Textos

Holocausto Nunca Mais —PsyCity III (Romance Neo-Pós-Moderno)
MULTIINTERIDENTIDADE

Ao chegar em casa, Hélio fica a se perguntar se a filha teve alguma espécie de participação nos acontecimentos de há pouco, na Paulista. Talvez seja só impressão, mas ela está muito mais indiferente e concentrada em alguma coisa a qual ele não tem acesso consciente. A concentração, tamanha, que não ousa interromper.

No elevador que os conduz ao apartamento rumina: Que coisa pode está acontecendo? Quer lembrar de algo que parece ser importante, mas a mente se recusa ao exercício da memória, como se esta, de repente, estivesse entorpecida, a bloquear informações.

Uma certa inquietação faz com que Hélio intensifique a sensação de ter sido usado. Uma explicação racional, por mais que se aplique, não consegue encontrá-la. Talvez só fosse possível explicar, via observação do universo paralelo do irracional. A rotina muda e mudam os tvespectadores. A mulher não mais comenta sobre os atrasos. Os imprevistos no trânsito têm sido tantos, que os estranhamentos foram incorporados à força do hábito.

Na sala de jantar da família de Carla, o Jornal da Globo mostra uma reportagem, ao vivo, dos inexplicáveis acontecimentos na avenida Paulista. As imagens reproduzem carros ainda com os capôs fumegantes. Uma câmera localizada no alto de um prédio focaliza algumas travessas da avenida, entre elas a Pamplona e a Consolação, onde há raras luminárias que permanecem acesas. A aparência de uma batalha sem armas visíveis. Mas certamente uma batalha. Que forças contrárias polarizaram-se? Qual a participação real dos seres humanos nela ? Terá sido apenas uma manifestação de revolta do inconsciente coletivo contra a impunidade insensata dos criminosos do colarinho branco ligados à corrupção desvairada nos Três Poderes?

Hélio observa as imagens, a comentar de si para consigo, os acontecimentos mostrados pelo Jornal da Record. De tão estranhos, os acontecimentos em foco parecem ficção de algum roteirista imaginativo. A memória a rápido prazo falha. Persiste nele uma certa e distante sensação de ter participado, ao vivo, dos eventos mostrados. Hélio descarta a possibilidade, alegando-se que talvez sejam distorções surreais da percepção da realidade, na qual está inserido, queira ou não, enquanto ator coadjuvante.

No Jornal da Band a mesma coisa. No Jornal do SPC, Loris Basoy, sem conter uma certa e explicável afetação e perplexidade, comenta:

— Esse lugar parece um campo de batalha. Esses eventos, mostrados pela reportagem, não têm uma explicação racional. Muitas pessoas que estavam na avenida Paulista no momento em que aconteceram, ainda estão em estado de choque. A realidade está ficando mais surpreendente do que se poderia esperar. Isto é mesmo uma coisa muita fora do normal. Isto é uma coisa muito estranha. E que não haja ninguém com uma explicação plausível: “Isto é uma vergonha”.

A âncora do Jornal da Globo mostra entrevistas com pessoas que estavam na Paulista no momento das ocorrências. As impressões e opiniões divergiam, mas todas tinham um ponto em comum: sentiram-se ameaçadas em estar presente aos medonhos acontecimentos.

Hélio usa o controle remoto na tentativa de achar, em outro canal tvvisivo, uma opinião mais técnica, científica, menos especulativa e perplexa. Quer sentir-se parte de uma realidade, não fantoche de uma ficção. A tênue fronteira ilusão/mundo real não está muito nítida. A percepção embaralha as impressões entre realidade e fantasia. Não consegue definir de maneira adequada as diferenças entre ambas. Como poderia ter participado dessa estranha tragédia?

Aconteceram mesmo essas coisas, mas como podem ter acontecido? A realidade, onde está a realidade? Está ficando tão inesperada como um filme de ficção. Hélio lembra que amanhã tem escritório. Sente-se seguro em saber que trabalha nesse lugar, em saber-se acompanhado de companheiros de profissão que também estarão lá, toda manhã, até as dezoito horas. Sim, aposentando-se ou não, vou continuar no batente. É o único modo de sentir-me real e protegido pela rotina do cartão de ponto, já que tudo o mais parece estar a se desmanchar.

Uma rotina, nada melhor que uma bendita rotina, uma maravilhosa rotina de trabalho. É tudo que preciso para manter-me mentalmente são, ou, pelo menos, em condições de exercer certo controle sobre os acontecimentos em minha volta.

Com estes pensamentos deseja lograr resguardar-se, esconder-se, proteger-se das influências, dos mistérios e perigos implícitos nas levitações, nas perturbações e estranhamentos do trânsito, no arrebatamento súbito de veículos, no fogo e nas explosões espetaculares demais, arrojadas demais, para serem assimiladas pacificamente pela parte menor e mais indefesa da psique: o nível consciente. Resultado: aumento da ansiedade e do medo.

No quarto, Carla contempla-se no espelho da parede ao lado, entre pôsteres de exposição de artes plásticas, de filmes, peças de teatro e Cds. Um grande calendário/poster permanece na parede do quarto, brinde aos leitores que adquirem livros na  livraria Cultura, no Conjunto Nacional, Rua Augusta com Avenida Paulista. Após o banho passa, em câmara lenta, a escova nas mechas dos cabelos. A outra mão no secador acompanha os movimentos ao redor do couro cabeludo.

Apenas impressão, ilusão de ótica, ou as imagens dos pôsteres, estão sobrepondo-se uma às outras, vindas de dentro do reflexo especular? A sensação de que se misturam acontecimentos recentes, reais e ficcionais, vivenciados por ela: sexo com o namorado, as cenas de filmes fazem-na sentir-se meio parte dos noticiários e jornais da imprensa escrita e tvvisiva.

A sensação de que outra pessoa nela se substitui de dentro para fora. A estranha funde-se a seus sentimentos. O estímulo visual, a comoção pelo temor de estar sendo substituída por outra pessoa. Uma certa intranquilidade emerge da contemplação das personas convergentes no espelho. Elas se adensam e personalizam neste novo rosto ainda indefinido, que não ousa vê com nitidez. Familiariza-se com esta outra, nova face, que é, está nela, começa a atuar como se fossem ambas, uma.

