Textos

A MOCHILEIRA (Thundra) I
Assessoria Científica:
Professora Mabel Norma C. Ulbrich.
Titular do Departamento de Mineralogia e Petrologia do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP).


S U M Á R I O

L I V R O P R I M E I R O

15 HISTÓRIA: AME-A OU DEIXE-A
19 A GAROTA DA TRAVESSIA
23 OS PRIMEIROS PASSOS
27 ILUSÃO OU ESTRANHA REALIDADE
32 UMA DILIGÊNCIA POLICIAL INCOMUM
39 “PERGUNTE AO PÓ”
41 RUMO A PARATI
45 WINWEN E OS ÍNDIOS COLONIALISTAS
46 ERAM OS “GUIAS” ESTRANGEIROS?

L I V R O S E G U N D O

61 A METRÓPOLE VISTA DO HORIZONTE
DO PÁSSARO
65 A AGONIA DE TÂNIA VIA SATÉLITE
67 “SENTIU FALTA DE MIM, GAROTO?”
69 “ECCE HOMO” SAPIENS CIBERNÉDIPO
71 DORMINDO NA CRUZ COMO SE NO
TRAVESSEIRO
72 MAMÃE MÁQUINA DÁ A LUZ A PAPAI
CIBERNÉDIPO
79 A “TURMA” DE MIRASSOL
87 NO VENTRE DA MÃE BALEIA
94 O INCRÍVEL PODER DE FASCÍNIO
DOS “BUTTONS”

L I V R O T E R C E I R O

102 TRADUZINDO O “BUTTON”
DO SÍMBOLO DESCONHECIDO
104 JÚPITER, EUROPA E A MOCHILEIRA
106 OS MIL OLHOS DO “DR. MABUSH”
108 “ACROSS THE UNIVERSE”
115 TIO SUGISMUNDO: PROGRESSO À
WOTORANGOTANGO
116 CASAL UFOLOGISTA DÁ SEU RECADO
122 OS MERCENÁRIOS DO HORROR
125 EM FAVOR DA DEMOCRATIZAÇÃO
DESSE CONTATO
126 STELA: CONDUZINDO-SE ATRAVÉS DA
LONGA E SINUOSA ESTRADA ATÉ A
MINHA PORTA
129 EFEITOS DAS LIDERANÇAS À
CROMAGNON
130 A POPA DE “ARGO” LEMBRA A
HIPPIE PUPPY
131 SATÉLITE EM ÓRBITA, OU RADAR,
DETECTOU UFO NO PASTO EM
NOVA ALIANÇA?
132 TRÊS NOVOS HABITANTES NASCEM
A CADA SEGUNDO. A TERRA PERDE
1 HECTARE DE SOLO FÉRTIL A CADA
8 SEGUNDOS
134 O UNIVERSO É UM CAMPO UNIFICADO
135 OS DIREITOS DE QUEM VÃO
PREVALECER? DAS LIDERANÇAS À
CROMAGNON OU OS DOS SERES
HUMANOS?
137 “ELES” USAM BLACK-TIE
138 HABITO NO CAOS DO COSMO?
139 GLOSSÁRIO

P O S F Á C I O

152 HEURÍSTICA E LITERATURA NO LIMIAR
DO TERCEIRO MILÊNIO
153 “MANTER-SE ATIVO, NÃO DESISTIR
ATÉ QUE SURJA UMA IDÉIA IDEAL”
155 COMO SURGIU O INTERESSE PELA
HEURÍSTICA (E/ou pelos problemas
do intelecto)
155 O QUE FAZ ELE, AUTOR?
157 VÁ À LUTA: A BELEZA E A VERDADE
DO TALENTO NÃO VIRÃO PELAS VIAS
INDIRETAS DO CONHECIMENTO
158 AS MÔNADAS, AS MUSAS
E AS OUTRAS “MENINGES”
159 “POR MAIS QUE TUDO MUDE TUDO
CONTINUA IGUAL”
160 VINTE DÉCADAS EM NOVE
161 “ELETRÔNICA CÓSMICA A NÍVEL
QUÂNTICO”
163 BUTIQUE DOS SONHOS E DO TEMPO
165 “PERGUNTE AO PÓ”, AGAIN
166 DÊEM UMA CHANCE À GERAÇÃO
EMERGENTE DE IR À FONTE NÃO
APENAS À ÁGUA



DECIO GOODNEWS
A MOCHILEIRA (Thundra)

E-mail: máster.news@zipmail.com.br

1995
Multigêneros

Dedico este livro à memória dos pioneiros das gerações "Junky" “Beat” e “Hippie”. A todos os seus antecessores que fizeram acontecer os questionamentos universais do século XX. Aos que, hoje, anônimos, não se abatem com as ideologias antidemocráticas, tipo neoliberalismo. Aos que não se permitem conformar com os fogos de artifício tecnológicos da globalização. Aos que, amanhã, continuarão este trabalho de Sísifo.

PREFÁCIO
André Carneiro

Quando Truman Capote escreveu "A Sangue Frio" os críticos não souberam classificar: Romance? Reportagem? Suspense? Policial? Ficção realista? Este tipo de preocupação, meramente didático. O leitor atento, inteligente, sabe encontrar em um livro algo mais que simples distração. Borges dizia: “Um livro que quer permanecer é um livro que podemos ler de diversas maneiras. Permite uma leitura variável, mutante. Cada geração lê de um modo distinto os grandes livros”.

