio a outras constelações. Nesse lugar e nesse céu completamente estranhos.

228. INTERIOR. CAVERNAS. MADRUGADA.
O tempo passou. As pessoas com suas vestes desgastadas pelo uso sem substituição, começam a disputar restos de caixas de biscoitos e sopas que aquecem primitivamente numa fogueira coletiva. O monte de lenha em chamas foi aceso com um isqueiro tirado do bolso de um senhor vestido à “Black-tie”. Mas o isqueiro não acende mais.

229. INTERIOR/EXTERIOR CAVERNAS. AMANHECER.
Um grupo de sobreviventes que regrediram à condição de hominídeos começa a grunhir em direção a outro grupo. Ambos os grupos parecem se hostilizar na disputa de um lugar próximo a uma fonte de água aonde se encontram a beber alguns animais primitivos. Eles não ousam se atacar mutuamente tementes de despertarem a atenção das feras que bebem água na lagoa pouco extensa.  As pessoas agora parecem ter regredido à condição pré-histórica de habitantes de cavernas, com um nível tecnológico, social e mental próximo à condição original da humanidade.

230. INTERIOR/EXTERIOR CAVERNAS. ANOITECER.
Um grupo familiar primitivo mostra-se muito apreensivo ao ouvir os ruídos pesados dos pés e os sons guturais de gargantas ferozes que rondam o espaço exterior da caverna. Vestidos de tangas e precariamente encolhidos no colo de algumas mães, crianças sujas buscam se abrigar, os olhos arregalados de temor. Um homem peludo a quem outros chamam de Peluso, vai até um cantão da caverna onde começa a escavar com as mãos em busca de algo. Ele acha uma pistola moderna que havia trazido ao desembarcar da starnave. Ele a aponta em direção à entrada da caverna. Nela aparece a cabeça de um espécime que parece um Tiranossauro Rex. Ele aponta a arma e, assombrado com a aparição do animal, puxa o gatilho em sua direção. As poderosas mandíbulas com dentes aguçados de 18 cm numa cabeça com um metro e meio de comprimento não se abala em nada com os tiros. Estendendo o enorme pescoço a fera aproxima-se abrindo ameaçadoramente a bocarra diante do grupo indefeso de frente a essa ameaça tão poderosa.

231. EXTERIOR DA CAVERNA. AMANHECE. UM SOL DIVERSO INTENSO E “BLUE” CHAMEJA A RUTILAR NO HORIZONTE LUMINOSO E MUITO DISTANTE.
Um dos homens da caverna abre os braços e gira (PAN). A luminosidade solar do lugar incendeia o écran. O homem fala para si mesmo como se falasse através dele O Espírito:
231. EXTERIOR DA CAVERNA. AMANHECE. UM SOL DIVERSO INTENSO E “BLUE” CHAMEJA A RUTILAR NO HORIZONTE LUMINOSO E MUITO DISTANTE.
Um dos homens da caverna abre os braços e gira (PAN). A luminosidade solar do lugar incendeia o écran. O homem fala para si mesmo como se falasse através dele O Espírito:

“Pereçam os dias com seus reis burgueses, seus conselheiros criados e cativos em demasia. Todos escravos. Todos servos fieis, raça de cães construtores de necrópoles. Eu os criei para ser homens, mas vocês precisam ser servis. És Espírito e estou a falar contigo. Estás aqui comigo! Agora! Sempre! Sei que a jornada será novamente longa. Este fim...Outra vez... Origem. Esta Escolha. Tua. A opção de quem não sabe o que faz. Este, teu livre arbítrio. Segundo Tua Vontade.”

232. EXTERIOR/INTERIOR. CAVERNA. ANOITECER.
Um hominídeo semi-nu, esfarrapado, parado na paisagem desolada do pleneta desonhecido, tendo o vento e a poeira como companhias próximas, vê um chapéu preto de abas largas levado pela ventania. O chapéu fica preso numa espécie de cacto espinhoso, com galhos torcidos em forma de coroa de espinhos. O vento ameaça levá-lo para longe. Ele pisa depressa na aba do largo chapeu preto. Levanta-o até a altura do umbigo e olha para dentro da copa onde está presa uma das coroas de espinho do cactus.
O mesmo hominídeo em franca regressão física (PSI) ajoelha-se de frente à Rocha da Caverna e parece orar. Enquanto ao redor da cabeça e em frente a testa descem, em linhas, gostas de sangue. Ele parece orar, dizendo (enquanto balança o tronco para a frente e para trás, num gesto a demonstrar certa patologia atávica).  
— “Essa solidão e essa angústia de não me pertencer senão a mim. A dominação de meus desejos, enfim. Não me preciso culpar nem a ninguém por existir.” (Ele repete essas orações como se fossem as únicas que conhece.)
(Em movimento de zoom-afastamento a câmera distancia-se do personagem ajoelhado em suposta oração, a coluna vertebral deslocando-se para frente e para trás, a testa sangra quando, por vez, bate na parede de pedra da caverna. A câmara mais se distancia da entrada da rocha, mostrando em plano alto a imensa estrutura de pedra e suas aberturas de entrada. Até que, do alto, a paisagem planetária se perde entre a quantidade imensa e a luminosidade das estrelas.)
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Ficha Técnica:
Coordenador Geral
Coordenador Operacional
Pesquisa Iconográfica
Projeto Gráfico
Sinopse
Argumento
Roteiro (Story-board)
Claquete
Enquadramento
Movimentos de câmera.
Decupagem
Editor Assistente
Assistente de Direção
Produtor
Assistente de Produção
Editoração (Montagem)
Digitalização
Efeitos Especiais
Elenco Nacional
Elenco Internacional
Participações Especiais
Índices para catálogo sistemático.
Dados internacionais de catalogação.

THE END

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GLOSSÁRIO:

TERMOS TÉCNICOS:
(CS) Câmera Subjetiva.
(PP) Primeiro Plano.
(PA) plano Aproximado.
(PG) Plano Geral.
(CA) Câmera Alta.
(AA) Ângulo Alto.
Close-Up.
Cut-Away Close-Up.
Cut-In Close-Up.
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DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 17/07/2011
Alterado em 10/12/2012


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