Desperta com o secador ainda ligado, percebe algumas mechas de cabelo queimado, parte do rosto chamuscada. Aplica-se um unguento de picrato de butambeno. Felizmente ainda é cedo. Maioria das pessoas  estão adormecidas. Escreve um bilhete para Hélio dizendo que talvez chegue atrasada.

Após a higiene matinal sai apressada, como se a essa hora da manhã pudesse encontrar um cabeleireiro. Energizada quer caminhar, olhar as ruas, as pessoas. De alguma forma a realidade parece nova. A presença de uma convicção de que todas as coisas não são, não estão, nem serão como sempre foram. Há umas curiosidades intensas, inusitadas, como se pela primeira vez estivesse vendo as ruas, os carros, os movimentos das pessoas na cidade.


OS “MUITO
ANTIGOS”

Rossi, ao chegar da redação do jornal, lê o bilhete da filha e a primeira parte da cópia do “Arquivo Jângal”. A história do jornalista alemão da Der Spiegel, assassinado em Ipanema, quando investigava a localização de colônias nazis na Amazônia, não lhe é estranha. Seu chefe de redação diz que, na época, a história não mereceu maiores investigações, devido a forte suspeita de que o mesmo estava envolvido com tráfico de drogas. O que não ficou, de modo algum provado. Apenas suspeitas transmitidas pela polícia. As evidências foram, provavelmente, forjadas.

Um investigador, na época, diz ter encontrado um papelote de cocaína com cinco gramas numa gaveta do quarto de hotel onde ele se hospedava. Os chefes de redação dos principais jornais cariocas não quiseram levar a investigação do crime adiante. Mesmo porque, seu suposto colega de profissão, ao lado do qual foi assassinado, contribuiu apenas com nuvens de fumaça que turvaram ainda mais a investigação.

O chefe de redação de Rossi achou a história do “Arquivo Jângal” meio sensacionalista, mas verossímil. Aprendeu na profissão a valorizar a inexistência de padrões fixos e fechados de avaliação dos acontecimentos.

Um simples grão de areia pode estar em comunicação com uma nebulosa. Ou dela ser proveniente. As formas que me parecem triviais, posso vê-las pela ótica realista da fantástica Mente Criativa, através desse sentimento oceânico mencionado por Freud, pertencente a todos os seres racionais e emocionais do universo. Rossi surpreende-se com estas percepções nítidas. A mente universal está mais comunicativa, interativa, com sua mente pessoal.

Na redação do jornal prossegue a leitura do “Arquivo Jângal”:

As revelações seguem em direção aos portais de entrada dos quilométricos túneis que interligam o norte do Brasil, através de cidades intraterrenas, em busca das quais Percy Harrison Fawcett desapareceu. Em 1925 o explorador embrenhou-se no inferno verde das selvas do Mato Grosso, imediações da Serra do Roncador, a 350 quilômetros em linha reta, rumo leste, a partir da aldeia dos Kalapalos, após cruzar o Rio das Mortes.

O “Arquivo Jângal” de JJ Voltaire revela que Percy Fawcett era irmão de Edward Douglas Fawcett, um dos fundadores da Sociedade Teosófica, autor dos livros “O Divino Imaginar” e “Do Mundo Como Imaginação”. Percy não era apenas mais um aventureiro. Desde os quinze anos seguia carreira militar na escola de Westminster. Em 1886, foi promovido a cadete com alta distinção e as honrarias de praxe na Royal Military Academy, em Wolwich, quando começou a fazer parte da Artilharia Real.

A serviço da coroa britânica, esteve na India, no Ceilão (base inglesa de Tricomalee), destacou-se nos esportes, nas investigações arqueológicas. Viajou várias vezes da Europa para o Oriente, e da Europa para as Américas do Sul e do Norte, conciliando a carreira militar com a de pesquisador da trilha de monumentos e cidades que poderiam vir a ser descobertas em futuras expedições.

Não é mera coincidência ser considerado o verdadeiro Indiana Jones. Ele inspirou a saga do herói de Spielbergson, e o escritor Conan Doyle, autor das histórias do detetive Sherlock Holmes, a escrever, em 1912, “O Mundo Perdido”, livro de ficção inspirada nas conversas amigáveis de Fawcett com Doyle, sobre morros e platôs com mais de oitocentos metros de altura, na selva Amazônica. O “Arquivo Jângal” prossegue com novas revelações:

Fawcett perdeu-se numa incursão solitária na floresta nos subúrbios de Tricomalee, num lugar conhecido por “Lion Rock”, próximo a um dos mais antigos e maiores templos do mundo, com 600 pés de altura: Sigiriya. Na ocasião chovia, na noite fria Fawcett dormiu, a cabeça apoiada numa das colunas do Templo. Ao despertar na manhã do dia seguinte, observa em volta inscrições de um alfabeto desconhecido.

A mensagem revelou-se intraduzível, inclusive para os estudiosos de cultura e religião do Instituto Oriental de Oxford. Eles afirmaram não haver estudos pertinentes sobre aquele modelo muitíssimo antigo de escrita no Ocidente, cifrada em caracteres Áshoka.

Em 1869, três meses depois, lê a legenda de uma ilustração do livro do capitão Richard F. Burton, que mostrava uma reprodução do notório documento 512, sobre uma cidade perdida no Brasil, supostamente visitada em 1753 por bandeirantes.

Os caracteres impressos nos templos e arcos de pedra do documento 512 eram semelhantes aos sinais encontrados no Templo Sigiriya em “Lion Rock”. Esse documento encontra-se arquivado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Rossi sorri e surpreende-se com as informações jornalísticas e o senso de humor de Juan Joseph Voltaire. O jornalista não sabe aonde quer chegar o estudante ao narrar a pesquisa na selva brasileira do famoso aventureiro, mas os indícios conduzem em direção à solução do misterioso sumiço do ilustre engenheiro e militar britânico, na década de vinte.

Neste mesmo ano, 1869, o governo boliviano acerta com o governo peruano, e o Royal Geographical Institute, através da embaixada de Londres, o envio de um engenheiro experiente no trabalho de mapeamento das áreas fronteiriças, em conflitos territoriais. A Bolívia havia perdido, na Guerra do Pacífico, parte do território, incluindo-se o acesso ao mar pelo Chile. O Royal Institute indica Fawcett para promover o mapeamento regional, por ser inglês, e a Inglaterra um país neutro no conflito.