A Mochileira (Thundra), é um livro incomum em nossa reduzida produção literária. Posso garantir às bibliotecárias que anotem na classificação catalográfica: “Um original romance de Ficção Científica. Com aspectos de valor sociológico e histórico muito atuais.”

Até os dias de hoje, a teoria que explica o surgimento do Homo sapiens/demens no planeta Terra, é o sistema de história natural que estabelece o parentesco fisiológico, e afirma a origem comum a todos os seres vivos, com a formação de novas espécies através do processo de seleção natural.

Os partidários desta teoria denominam-se darwinistas. Pesquisas científicas atuais, realizadas por eminentes personalidades do meio científico, afirmam que, para ser cientificamente aceitável (a teoria de Darwin), a idade do planeta Terra deveria ser muito maior do que realmente presumem que seja: cinco bilhões de anos. A espécie humana existe há 250 mil anos.

Sérgio Milliet, um de nossos eminentes críticos literários, se perguntava por que não tínhamos um romance com o backgound da célebre crise do café. mais importante em nosso desenvolvimento econômico do que o ciclo da cana-de-açúcar, motivo de tantos romances nordestinos.

Um sociólogo que imagine interpretar nossa história através da ficção escrita, vai encontrar vazios inexplicáveis. Não temos romances brasileiros passados durante a crise do café. Nem sobre o período culturalmente importante e diretamente influenciado pelo movimento hippie, nos anos sessenta/setenta. Pelo menos até agora.

Dentro de meu conhecimento, inexiste outro romance brasileiro que tenha explorado essa motivação literária de maneira mais abrangente. Ao contrário da ficção americana do norte, onde foram escritos dezenas de títulos, e produzidos outros tantos filmes. Destaques para Easy Rider e O Estranho no Ninho.

No romance A Mochileira (Thundra), os personagens, jovens participantes da realidade internacional de contestação de valores então vigentes, resolvem desistir das ambições de sucesso monetário. Vestem-se de maneira informal, ganham a Estrada, de carona, buscam uma motivação consistente para suas vidas, um valor, uma verdade difícil de buscar.

Num país que ainda não encontrou uma Ética para gerir de modo satisfatório a sociedade, as relações entre governantes e a grande massa explorada, eles buscavam encontrá-la. Ou criá-la. Uma tarefa difícil, senão impossível. Quixotesca.

A menção inicial ao principal romance de Truman Capote, reporta-se às originais características deste romance-reportagem A Mochileira (Thundra). A descrição dos ambientes é viva e entra em detalhes informativos incomuns em um romance, mas muito úteis para o leitor.

É um romance de Ficção Científica porque a parte fantástica e inexplicável do enredo, não é gratuita, nem apela para explicações do tipo realismo mágico. Decio One mantém sempre uma atitude literária de racionalidade modernamente científica. Minucioso nos detalhes, as informações sobre ciência foram pesquisadas com base nas descobertas da Física moderna, não meramente inventadas.

Inédito na ficção brasileira é o retrato da vivência de nossos hippies na truculenta ditadura militar. A vivência da contracultura influenciada pelo "slogan" Paz e Amor. Frágil, para deter os tanques de guerra e a violência em nossas "praças celestiais".

Aqueles que viveram o clima da época podem melhor avaliar sua importância literária. Este romance, reconstitui esses anos com realismo e isenção. A Ficção Científica fica por conta da personagem principal. Ela permeia toda a narrativa: fascinante, inexplicável. Virtual.

A inexplicável e fascinante metáfora da busca de uma Ética por uma geração. Essa realidade este romance fornece em suas entrelinhas.

De suas descobertas, cito a que me parece mais vital: a solução do mistério sobre a origem do Homo sapiens no planeta Terra. A teoria darwinista, origem do "elo perdido" dos antropólogos, não é cientificamente coerente com o conhecimento científico atual.

Este romance contribui para que seja despertado o interesse adormecido do público leitor pelos mistérios sobre a origem sapiens, fazendo com que cada leitor co-participe da descoberta, do nascimento e desdobramento dos eventos históricos neolíticos (neológicos), sobre o “parque jurássico” da origem da espécie humana.

PREFÁCIO DO AUTOR

Ficção Científica: gênero literário que pressupõe uma argumentação que possa ser, ou vir a ser, comprovada cientificamente. A Mochileira (Thundra) faz plena justiça a este gênero, mencionado pela primeira vez por Hugo Gernsback, então editor do fanzine Amazing Stories, numa crítica ao livro A Cotovia do Espaço, The Skylark of Space, de E. E. Smith, em 1926.

Este fazer literário não se restringe aos limites da descoberta experimental. Fosse dessa forma, aceitasse tal restrição, a imaginação dos escritores deste gênero, na segmentação Soft (e na Hard), estaria restrita às fronteiras conhecidas da filologia, da antropologia, da sociologia, da psicologia e historiografia. Assim como o desdobramento das histórias Hard, ficaria reduzido aos conhecimentos da engenharia, da matemática, da astronomia, da física e da química, proibidos, os autores, de ultrapassar os limites estabelecidos pelas leis vigentes do conhecimento acadêmico. Felizmente isto não acontece nas histórias especulativas e extrapolativas desta segmentação do gênero FC.

Não pretendo suprir a argumentação discursiva da polêmica sobre o que é e o que não é fc Soft e fc Hard. FC é imarginação numa só palavra síntese: imar-ginação: transcender as margens: não limitar o gênero à argumentação acadêmica. Abre as portas da percepção do conceito experimental em direção à possibilidades infinitas.

A característica do estilo Soft impõe-se a partir das ciências humanas: da sociologia enquanto índice de desemprego recorde, ou de populações sofrendo os efeitos de condições extremas da poluição atmosférica e carência de recursos naturais, a exemplo de 2020 (Soylent Green), Fuga de Nova Iorque, Blade Runner (O Caçador de Andróides). Nestes romances há a presença da segmentação narrativa tipo Soft, a exemplo de Mad Max 1 e 2.

Os autores softs usam a psicologia pessoal das personagens, os conflitos e a ultraviolência, enquanto crítica ficcional da corrupção desvairada vigente em futuro próximo, a partir de projeções estatísticas atuais e do desdobramento virtual do que está acontecendo aqui e agora na sociedade de mercado neoliberal dos dias de hoje, denominada capitalismo cromagnon globalizado.

Esses ficcionistas Softs, mostraram, em Verde Soilent uma Nova Iorque com 40 milhões de habitantes alimentando-se de comida sintética, produzida a partir da industrialização de cadáveres. O cenário de Escape from New York, é o de uma cidade-prisão cercada por altos muros, vigiados pelas forças armadas. Na área interna do muro que cerca a área de proteção, manda e desmanda o “presidente” dos marginais. Um acidente aéreo faz com que o presidente dos Estados Unidos seja mantido como refém, e um legendário piloto da Força Aérea americana, condenado à prisão perpétua, é escalado para libertá-lo. Se conseguir, terá como prêmio a suspensão de sua condenação.

Já a narrativa de Philip K. Dick, Blade Runner, passa-se numa Los Angeles superpoluída e superpovoada, na qual convivem habitantes de todas as partes do mundo que nela trabalham e sobrevivem num clima de trágica promiscuidade.

A poluição chegou ao extremo de impedir que a luz solar seja visualizada. Andróides, fabricados através da engenharia genética de ponta, Hard, voltam à Terra com o objetivo de fazer contato com seu criador, para obter dele uma sobrevida além dos quatro anos de existência útil para a qual foram produzidos. Após piratear uma nave de transporte de metais, eles voltam. Não lhes é permitida estadia no planeta.


Denominados “replicantes”, são impiedosos e impiedosamente caçados pelo blade runner Deckard. Deckard envolve-se emocionalmente com uma bela fêmea replicante, anteriormente destinada à satisfação libidinal de uma colônia de militares. Após cumprir a missão Deckard e a replicante fogem da cidade. Não interessa ao mocinho saber quanto tempo de vida resta a ela, se ela souber usar os dotes da libido e da sensualidade para os quais foi produzida em série.


Em Mad Max a Terra está dividida entre grupos fortemente armados, a lutar pela posse do que restou da gasolina para encher os tanques de motos e carros que migram pelas estradas em busca de inimigos que têm as mesmas fixações por postos de combustível. Tio Freud explicou. A inspiração está nas histórias em quadrinhos estilo Metal Hurlant e Heavy Metal. Os estilos Soft e Hard não raramente interpenetram-se.


A Mochileira (Thundra) conta, na parte Soft da narrativa, como sobreviviam os milhares de jovens, que na década de setenta buscavam um modo de vida fora do muro da vergonha, erguido entre população civil púbere e as salas de jantar policiadas pela ditadura atuante nos níveis da repressão familiar, acadêmica, religiosa e política. A telinha da Globo, na primeira, mais que na segunda década da ditadura, condicionava as pessoas da sala de jantar à aceitação ampla, geral e irrestrita da dita.

Aqueles jovens fugiam do controle familiar, político e social agenciado pelas mídias. As forças sociais avassaladoras, uniram-se, inconstitucionalmente, no sentido de castrar a vitalidade da juventude, tornando-a precocemente gagá, escrava do cartão de ponto, das influências nefastas e homicidas da repressão familiar, político-ideológica, econômica, financeira, burocrática e militar. Como diria Max Weber: “A mais típica forma de domínio legal (e a mais feroz), é a burocracia”.

Nomes que representavam o pensamento erudito daqueles tempos prosseguiram pontificando na “melhor” mídia escrita e tvvisiva, âncoras dos principais jornais, como se fossem “ratinhos livres da elite globalizada”, “remanescentes jurássicos” do moderno e pós-moderno, arbítrio letrado e institucionalizado pelas academias ditas de kultura literária (Ph.D).

A Mochileira (Thundra), mostra a rebelião da parte menos quieta da mocidade independente. Personagens que rejeitavam uma realidade social à "Admirável Mundo Novo"  ou à "1984", incapazes, graças a Deus, de não se adaptar aos esquemas fechados da burocracia hierarquizada sadicamente.

A parte científica, psicossociológica, deste romance, mostra jovens negando-se a se render prisioneiros de ratoeiras acadêmicas monitoradas pelo autoritarismo. Jovens recusando-se à interpretação de personagens senis em ambientes de teatralização conceitual: familiar, educacional e profissional. Jovens tentando realizar a juventude, para que suas vidas não fossem engolfadas por uma aposentadoria senil, fanaticamente mecanizada, ganha pela terceirização globalizada do cartão de ponto.

O salário lhes compraria a alma e reduziria a nada a possibilidade da bem-venturança, de querer e poder realizar sonhos, enquanto ainda podiam ser sonhados. Jovens reivindicavam o direito de sonhar, de viver conforme a atualidade da vida, das influências de sua geração. Não gostariam de estar com o tempo comprometido em prol da industrialização desvairada, que investia na posse e no uso de armas de destruição em massa e em projetos de deterioração ambiental, consequentemente mental, com padrões de condicionamento, educação e saúde, ditados pela devastação de recursos naturais em nome do acesso famigerado à industrialização de poluentes.