Ainda major, Fawcett embarca no navio Kaiser Wilhelm der Grossie, de Londres em direção a Nova York. Uma vez nos EUA embarca no vapor Panamá em direção ao porto de Cristobal na baía de Lemon. O sonho dele é gerir uma expedição em direção à cidade perdida na selva Amazônia começa a tornar-se realidade. Fawcett fica fascinado, não tanto com o trabalho, mas com a possibilidade de, posteriormente, por sua conta e risco, encontrar Manoa na Amazônia.

A missão de mapear as fronteiras bolivianas e peruanas ganha por seus conhecimentos topográficos exercitados nas grandes montanhas do Ceilão, permite a proximidade com civilizações pré-colombianas e cidades ainda por descobrir, a exemplo de Machu Picchu, no Peru, que, nesta época, não passava de “uma história de índios”, no dizer mordaz de historiadores acadêmicos. Apesar de “lenda”, foi descoberta em 1911, pelo explorador americano Hiram Bingham, que chegou às ruínas escondidas sob séculos de vegetação selvagem.

Pagaram a Fawcett para essa tarefa homérica de adentrar territórios selvagens e inexplorados, e mapear as fronteiras entre Chile e Bolívia, a quantia de 10 mil pesos bolivianos, 80% dos quais  em ouro. Na época, uma nota preta.

Fawcett e o ajudante de ordens Chalmers, caminham por montanhas através de estreitas trilhas, desbravando fronteiras latinas. A neve espessa permite uma visibilidade de poucos metros. As mulas patinam no gelo.

Descem e sobem rios infestados de piranhas em balsas de troncos flutuantes. Perdem parte do material técnico, dos mantimentos, num naufrágio. Enfrentam sanguessugas, nuvens de mosquitos, negociam com índios, comem ovos de tartaruga e carne de arraia, caçam macacos com rifles Whinchester 44, para matar a fome, até chegarem a Cobijas, fronteira do Acre com a Bolívia.

Uma aventura por cordilheiras perigosas, lugares inóspitos, tribos desconhecidas, uma das quais de nativos brancos, com olhos azuis e cabelos vermelhos. De volta a Europa, após ter seu trabalho reconhecido em homenagem prestada pelo Royal Geographical Institute, Fawcett ganha em Londres, presente de um amigo, uma estatueta de basalto com 25 centímetros. O presente, do escritor H. Rider Haggard, admirador, amigo e autor do bestseller “As minas do rei Salomão”, traduzido para o português por Eça de Queiroz.

A estatueta traz uma inscrição num alfabeto desconhecido. Traduzida, tal inscrição poderia revelar sua muito antiga origem. Haggard informou  a Percy que a estatueta viera do Brasil, trazida pelo filho dele, Haggard Jr., morador há muitos anos numa fazenda do interior do Mato Grosso, visitada certa vez por estranhos índios de cabelos avermelhados, de uma tribo distante e desconhecida.

A peça de basalto tinha poderes incomuns, como atestam depoimentos de pessoas que a viram anteriormente. Fawcett perguntava-se: que diziam as cinco inscrições na tabuleta no peito da imagem? Qual a origem da estranha força magnética da estatueta?

Uma forte corrente elétrica atravessa os músculos do braço de quem, pela primeira vez, a segura. Não raro, o choque fazia com que a largassem. A razão dessa energia permanece desconhecida por Fawcett e pelos peritos do Museu Britânico. Nenhum especialista, ainda hoje, é capaz de decifrar as frases. O coronel busca então a ajuda de um psicometrista.

A Psicometria, ramo da Psicologia do estudo quantitativo das atividades mentais, constitui a base da psicométrica: Medição da memória, da inteligência, da atenção, da fadiga, do tempo de reação motora de determinados estímulos biológicos, catalogados pelos estudiosos da Neuroanatomia e Neurofisiologia.

O psicometrista contactado por Percy Fawcett ficara famoso por interpretar o poder energético de objetos, por decifrar origens memoriais, por ter sugerido uma explicação irracional, com motivação pertinente, ao naufrágio do Titanic. Fawcett passou às mãos do psicometrista, a imagem, coberta com uma toalha de linho branco para que ele não soubesse, pelo olhar, que a estava apalpando.

Ao apalpá-la, o sensitivo diz está vendo um grande continente, de forma estranha que se estendia da costa da África à América do Sul, coberto de montanhas vulcânicas. Foram estas as palavras usadas pelo psi para definir as sensações psicocinéticas transmitidas pelo contato manual com a estatueta de basalto:

“A vegetação muito variada, a população de pele escura, mas mais clara que a negra. Uma civilização muito adiantada com edifícios ornamentados, possivelmente templos. Vejo esfinges semelhantes à que está em minhas mãos, nos vários nichos desse templo. Esta estatueta pertenceu a um sacerdote e magistrado de alta categoria.”

“As águas agitadas do mar afogam grande parte da população. O sacerdote pega a pequena estátua e foge para o alto das montanhas que tremem sob o impacto de forte terremoto. Ele corre em direção leste e desaparece. Uma voz nítida e forte diz que o que ocorre com a Atlântida ocorrerá com todas as civilizações que mitificarem o poder e o narcisismo.”

A partir deste momento Fawcett acredita que a estatueta, antes de chegar ao Brasil, viera da Atlântida, onde pequena parte da população que conseguiu fugir da catástrofe em primitivas embarcações, aportou em terras brasileiras há aproximadamente doze mil anos. O sacerdote atlante refugiara-se nas moradias subterrâneas dos “Muito Antigos”, dos quais tinha conhecimentos.

De um índio do Mato Grosso viera a peça, presenteada ao filho de Haggard.  Neste Estado, para Fawcett, está situada a entrada para as cidades subterrâneas dos “Muito Antigos”. Manoa seria apenas sua parte exterior.

Fawcett, pela segunda vez organiza uma expedição. A busca de Manoa virou uma fixação, da qual não pode nem quer fugir. Precisa, a qualquer custo, encontrar uma das entradas para as cidades subterrâneas na América do Sul, mais especificamente, na selva Amazônica. Acredita que os portais para a civilização subterrânea encontram-se situados em terras brasileiras. Esta busca obsessiva termina com seu desaparecimento.