Estavam sabendo que, há pelo menos três décadas, os motores de combustão interna dos veículos que poluíam (e poluem) a atmosfera, estavam obsoletos, mas não eram substituídos por tecnologias que não degeneram as condições saudáveis do meio ambiente, em razão dos cartéis globalizados do petróleo impedirem que fossem usadas, ou sequer se falassem nelas.

Aqueles jovens à margem da sociedade institucionalizada estavam tentando ser minimamente honestos com suas consciências ecológicas, direcionando seus corações e mentes a viver por motivações de sobrevivência menos rapaces. Recusavam ser pagos para cumprir a tarefa de papagaios de pirata de uma hierarquia sem transcendência, incompatível com alguma mínima espiritualidade.

Carl Sagan costumava afirmar que a ciência não é apenas compatível com a espiritualidade, que ela mesma se constitui numa profunda fonte de espiritualidade. Aquela geração "Pé na Estrada" , com amplo conhecimento intuitivo do que as gerações precedentes queriam dela, tentava seguir numa direção em que essa espiritualidade pudesse, de alguma forma, ser preservada, e não avassalada pela ideologia predatória do lucro a qualquer preço, da globalização tecnológica dos instintos cromagnon.

Naquela época dormir no sleep-bag ou não, significava uma atitude vital de liberdade, ou conformista. Sonhos sim, utopia sim, fora de uma estrutura perversa, maligna, onde sonhar ficou sendo uma tarefa impossível, dentro da qual ecoaria a frase de Lennon “o sonho acabou”, e a música de Gil ““quem não dormiu no “sleep-bag” nem sequer sonhou””. Precisava-se de trabalho autodirecionado, autodeterminado, fora dos interesses desse Estado Armagedon das intencionalidades: o Estado político, econômico, repressivo, globalizado.

A Mochileira (Thundra), conta a história da juventude que faz a vida acontecer diferente. Que deseja ser dona da sua alma: pessoal e coletiva. O jovem sabe que para isto acontecer, tomar posse de sua vida interior, é preciso ser dono da própria rotina, pelo menos enquanto medita sobre o que significa estar no mundo.

Estar no mundo para servir a quem? Com que objetivos? A mocidade construía uma História, uma lenda pessoal, fora da história padrão. Esses jovens honraram o significado semântico da palavra geração, juventude: o conceito histórico mais importante que existe. Quixotescamente criavam modos alternativos, fendas de escape da camisa-de-força do tempo real. Recusavam-se a aderir a rotina do cartão de ponto, nela os melhores sonhos de suas vidas virariam pó. O sonho ainda não havia terminado.

Dizia-se: “O que você faz é o que você é”, em contraponto ao muito repelido, porque muito usado num contexto fascista, “diga-me com quem andas e te direi quem és”. Humoramor para esses jovens numa palavra oswaldiana, significava amar e ter motivos para sorrir, “soltar a franga” da imaginação. Buscavam um espaço de liberdade a partir do qual abandonavam as atuações no palco de uma realidade repressiva, dantesca: “Faça Amor, não faça a guerra”.

O romance A Mochileira (Thundra), mostra que ser “hippie” nos anos setenta não significava estar livre de enfrentar as estruturas oficiais que espalhavam, como uma peste negra, a censura e a síndrome do pânico nas redações das  mídias falada, escrita e tvvisiva. A paranóia e o medo disseminados entre membros civis da população, proibidos de trocar ideias em grupo. Parece ficção mas não é: nos “anos de chumbo”, três pessoas levando um lero, trocando ideias na mesa de um bar, na sala de espera de um cinema, ou numa sessão de teatro, significava uma reunião de aparelho subversivo.

Havia sempre um agente repressivo saído dos porões da necessidade de sobrevivência, para intervir e ordenar: — "Dispersa, dispersa". — "Tá proibido reunião em grupo". — "Sem essa de comitê"  — "Vamos parar com os discursos". O bicho-papão existia mesmo. Se as pessoas continuassem falando entre si, seriam, não raras vezes, espancadas in loco, e conduzidas em viaturas policiais, levadas em direção a algures. Os familiares dificilmente voltariam a vê-las.

A truculência repressiva se fazia presente nos acampamentos, as pessoas de cabelos longos tinham de aguentar a presença dos beleguins de fardas que não raras vezes ameaçavam e reprimiam com virulência, farejavam as mochilas e os espaços das barracas, na ânsia de promover um flagrante de maconha que pudesse satisfazer provisoriamente as perversões ideológicas e o sadismo, enquanto formas aceitas, institucionalizadas, de repressão, impostas pela cultura oficial.

Jovens cercados pela tirania institucional por todas os lados. Ilhados, desesperados psicologicamente porque não tinham sonhos, só pesadelos com que sonhar. Da cultura “hippie” surgiu a alternativa para os filhos da pequena burguesia. E da burguesia. Os raros filhos, os que se recusavam vender a alma em troca de um salário pago pelo sistema do cartão de ponto, pela vida profissional e emocional sem sonhos. Recusavam-se a seguir o lema nazista: "nossa honra é obedecer".

Quem servia ao salário do pesadelo não tinha tempo para sonhar. Todos sabiam facilmente somar dois mais dois: não eram apenas as horas de trabalho, era a própria alma que estavam vendendo ao diabo, vinte e quatro horas por dia.

As alternativas não eram exatamente ultrajantes: "Pé na Estrada" ou o Coma na doutor Eiras, induzido pelo choque elétrico e a hipoglicemia.

A Mochileira (Thundra), mais que ficção Soft, é a História censurada desses livros curriculares de história. Da história que, segundo um general que contribuiu para a mudança dela, “não passa de uma fábula sobre a qual todos concordam”. É o horror “Hard” dos campos de concentração da cultura repressiva em plena década de 70, revivendo os métodos de uma mente doentia que na Alemanha da década de trinta, aos meados da de quarenta, transformou-se na Disneylândia paranóica e sádica no reino unido do Eixo de Hitler.

Cercado pela polaridade virulenta da confusão ideológica direita-esquerda-volver, eu lia tudo que se traduzia, em português e espanhol, sobre esse mundo semântico paradoxal, os romances de Huxley, Orwell, Heinlein, Bradbury, Farmer, K. Dick. E me perguntava: Como uma literatura poderia ser científica e ao mesmo tempo ficção?

Ciência é procedimento experimental estabelecido enquanto verdade institucional nas áreas de humanas, biológicas e exatas. Ficção é ficção, como pode ser científica, se não faz parte do conhecimento institucionalizado, aceito e ensinado nas academias de exatas?

Descobri que a parte ficcional da literatura que eu estava lendo, O Planeta dos Macacos, Fahrenheit 451, É Proibido Procriar, mantinha estreitos elos de ligação com as ciências humanas. A Mochileira (Thundra), escrito na década de noventa, afirma-se enquanto simbiose, exercício mental, vontade de saltar, literária e olimpicamente, o muro da vergonha da criação intelectual que separa o imaginário anglo-saxão do imaginário da ficção criada na América Latina.

A leitura de As Noites Marcianas  (Fausto Cunha),  Eles Herdarão a Terra (Dinah Silveira de Queiroz) editados por Gumercindo Rocha Dorea, fazia acreditar que haveria futuro na FC brasileira, mesmo porque eu tinha em mãos a primeira Antologia Brasileira de FC  que incluía ainda outros autores: Antônio Olinto, Jerônimo Monteiro, e do mesmo editor, Histórias do Acontecerá, com contos de Álvaro Malheiros, Leon Eliachar, Ruy Jugmann. Posteriormente, li Além do Espaço e do Tempo, uma antologia de autores nacionais, editada pela Edart, com contos de André Carneiro, Clóvis Garcia, Rubens Scavone, Álvaro Malheiros, Nelson Leiner, Nilson Martello e outros. Na coleção “Argonauta”, editada em Portugal, havia a presença dos mais destacados autores estrangeiros.

A estrada proporcionou a este autor, bons momentos de leitura da Ficção Científica. No Primeiro e Segundo Livros de A Mochileira, o leitor mais atento identificará influências, questionamentos e experiências psicológicas da ficção científica Soft. Há a historiografia dos eventos realistas narrados, não-ficcionais, incluídos nos desdobramentos “Hard” do texto, presentes também no Terceiro Livro.

O romance (Thundra), mostra que não é nada fácil, mesmo a curto prazo, manter uma mentalidade, um espaço de liberdade, fora dos padrões de sobrevivência do mundo institucionalizado. Esta experiência pessoal e coletiva, de membros de uma geração que enfrentou as intempéries da contestação do poderoso Sistema, merece uma memória, não deve fazer-se pó, poeira do esquecimento. A nova gênese têm direito à História não narrada nos livros oficiais. A memória do segmento de uma geração de cabelos longos e ideias para depois do ano 2000, dá-se às novas gerações através deste livro.

Uma geração que parecia gente de ficção, garimpando um espaço espiritual, interior e externo, de liberdade. Viver não é, nem era, brincadeira não, e viver fora do padrão do patrão, pode ser uma experiência de criatividade, um salto “existencial” com descobertas, estilo Tamino, da Flauta Mágica de Mozart.

A Mochileira (Thundra) traz uma mensagem de Paz. Paz sem poluições mental, ambiental. Paz. Zen. Nas páginas deste romance lê-se possibilidade de mudança, para melhor, da busca pela conquista de um espaço não gerenciado por qualquer forma de opressão. Sonhos, no mundo real, sempre poderão ser sonhados: individual e coletivo, interno e exterior, telúrico e cósmico, Soft e Hard, igualzinho ao mundo da ficção científica.


L I V R O P R I M E I R O

“Penso que a racionalidade
mais profunda implícita em
toda operação literária deve
ser buscada nas necessidades
antropológicas a que essa corresponde."
Ítalo Calvino
(Seis Propostas para o Próximo Milênio)