Após Facewtt desaparecer nas selvas do Mato Grosso, o jornal londrino “The Times”, ofertou um prêmio de 10 mil libras a quem indicasse uma pista que pudesse levar ao coronel ou a seus restos mortais. Essa pessoa ganharia, na época, a milionária quantia em libras esterlinas. Dezenas de expedições foram organizadas, dentro e fora do Brasil, 3/5 delas tiveram a mesma destinação misteriosa do coronel: sumiram.

Rossi acredita que possa haver algum folclore nessa história, mas que há algo estranho a ser investigado. Tanta gente desaparece e as autoridades federais prosseguem ignorando as causas. Talvez por achar que são muito esotéricas para merecerem o investimento de uma diligência mais detalhada: uma expedição, por exemplo.

Para as forças armadas existem outras prioridades. Uma remessa de tropas ao interior dos túneis/portais uma vez localizado os mesmos (existem fortes indicações do lugar onde se encontram), pode levar meses ou anos, até que consigam explorar parte das profundidades subterrâneas, se é que isso é possível.

A magia (tecnologia) dos “Muito Antigos”, pode ter engendrado formas de capturar os membros das expedições, ou fazerem-nos se perder em labirintos e armadilhas, há milênios preparadas e aperfeiçoadas para a eventualidade de uma invasão armada às profundidades dos túneis.

Rossi, chamado pelo chefe de redação, abandona outra vez, provisoriamente, a leitura do “Arquivo Jângal”. Se conseguisse despertar o interesse jornalístico do Conselho Editorial do jornal...Bobagem, seus membros têm outras prioridades. Os custos seriam altos, existem muitos outros interesses em detrimento de uma expedição com esta finalidade.



AS CRIANÇAS MÁGICAS
E A MUTAÇÃO
BETHBRONCA

A síndica do prédio onde habita Sabrina, conhecida por Bethbronca, é pessoa que se compraz em mostrar quem manda e desmanda. Eleita pelo autoritarismo de alguns proprietários mais antigos, que nas reuniões do condomínio primam por mostrar “quem é quem aqui”, costuma fechar o acesso da garotada ao único lugar que têm para brincar no prédio: o pátio interno do andar térreo, sem cobertura, onde patinam, jogam dardos e reúnem-se para trocar idéiazinhas, dando um tempo no ambiente enclausurado do interior dos apartamentos.

Pátio fechado é uma dica de que Bethbronca está de mal humor e as crianças pagam por ele. Antes de sair, a síndica ordena ao zelador que informe ao porteiro:

— Hoje o pátio vai ficar fechado.

Quatro meninas e quatro meninos permanecem alguns momentos “conversando” em silêncio, testa com testa, no espaço anterior à porta fechada que separa o corredor da portaria, da área lúdica interditada por Bethbronca. O uso da telepatia pelas crianças tornou-se rotineiro.

A porta do salão de eventos, onde é proibida a entrada, exceto nas festas de batizado, aniversário, reuniões de condomínio e São João, está entreaberta. As crianças entram e ficam contemplando, concentradas na imagem de uma reprodução do quadro Abaporu da pintora paulista, do movimento modernista, Tarsila do Amaral. Concentram-se na imagem alongada, absorvidas pela aura cultural de sentimentos e sensações que transmite.

Racionalmente, talvez não tenham uma compreensão do que significa a pintura enquanto inserida no contexto da Arte Moderna e da Semana de 22. As crianças permanecem alguns minutos absortos na contemplação figurativa, como se em contato subliminar com a latência e a magia de seus significados.

Com o passar dos dias, Bethbronca, mulher robusta, com porte e sobrenome germânicos, nota uma certa “coincidência”: Ao descer ou subir num dos dois elevadores da área social, está sempre acompanhada de, no mínimo, três crianças que, entre o décimo segundo andar onde mora e o térreo, entram no ascensor, fazendo-lhe incômoda companhia.

Bethbronca acha que isto é apenas uma coincidência natural, afinal o elevador é coletivo, não posso impedir que esses pentelhos fiquem a me olhar desta forma, ostensiva, calada e intermitente. Crianças inconvenientes e mal educadas. Chocante.

Quando não as ignora simplesmente, a síndica tenta ser simpática, com seu sorriso de adulta afetada. A gurizada costuma respondê-lo com uma leve, quase imperceptível, vibração dos músculos dos cantos das bocas. Bethbomba, como a apelidam outros inquilinos, procura ignorar as coincidentes companhias, mas a irritação aumenta toda vez que as vê entrar no elevador, como se propositadamente a cercá-la.

Beth odeia sentir a sensação de ficar sendo observada. Crianças para ela, apesar de quatro vezes avó, ainda parece uma coisa provocativa, um incômodo que precisa tolerar. A afetação ao vê-las entrar no elevador, por não compreender as razões desta coincidência que se repete inúmeras vezes, faz com que fique de mal humor o resto do dia.

Este tipo de ocupação do mesmo espaço acontece por trinta dias. Na última semana do mês chega a sentir-se aborrecida com o incômodo de tantas pessoinhas congestionando o elevador, justamente quando estou nele. Por que não vão estudar? Aposto que nem fizeram os deveres de casa. Gurizada sem pai nem mãe essa. Educação do Terceiro Mundo é isso mesmo. Melhor assim.

Dia seguinte a síndica percebe, ao olhar-se no espelho do banheiro do apartamento, que há alguma coisa errada com a aparência, sem atinar o quê. No outro dia, a incômoda sensação de que sua cabeça está diminuindo. Ridículo, impossível, cabeças não diminuem. Realmente, reduzem-se aos poucos, as dimensões éticas, o pensamento moral, quase que muito imperceptivelmente demais, convoca diariamente as pessoas à aceitação desse supernivelamento “pop” por baixo, de suas mentalidades proletarizadas espiritual, intelectual, econômicamente e via satélite. Os ossos encolhem: a idade, a osteoporose.

A princípio ela acha que é apenas ilusão de ótica. Ora, só faltava, minha cabeça reduzindo de tamanho. Em trinta dias, o crânio de Beth está reduzido às dimensões de um pequeno melão de feira. Ela simplesmente não pode ignorar e achar que é apenas uma impressão, uma ilusão de ótica.