HISTÓRIA:
AME-A
OU
DEIXE-A

Cães policiais presentes em todos os lugares. Os corpos docente e discente da USP se reprimem exercitando a deduragem. Estudante de História, não entrei na universidade para participar ou ser conivente com esse estado de coisas. Cercado por um clima de guerra-fria, dedurismo e perseguições, sinto-me deprimido com a universidade e com meu país.
Urge uma atitude objetiva para sair do impasse. Segundo meus critérios de avaliação, existem duas opções: permanecer falando de lado e olhando para o chão, ou tentar um feito olímpico: saltar o muro da vergonha para o outro lado de uma vivência alternativa, modelo pé na Estrada.
Pelos meus estudos sobre os métodos de domínio psicossocial do nacional-socialismo, os governos militares seguem a metodologia política da Alemanha de Hitler. Chega de fazer sala nesse contexto imobilizador, tendo a perplexidade por companheira de tensões. Não quero me transformar em mais um membro apatético de uma classe média amordaçada. Até a alma.
Tranco a matrícula na faculdade de História. Crio a possibilidade de trilhar um caminho à São Thiago de Compostela. Cedo à compulsão vital de me distanciar das seis paredes do campus: do ambiente de policiamento ostensivo, emocional e ideológico mal disfarçados.
Planejo conhecer o litoral do estado vizinho. Vencer os preconceitos bairristas de uma educação caipira à interior de São Paulo. Para me capitalizar, vendo meu fusca meia-meia. Deposito sessenta por cento da grana numa caderneta de poupança e, de mochila nas costas e barraca em punho, sigo Estrada rumo ao Rio de Janeiro.
Escrevo um bilhete lacônico para os "velhos". O fato de estarem ausentes de casa facilitou as coisas. Desembarco na rodoviária do RJ as oito horas da manhã de um dia solar. Tânia, ex-militante política e ex-namorada, disse certa vez que os hotéis da rua do Catete, próximos ao Largo do Machado, oferecem um ambiente mínimo de conforto a preços atraentes. Lembrei dela e sigo sua "dica". Trago comigo o peso de sua recente perda.
Difícil encontrar quarto vazio nesses domicílios provisórios, em pleno verão tropical. Ao chegar na portaria de um hotel, seis turistas argentinos estão liberando alguns cômodos. O pagamento de três diárias, adiantado, mais a gorjeta na portaria, permitem-me preencher a ficha de hóspede na ala mais popular do aluguel de quartos. Dato e assino a ficha: RJ, l5 de setembro de 1971. Se não falha a memória, uma quarta-feira.
Pouco mais tarde sigo em direção aos bairros mais badalados da zona sul. Chego num bar com mesas na calçada, altura do Posto Seis. Após dois chopes, o garçom informa que, para chegar a Ipanema, basta seguir a onda dos carros. Sigo a pé até outro bar de nome "Barril". Ao lado de minha mesa estão presentes alguns personagens festivos da nacionalidade.
No dizer de um deles, estão ali para traçar a "feijoada nossa de cada quarta". Três deles são jornalistas de um hebdomadário que tinha por logotipo um rato. No calçadão da praia, a poucos metros, a presença de hippies entre banhistas de sungas e garotas douradas bem vestidas de "band-aids".
Um casal de cabelos longos zanza por entre as mesas com ofertas de artesanatos. Alguém do grupo das personalidades comenta:
— "Olhaí" o pessoal alternativo curtindo o direito de cidadania. E dizem que não há cidadania pra eles.
Um badalado general quatro estrelas, autor do livro muito procurado e nunca encontrado nas livrarias, "História Militar do Brasil", protesta:
— O direito de cidadania dessa rapaziada é um prato-feito por dia, ou dois sanduíches de mortadela, com queijo e coca-cola.
— Não têm nada a perder. Mas parecem vencidos pela modorra — argumenta um conhecido arquiteto comunista, habitante de um luxuoso apartamento de cobertura na Lagoa Rodrigo de Freitas.
— Nem todo mundo pode mamar nas tetas da vaca Brasília — ironiza um jornalista.
O arquiteto faz que não ouve e exclama:
— Beleza pura, ir à luta sem um ginasial no bolso. No lugar deles eu encararia sim, mas outro tipo de batalha.
— Tudo bem, neste país, afora os dez por cento, todo mundo é classe "C". Retruca um repórter: muitos deles trancaram matrícula das faculdades. Tem muito filho de milico alta patente na Estrada.
— Essa gente boa não precisa estar tão à-toa. O general ignora a liberdade da condição hippie.
— Essa gente simples precisa é de uma liderança que ensine os rudimentos do que é cidadania, afirma o arquiteto, um "che" Guevara brasileiro basta para atiçar os ânimos, a dignidade pessoal, os brios.
— Não sei não, aposta o cineasta, o Brasil é um pouquinho maior do que a ilhazinha do Fidel.
— Falta tônus vital, cultura e civilização, reage o general, revolução popular precisa de lideranças políticas fortes. "Cadê" as do Brasil?
— Isso Papai-Noel não dá de presente de Natal, ele mesmo responde.
— A classe política não dá nada pra ninguém, só lero-lero e prejuízo, fala o segundo jornalista. Indicador em riste, ele dá sinais de estar muito doidão de batida de vodka com limão.
— Aí é que você se engana, cara, a classe política dá tudo o que o capital estrangeiro quer, tudo mesmo, reafirma o general. Esses milicos estão a hipotecar o Brasil para os banqueiros do tio Sam.
Sem se dá por vencido, o jornalista doidão responde:
— Pra brasileiro médio eles só dão mesmo é porrada, impostos, corrupção e censura.
— "Panis et Circenses", meu caro, a corrupção está dolarizada, confronta o arquiteto.
— O golpe de 64 construiu uma estrutura jurídica voltada para garantir os interesses multinacionais, garante o general: os milicos amparam a apropriação do maior tesouro mineral do mundo, protegem empresas estrangeiras, criam leis para particulares abrirem portos, investem em transporte ferroviário com dinheiro do Estado, subscrevem contratos de exploração mineral a longos prazos e com tarifas mais que reduzidas.
— É o saque institucionalizado das riquezas minerais da região Norte, protesta o arquiteto, o Código de Minas dos militares...
— Decreto-lei 227, confirma o jornalista biritado.
— Só não acabou com a Cia. Vale do Rio Doce, porque até membros do Conselho de Segurança Nacional reagiram contra esse escancaramento.
— O novo Código suprimiu o monopólio de minérios nucleares ——complementa o general, estabelecido em favor da União no governo de Getúlio Vargas.
— Lei 1310, de 15 de janeiro de 1951, intervém outra vez, com voz excessivamente afetada pelo excesso etílico, o jornalista, que talvez fosse também advogado, ou tivesse escrito matéria recente sobre monopólio de minérios.
A conversa da ilustre patota deu no saco. Esses caras estão na maior doce vida. Pensei. O "barato" deles é levar vantagem no negócio de polemizar. Ser contra dá Ibope e grana. Desligo a atenção da festiva antropofagia das esquerdas biritas. Elas se divertem fazendo alterofilismo de copo e revolução de boca nas mesas dos bares. Como “sofrem” esses representantes da "inteligência" festiva com a miséria política.
As manchetes dos jornais faturam horrores com a violência sensacionalista desvairada: assaltos a bancos, seqüestro de aviões, pessoas desaparecidas, censura ampla, total e irrestrita. A impunidade dos crimes da ditadura era garantida pelos governos militares. O terrorismo oficial e paramilitar explodindo bombas em "shows" de música popular e nas bancas de revistas.
Para contrabalançar o esquemão da barbárie institucionalizada e do besteirol geléia geral, a presença da qualidade editorial da "Revista da Editora Civilização Brasileira".
Uma realidade para Dante nenhum botar defeito. Os Beatles lacônicos: "Let it Be". Os Stones, mais atuais, clamam: "Let it Bleed". Janis Joplin ironiza desesperadamente a filosofia antropofágica do consumo pelo consumo, cantando as delícias de rodar em seu "Mercedes-Benz-Blue". Numa intensidade anímica absolutamente soul.
Bob Dylan afirma que a resposta, meu amigo, está no soprar do vento. Caetano traduz a geléia geral ambiental: parte de uma geração órfã de pai e mãe: "Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, num sol de quase dezembro..."
Hendrix interpreta a parte sã da alma coletiva dos Estados Unidos, dedilhando a guitarra em protesto e revolta contra o complexo industrial-militar da violência na guerra do Viet-Nam, como que substituindo a letra do hino do país do "tio" Sam, pelos versos de Morrinson, muito mais apropriados que a letra original do "Star Spangled Banner":