Apavora-se, consulta especialistas em doenças neurológicas, refugia-se num sítio em Ubachuva e de lá não quer sair para nada, nem receber visitas. Tem vergonha de mostrar-se. Ela, tão cheia de si e vaidosa ao extremo, força-se a mudar de hábitos. Após mais três semanas, o crânio da mulher está, absurdamente, reduzido a pouco mais do que o tamanho de uma laranja. Então pára de reduzir-se. Se não tivesse parado, hoje  estaria sem cabeça.

Os especialistas em medicina craniana de seu plano de saúde providenciam dezenas de radiografias, mas não conseguem detectar as causas fisiológicas das radicais diminuições cranianas, atribuídas apenas à "tecnologia" natural de remotas tribos de caçadores de cabeça nas selvas da Guatemala. A aparência, simplesmente grotesca, causa repulsa, medo e compaixão. A quantidade enorme de cabelos, numa titiquinha de cabeça pouco maior que uma laranja. Lembra a aparência das gêmeas da família Adams, só que mais grotesca.

Bethbronca mostra-se apenas para os médicos. Vira uma personagem reclusa, a tomar sopa de canudinho. Os órgãos dos sentidos, posicionados na face de brinquedo: as orelhinhas, o narizinho, a boquinha, os olhinhos mini-mini, afetados pela inesperada metamorfose. Consolo: um dos médicos diz que seus órgãos faciais funcionam como se fossem tamanho padrão. Não houve perda ou diminuição do olfato, da visão, da audição e do paladar. O tato, normal.


O FUTURO “IN VITRO”
MADE IN
BIOCHIPS COMPANY

Carla chega ao escritório uma hora atrasada. Os parceiros de trabalho perguntam o que houve. Logo ela, que sempre chega na hora. O corte curto do cabelo melhorou a aparência, mais bonita, mais na moda, por que o rosto queimado? Explica ter estado cansada.

— Desmaiei na cama com o secador ligado.

— Será que vai haver carnaval? Com todas essas coisas esquisitas acontecendo? Prata, uma colega de trabalho, pergunta.

— Sem a alegria do carnaval, a coisa toda fica ainda mais difícil, você não acha? Comenta Astrid.

Carla não tem certeza se vai haver carnaval, mas as aulas na faculdade de Direito continuam. A desculpa não convence Hélio. Por qual motivo estaria tão cansada uma moça que nem em período letivo está? É a pergunta silenciosa. Ela deseja, em meio à excitação geral, manter uma certa serenidade.

O pai resolve mandá-la passar o que resta das férias na casa da família em Santo Antônio do Pinhal. Por que tanto estresse se a rotina no escritório tem sido, na medida do possível, normal? Pergunta-se Hélio.

Depois de um dia no sítio, Carla sente a leveza de estar entremontes. Os sussurros do vento na vegetação, o verde farfalhar das folhas, flores e galhos. A sonoridade silenciosa dos elementos da natureza, motivando a harmonia interior essencial. Muito diferente das poluições sonoras, visuais, olfativas. Em suma: da mentalidade deletéria sensorial da metrópole.

Mais tarde um banho de cachoeira na bem-vinda água cristalina, saída das entranhas da montanha, a jorrar, de uns quinze metros, sobre os membros. Uma límpida bênção, sucessiva e brusca: a emoção da maré mineral vertendo-se sobre a cabeça, num batismo natural. A enxurrada limpa-a das poluções mis da capital, de seus múltiplos artifícios, das neuras do convívio profissional.

Sente-se purificar o corpo, a alma. Flui nela a energia pertinente para repensar os acontecimentos de uma maneira coerente. Apesar de coisas aparentemente desastrosas, a exemplo da queima de parte do cabelo e da face, intui que algo positivo está acontecendo. Crê: Inexiste mudança sem dor.

Uma vizinha vem visitá-la, ao mesmo tempo em que faz sala, sente-se comodamente sozinha. Juntas fazem massa para pão de queijo. Contam-se as novidades. Preparam dois sabores de chá, esquentam leite para os filhos da amiga e a garotada acompanhante. Um lanche sem refrigerantes.

Sabem que as coisas na metrópole São Paulo e nas outras grandes cidades do mundo, estão longe de um padrão, que até pouco tempo se convencionava denominar normalidade. Forças estranhas interferem em muitas coisas que vulgarmente se denominavam normais.

A realidade transformou-se num horizonte de eventos. Estranhos fenômenos inusitados: A tvfantasma, a combustão humana espontânea, os acontecimentos no trânsito, as variantes do H3V, o vírus que ameaça a reprodução, com baixas taxas de natalidade. A natalidade zero prevista para futuro próximo, as crianças e seus dialetos com sonoridades intraduzíveis. Ao entardecer sentam-se na varanda para trocar idéias:

— Que será que está se passando? Quem, por trás disso?   Natural a pergunta de Anna. As evidências das ocorrências permeiam tudo, dentro e fora dos lares, dos ambientes sociais mais, aos menos festivos. Carla replica:

— Quem sabe? Está todo mundo no ar. As teorias pipocam. Ontem, um Físico entrevistado no Jornal noturno do Canal 2, garantiu que uma antena retransmissora da tvvirtual está localizada na selva amazônica.

— As crianças parecem motivadas por uma intencionalidade alienígena. A mente delas vibra em  ressonâncias psi que o cérebro adulto não penetra ou traduz.

— Alguns exaltadinhos fanáticos por ficção científica, insistem que vai se repetir, na real, o final do livro “O Fim da Infância”, de Clarke.

— A literatura de ficção científica brasileira está muito solicitada nas livrarias. Os autores nacionais estão escrevendo uma ficção tipo exportação, com edições em países anteriormente com mercado mui restrito para a literatura latino-americana.

— O mundo está ficando muito perigoso. As crianças isolaram-se. Os adultos masculinos têm um mundo, os femininos, outro. O pessoal de sexualidade paralela, outro, as várias etnias, outros mais, os negros e outras minorias, outros mais...Todos vendem diferente o peixe de suas crenças que dizem ser a interpretação correta dos fatos.

— As feiras de salvação das igrejas, estão clamando todo dia a certeza de que oferecem, nas prateleiras de seus supermercados da Salvação, o produto certo, a interpretação exata, segundo profundos desígnios do Arquiteto Universal.

— “Os cães ladram, a caravana passa”, quem pode impedir?

— Mas nós, Carla, para nossos filhos, passamos depressa demais, ficamos defasadas muito rapidamente.

— A situação de animosidade instintiva está muito presente. É como se ninguém se pudesse salvar, e fosse induzido a agir de maneira inadequada.

— Muitos pontos de vista, mas nenhum ponto de transição.

— Tudo não passa de acerto inconsciente. Carma coletivo da humanidade, em decorrência do sangue derramado nas batalhas da Segunda Guerra, e seus sessenta milhões de mortos.

— Quarenta e cinco.

— Qual a diferença ? 15 milhões, trinta milhões, cem milhões de mortos nas guerras antes e pós-Segunda-Guerra? E os mortos de hoje, não se somam ?

— O “Reich dos Mil Anos” ganhou o coração das trevas do mundo.

— Todos, de repente, estão sendo confrontados com suas limitações, com o bloqueio psi das subjetividades.

— Tudo que é arquétipo de interpretação está solto nas ruas e reivindica para si a Razão das razões, o Jogo dos jogos, o melhor produto do momento para o mercado.

— Os inúteens transcenderam-se para uma condição que representa um salto mental qualitativo impensável para seus tutores. Negam-se a participar dos eventos verbais do mundo adulto, dos lero-leros da terceira década do milênio.

— “Horror, horror”, como diria o personagem central de “No Coração das Trevas”, de Conrad.

Quando as visitas saem, Carla sente outra vez a calma, o deleite espiritual insubstituível: estar sozinha, simultaneamente acompanhada de todas as abençoadas inquietações da natureza em volta: o vento a fazer farfalhar as folhas das árvores. As cigarras, os lagartos e répteis na caça de insetos para jantar. A quietude necessária para superar as tensões da guerra-fria urbana.

Hora de dormir, acende duas velas de sete dias para seus dois Anjos da Guarda. Estende uma esteira sobre o tapete do chão do quarto, relaxa em meio ao silêncio. A luminosidade da lua, das estrelas, penetra pelos vidros e frestas das janelas.

Dorme e sonha que está dormindo. O espelho da parede defronte ganha uma luminescência transparente, cor de luar. Ela caminha em sua direção.  Atravessa um corredor com paredes cor de mel, esculpidas com pequenas cavidades que se parecem alvéolos. Estranha estar tranquila. Após caminhar algum tempo, chega até uma sala onde um ser humano adulto passa a impressão de conversar com uma plantinha.

A princípio acha a atitude simpática. Aproxima-se mais. Há uma embalagem em suas mãos. Parece cornflakes. Nela está escrito: nutrifoods for animal/vegetal clones. Aproxima-se mais, até ver com clareza a quem ele está alimentando. Ouve a vozinha infantil de felicidade repetindo algo como, não sabe ao certo se ouve direito: “Mazzi, massi, mashe, shiii... Booom”.

Carla imagina agora que a pessoa esteja alimentando uma criança, que, por algum motivo, não pode levantar-se. Chega mais perto para observar melhor o que está acontecendo. O corpo recua súbito, sob o impacto mórbido da surpresa. Ao recuar, tropeça a perna na poltrona e cai sobre ela, o coração a mil. Não imaginou que pudesse testemunhar uma coisa dessas algum dia. Chocante, muito chocante, terrível. A hata yoga e a meditação (adiana-yoga), têm algo com isso? Ela é contumaz praticante das modalidades de yoga, da bacti-yoga (devoção) e da carma-yoga (no trabalho).

O espanto sonoro do grito de surpresa e horror parece não ter sido ouvido pelo indivíduo e por seu divertimento. Estão, talvez, em outra dimensão, não podem ouvi-la. Como posso ouvir os sons emitidos pelo ser, meio a meio humanóide e vegetal?

Esse pesadelo acontece porque está dormindo. O coração prossegue num bate-bate forte, nervoso. O brinquedo, oh não, é um enxerto vegetal com gen humano. Produto da engenharia genética.

Em frente à poltrona da sala na qual está esparramada, o nariz aponta para a tv. No intervalo de um programa, a face da showgirl, convida os tvespectadores a consumir a mais recente novidade do mercado, exemplar clonado: mistura de planta e gente.

— Não é uma gracinha? Pergunta ela com a característica voz de vovozinha infantilizada: E vai fazer companhia, a você aí, da poltrona, por toda a vida.

A imagem do monitor de tv mostra um pescocinho infantil a ganhar elasticidade, a partir do pequeno tórax projetado de um tronco vegetativo coberto de folhas. A boca começa a lamber mansamente a mão da apresentadora ruminando infantilmente: “Hummm, booom, magi, magze, maigi, shshiii, bomm.”

— Olha gente, continua mostrando a imagem do enxerto vegetal com gen humano: Este é um experimento evolucionário singular. Jamais houve, jamais haverá, outro indivíduo igual a este. É a companhia ideal para você senhora, para o senhor, para o grupo do qual vocês fazem parte. Estarão juntos como bons amigos, e viverão uma longa vida de afeição, camaradagem e simpatia. Seu tempo médio de vida é de 89 anos. Este ser híbrido (“Não é uma gracinha?” Repete ela) vai viver, possivelmente, por mais tempo que você.

— Made, magin, bom, hum, bom, ouve-se outra vez o enxerto balbuciar.

A perplexidade de Carla no atônito olhar. O programa vai ao ar pelo canal cinco. A coisa está acontecendo mesmo, ou vai acontecer? Como, quando? Pega o controle remoto e começa a tentar mudar de canal. Não consegue. Navega no desconhecido.

As teclas do controle remoto não funcionam a contento. O contato dos dedos na superfície digital do controle, não é real nem aderente aos dedos como no forro do sofá. Não sabe ao certo como, mas está num melancólico dia do futuro. Não compreende os paradoxos manifestos.

O adulto vira-se, dirigindo-se para algum lugar fora da sala. Carla puxa as pernas esticadas sobre o tapete para que ele não tropece. Tarde demais, ele vai tropeçar. Surpresa: não há atrito entre as suas e as pernas dele. O que pode ser isso? Esse ambiente, ela mesma, não passam de uma projeção a laser? Ela pode ouvir o enxerto, mas não pode ser ouvida pelo homem da caixa de cornflakes. Não houve contato com suas pernas, mas com a superfície do sofá, sim, pode segurar também o controle remoto, mas não mudar de canal.