"Teme os mestres
Que coabitam conosco
Os mestres estão entre nós
Feitos de covardia e preguiça
O homem novo
Candidato a soldado
Escolheu seu pobre destino."

O boom do LSD. As viagens psicodélicas ao interior de si mesmo. Enquanto no mundo exterior, o complexo industrial-militar fazia do sudeste asiático um campo experimental para as novas estratégias militares da guerra-química. Tudo em nome de um monte de cimento armado denominado "estátua da liberdade".
Milhares de americanos queimam, em protesto, na praça do Capitólio, seus cartões de alistamento militar. Dylan instiga: É preciso ser muito honesto para ser um fora-da-lei.
Para poder ouvir e pensar essas influências, necessário estar fora do útero podre do sistema que as gera. Preciso do contato essencial com a contra-informação representada pelo cinema de Buñuel. O Teatro de Piscator, a dramaturgia brechitiana. O "neo-realismo" brasileiro denominado Cinema Novo, representado pelo talento de Glauber Rocha: o Teatro da Crueldade redivivo. O Teatro do Oprimido de Boal.
Mais: as obras literárias do marquês de Sade, de Marcuse, W. Reich e Henry Miller, servem para ajudar as cabeças a acompanhar a velocidade de Fórmula-Um dos eventos, tal como as drogas alucinógenas consumidas em caráter experimental pelos habitantes do outro lado do muro da vergonha.
À revolta contra os padrões estabelecidos pelos "imobilizadores", soma-se a força poética da frase: “A coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol.”
De madrugada, no quarto de hotel da rua do Catete, abro o livro de versos de autoria do roqueiro Jim Morrinson, The New Creatures, e leio as frases: Nas antigas comunidades/Todo estrangeiro era tido/Por perigosa ameaça.
Estrangeiro, neste momento político dantesco, é qualquer brasileiro que mencione a palavra eleição. Ela está no "índex" da ditadura. Em 1971 o país sobrevive segundo modelos políticos e econômicos anacrônicos, medievais. Os generais da ditadura não freqüentaram nenhum escola de humanismo. Seu modelo incondicional: a metodologia militar de Hitler.
Não desejo desperdiçar minha juventude sendo indulgente para com as manobras de controle psicossocial do autoritarismo desvairado. Na Estrada, nesse outro lado do muro da vergonha, há riscos a ponderar.
Nela, existe tempo livre para a mente decidir em que e por que pensar. Há a paisagem a céu aberto e a areia das praias para se trilhar. A passagem das marcas dos pés, que logo desaparecem sobre a superfície úmida da areia da praia, são como versos que as ondas ajudam a escrever na rápida transitoriedade do tempo pessoal.