Dirige-se então até o local onde se encontrava a pessoa, pega a embalagem de nutrifoods e tenta fazer a mesma coisa que ele, mas não consegue. O implante animal/vegetal causa-lhe grande receio, até mesmo certa repugnância. Ele ignora suas tentativas de charmar atenção, como se ela realmente não estivesse presente, ou não fizesse parte da mesma dimensão de sua existência. Traz para mais perto dos olhos a caixa do produto alimentar onde lê:

XURXUX PARK - For animal/vegetal clones: “Este produto contém todos os melhores nutrientes necessários à alimentação e à recomposição homóloga de seres simbióticos criados a partir de genomas animais e vegetais ultra-selecionados. Produto nutricional para embriões em cujos genomas foram incorporadas sequências de DNA exógenos, clonados por cultura in vitro, multiespécies. Garantido pela Biochips Company e pelo Instituto de Biologia Hereditária e Identificação Individual Genética. Produto aprovado pela lei nacional de biosegurança para seres bioorgânicos simbióticos.”

Continua lendo: “Esta é uma planta ornamental sui generis. Peculiar. É dotada de características que a torna super interessante para cultivo em ambientes internos. O colorido das folhas, dos frutos, a textura das flores, do tronco (animado por uma cabeça humana), configura propriedades decorativas incomuns. Atende às necessidades estéticas e lúdicas do ser humano, tal como a literatura, a música, a pintura ou um game de salão. Pode se tornar muito importante para o equilíbrio e a harmonia da vida do proprietário. Parabéns por esta aquisição.”

Carla gira o rosto em direção à tv, atenta ao garoto propaganda que entra em cena anunciando: “O reveillon está próximo. Esteja presente na ceia de frutos do mar do Clube Agassiz. Venha saborear 99 diferentes pratos de mariscos, peixes, moluscos e crustáceos: do cação-anjo à sardinha, sopa de lulas com azeite de cachalote, polvos, lagostas, mexilhões, camarão, amêijoa ao molho de espermacete, ostras... Réveillon Agassiz: Para quem não tem medo de ser feliz.”

Carla sente com intensidade um formigamento por toda a superfície da pele. Em poucos momentos surpreende-se de volta ao ambiente familiar do quarto de dormir. Não sabe como, mas esteve num lugar decorado tipo quarto quartel do Terceiro Milênio, numa outra dimensão. Está outra vez sobre a esteira, agora em posição de lótus, sem saber exatamente como voltou. Nem como saiu dela. Por mais traumática tenha sido a revelação, a experiência mostrou claramente que tipo de produtos industrializados estará sendo comercializado pela tv em algum lugar do futuro.

Seu rosto faz parte do outro rosto presente no reflexo. Ambas as personas se complementam. Não mais teme a fusão das faces: as diferenças entre seu rosto e o rosto que se fixou ao dela no espelho. As expressões nada mais têm de contraditório. Seu estado anímico não mais sente-se perturbado pela experiência de há pouco. Um pedaço do amanhã se revelou nela. Sente-se presente aqui e em algures.

Duplamente angustiada, os versos de um poema de Richard Wilbur ressoam na mente, resumindo esse trágico sentimento oceânico nela infiltrado pela experiência de visualização do clone animal/vegetal, como se a civilização estivesse condenada a perder os referenciais humanitários:

Sonhai com fluência, irmãos calados, que na infância
Tomastes com vosso leite materno a língua materna
Em cuja pura matriz, unindo mundo e mente
Lutaste para criar alguma linha de verso
Como suave rastro em campo de neve
Não avaliando que tudo podia derreter e sumir.

Como se a despertar do torpor exclama com uma certeza que até então não se presumia capaz:

— Melhor não haver futuro do que viver num tempo que há de vir como esse. A voz repete os movimentos labiais de seu duplo, da criatura, da projeção, a olhar para ela do espelho, a olhar-se nele.

Estaria seu alterego a convencê-la de que, se houver futuro, o caminho do progresso será esse? É, a um só tempo, ela mesma e a outra. E gosta disto, da poesia que um dia leu, em ressonância e sincronicidade com os versos de Walt Whitman:
Em cada objeto, montanha, árvore e estrela
Em cada nascimento e vida
Como parte de cada, desdobrada de cada
Significado atrás da manifestação
Uma cifra mística espera involucrada.





“O ABAPORU”

Bethbronca contempla-se, mas o espelho não é mágico, nem traz de volta a imagem anterior à mórbida metamorfose. Certo, está acontecendo uma coisa por demais absurda. A antiga proporção da cabeça persiste. A sensação de que ainda está aqui, como uma aura.  Mas a cabeça, propriamente dita, está ausente, talvez a aguardar o momento de voltar à dimensão normal, consola-se.  

Lembra das dores de cabeça que antecederam à miniaturização do crânio. Puxa pela memória. Deseja saber como todo esse absurdo começou. Olhos, boca, ouvidos, nariz, testa, cabelos: como era bonita normal, apesar da idade. Beth escova a cabeleira, a exercitar a antiga, inútil vaidade. Os olhinhos cheios de uma frustração indizível, lágrimas de ódio rolam das facezinhas alaranjadas.

Afirma-se nela a emoção de que perdeu a guerra para um tipo de poder do qual está excluída, exceto enquanto vítima. Nesta realidade inusitada, vale tudo, até fazer com que esteja reduzida àquela personagem surreal, corpo imenso, mente de passarinho, da pintura modernista.

De repente, num rompante, guinchos e berros de indignação:

— Como essa merda foi acontecer logo comigo?

A boquinha mínima abre-se num esgar de vômito. Vômito que ameaça sair, mas não sai, aprisionado ao esôfago, que se encomprida como se fosse de plástico. A cabeça cresce alguns centímetros de diâmetro, o pescoço estica-se para dar passagem à massa de alimentos mal digerida. A carinha, uma grande maçã de fogo, vermelhinha.

Nhéco, brughi, croongh, shungri, vlugt: os restos da alimentação caem às golfadas da boquita pintada de Bethbronca. Pragueja, os lábios contorcem-se de raiva. Os ressentimentos fluem das entranhas mais profundas da alma negra, vingativa:

— Foram as crianças, não sei como. Foram elas, as malditas crianças. Fizeram isso, as bruxinhas, filhas das mães. Aqueles duendes, garotinhos malditos. Terceiro Mundo, como meu avô dizia, é um lugar primitivo cheio de bruxarias.

Lembra das vezes que chamou o elevador no 12º andar. Entre ele e o térreo sempre entravam crianças e a ficavam encarando. Forçando-a ao vexame de ter de esboçar sorrisos de boa educação para elas. Achava esquisita a presença delas toda vez que o elevador parava, entravam, uma, duas, três, num e noutro andares. Jamais imaginou essa consequência.

— Como conseguiram isso? Malditas.

Busca a cabecinha quase perdida entre as mechas de cabelo, alfinete num palheiro. Achou-se parecida com alguém. Mas quem poderia parecer comigo? Ridículo, é impressão, neurose. Ah, sei, sim, a reprodução do quadro daquela pintora modernista, no salão de eventos do prédio. Aquele quadro danado de horroroso, bobagem modernista. De quem foi a idéia de pendurar aquele quadro lá ? Aba...Abu...Abazulu, não, não. Abapu...Abaperu, não, não... Aba, Aba qualquer coisa, Aba não sei das quantas. Malditos baixotes.

Com o narizinho respirou fundo várias vezes. Acalmou aos poucos a animosidade, fez carinha com ruguinhas de injustiçada:

— Mil vezes malditas crianças. Engasgou-se, tossiu:

— Como puderam os pestinhas? Não pode ser. Não pode ser. Bethbronca se contém. Ela sempre primou por parecer educada, senhora de si, européia. Agora, essa postura de gentinha supersticiosa.

— Controle-se Beth, ralhou consigo, com certeza há uma explicação científica para isso.

—  Que horror, meu deus! Exclama, olhando-se no fundo dos olhinhos. A medicina moderna descobrirá a cura para essa moléstia maldita? Lágrimas de raiva, em miniatura, escorrem pela superfície lisa e circular das faces. Demoram a descer pelo pescoço demasiado estriado e longilíneo. Vergonha, humilhação, vergonha. Demais, demais. Ahhh, urghs, gruunchm: cai em prantos.


H3V
EXTRATERRENO?

Hélio está menos intranquilo, com Carla passando o resto das férias em Santo Antônio do Pinhal. Com sua própria vida e futuro, não tão otimista. Percebe manchas escuras na parte anterior das mãos, na interna dos braços, assim como à direita e à esquerda do tórax, na pele sobre as costelas inferiores.

Ao seguir para o apartamento, sozinho no carro, fica matutando sobre a irresponsabilidade consigo mesmo e com a família. Bobagem ceder ao impulso de fazer sexo, mesmo sabendo que a vadia poderia estar infectada. Quando a camisinha estourou, nem ouviu o ruído, prosseguiu compulsivamente no fuque-fuque.

Agora sabe como se sente mórbida uma pessoa condenada à morte por esse vírus, complexo demais, possivelmente criado por uma experiência científica de laboratório militar. Até mesmo os extremamente paranóicos militares do Mundo Globalizado da Guerra Fria se impunham limites. Ou não?

Entrou em surto de autopunição, por ter acompanhado os sofrimentos da jovem amante, da qual gostou mais do que da mulher, mãe de Carla. Ela chamava-se Walquíria. Ao invés de apoiá-la, abandonou-a quando soube que estava soropositiva. A culpa o infectou, não apenas o vírus.

Fica matutando sobre os efeitos do H3V. Assola o corpo com fungos e bactérias que destroem gradativamente os órgãos, satura o sangue com novas variantes, entumece e estraga as gengivas, compromete as funções sensoriais básicas, destrói as matérias brancas do cérebro, transformando-as em uma pasta necrosada cheia de grânulos, tumores cancerígenos, quistos do tipo sagu.

— Não, não é possível, murmura de si para consigo. Nenhum cientista seria, talvez, monstruoso de prestar-se a criar esse horror virótico, esse poder destrutivo da guerra bacteriovirótica.

Mesmo com toda a grana que a pesquisa militar destina à compra dos serviços desses cientistas, com certeza, não... Sim, muitos deles se prestam, por dinheiro, a todo tipo de baixaria experimental.

Dinheiro compra tudo. Os cientistas não são nem mais nem menos venais que outras categorias profissionais. São mais perigosos, quando vendem serviços aos militares. A ciência, afinal, não é mais que outra  mercadoria etiquetada, em oferta nas vitrines do mercado de trabalho do capitalismo selvagem, a qualquer preço: “Lance um míssel em cima dele, depois aplique um ban-aid”, é a lei.

Hélio prossegue num estarrecido murmúrio subjetivo: A natureza humana por si mesma, não teria recursos quimiobiológicos para criar um inferno orgânico dessa proporção destrutiva. Negação superlativa da condição normal de si mesma. Quanto mais coitadinho e comiserado mais deprê.

Todas essas evidências são suficientes para convencê-lo de que o H3V é extraterreno. Imagina: a criação sádica desse vírus exigiria um superconhecimento hipercientífico, sobre-humano, extraterrenal, desde que produz os aniquilamentos perversos, parcimoniosos, gradativos, das defesas naturais do corpo do infectado.

Passa a creditar que o vírus é obra de algum demônio. Lúcifer, na tradição oculta, representa a alma coletiva dos habitantes de certo planeta cuja estrela explodiu. Migrou de Vênus, as condições deste planeta Terra, mais parecida com as de seu habitat anterior.  Seu psiquismo, por imitação mecânica (psicosmose), tem por propósito limite explodir este planeta depois de  esgotados os recursos ecológicos.

Em seu diálogo interno, pergunta-se:

Algum ser humano, por mais paranóico, degenerado e psicótico, por mais repulsa que possa sentir por outros semelhantes, por suas idéias, seria capaz, por dinheiro, de desprezá-los o suficiente para investir na criação de microorganismo tão virulento e avassalador? Há ser humano com tanto horror à própria espécie? Com tanto ressentimento e ódio a seus semelhantes? Talvez. Não, com certeza. Há sim.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 23/04/2011
Alterado em 12/12/2013


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