A
GAROTA
DA
TRAVESSIA

No entardecer do sábado, estou a ingerir um chope numa mesa de calçada de uma pizzaria frente à praia do Leme. Aproxima-se uma garota com ofertas de artesanato. Oi — insinua-se. — Olá, respondo, tudo bem? É apenas uma garota hippie, simpática, pele bronzeada, cabelos castanhos encaracolados, querendo vender seu peixe.
— Senta aí, toma um chopinho. Fica à vontade.
Finjo interesse por uma série de buttons, e por outras bugigangas presas ao longo de uma estola negra pendente de seu ombro direito. Veste camiseta curta, cor laranja, e uma saia longa, azul-claro, transparente, com modelos florais.
Os peitinhos cheios e arrebitados, bicos grandes, redondos, oferecidos, como se querendo transpor a fina espessura do tecido. Oferta de intimidades. Garota comum, sensualidade à flor da pele:
— Tudo bem. Mostro umas coisas, quem sabe você gosta. Paulista, certo?, está a trabalho? pergunta, como quem sabe a resposta.
— A cor da pele me entregou.
— Seu sotaque, a aparência de quem programa o dia seguinte.
— Ahh. Sei, beleza este trabalho. Você, que faz? Indago, olhando pequenas pulseiras ornadas com pedras que imitam as cores de pedras preciosas, ela as retira de uma bolsa escura que estava no interior de outra, castanha.
Parece limpa essa “perua”, tem presença, vidio as coxas através da transparência da saia, pinta um certo tesão.
Certa sujeição subjetiva, sob forma de tênue sugestão psi, ganha força em algum lugar de minha mente. Um estímulo latente, imanifesto ainda. Gosto disso, mesmo sem saber o que é.
— Qual seu signo? Mesmo não tendo signo algum.
Após ouvir a resposta, discerne sobre minha vida emocional e meu poder de sedução. A vontade obsessiva de exercer controle sobre tudo. Disse de minha sexualidade, do timing emotivo lento com as pessoas, até mesmo depois de adquirir certa confiança nelas.
Disserta sobre a face obscura de meu signo. Do desejo impertinente de obter conhecimentos. Fala ainda de minha carência de fé e de esperança. Da aversão que mantenho por assuntos esotéricos tipo Astrologia.
Está fazendo balançar minha crença de que Astrologia é bobagem. Ao discorrer sobre a vida afetiva incipiente, enfatiza minha habilidade em abrir caminho para uma relação amorosa intensa. Mesmo acontecendo a paixão, diz que quase sempre contenho as emoções. Que pouco me permito ceder a elas. Afirma minha disposição mínima para o envolvimento a longo prazo.
Volta agora a se intensificar aquele estímulo apenas latente, presente dentro de minha mente, que mal consigo identificar. Ele agora se manifesta de forma mais consciente: "Você quer?, me ganhe para você". Hesito. Talvez não esteja preparado para uma experiência dessa. Afinal, quem está?
Na vida adulta, ao se ultrapassar o cabo da boa esperança, pouco pode existir de melhor do que colher os feitos de uma mocidade viril. Meu olhar se desloca de suas coxas em direção ao longínquo horizonte. Exclamo: intenso esse visual. A Mochileira, segurando um pedaço de cristal azul na palma da mão esquerda, afirma, como quem crer realmente no que está falando:
— Esta pedra desobstrui os bloqueios da mente. Você acha tolice, não é? Quem usa, ganha melhor condição de vencer a "couraça de caráter". Abre caminho para a visão interior do conhecimento instintivo.
— Não, claro que não. A pedra existe, para algo mais que adorno há de servir, concluo cartesianamente.
— Mais que azul, é indigo blue mesmo. Seu nome é sodalita. Pegue, segure-a na palma da mão. Sinta-a.
— Ahh. Certo, claro, exclamo, fechando-a na mão destra.
Sentindo minha ansiedade crescer, por estar de posse, ainda que provisória, de um objeto que não me pertence, ela insiste em ser solícita.
— Segure mais um pouco. Um pouco mais, sem pressa. É sua. Você ganhou ela pra você.
Meus olhos voltaram-se para suas coxas. Os pelos pubianos escuros, saltando fora dos limites da curvatura da calcinha. Ressaltando a delícia de seu sexo.
— Índigo blues, você lê pensamentos.
— Basta ser natural, instintivo, para se comunicar por telepatia.
— Todos têm instinto, são, uns mais outros menos, telepatas.
— Maior parte das pessoas perde esse dom muito cedo. Habituam-se a pensar o que terceiros pensariam se pensassem alguma coisa.
— Faz sentido.
— Acontece que as pessoas se transformam em instinto apenas, têm olhos para ver só suas necessidades, as mais primárias. De que vale a telepatia se passam a vida contemplando o próprio umbigo? Pensar, conclui, fica sendo exercício mental reservado a poucos privilegiados.
Pintou um clima que pouco tem com compra e venda. Adquiro, para ser simpático, uma serpente de pano, com minúsculos olhos brilhantes de cor verde. Amanhã mando de presente para Márcia em Mirassol, via correios. Até onde sei, ela deve estar na Estrada. Alguém entrega para ela, quando voltar para casa, se voltar. Armando a cobra em espiral, mentalizo: Ela vai gostar.
Encontrei a Mochileira há pouco mais de uma hora e já estamos íntimos. Falei dos motivos que me fizeram trancar matrícula no terceiro ano do curso de História da USP, e sair fora de São Paulo. Achou muito natural minha atitude. Na sequência do lero, falou ser hóspede do apartamento de uma amiga, proprietária de uma butique em Ipanema.
— Não é longe, podemos ir caminhando. Prossegue falando de sua amiga: "A Isa é esperta, une o útil ao agradável. Seu namorado é seu sócio. Está viajando para Manaus. Comprar na Zona Franca dá lucro. Volta em quinze dias. O apartamento está por nossa conta".
— Sei. "Vamos chegar?" Para minha surpresa pagou metade da conta. Seguimos a pé até o apartamento situado no primeiro pavimento de um prédio na Visconde de Pirajá. No andar térreo está situada a butique.
Ao entrarmos, lemos o bilhete suspenso na porta do quarto por um fio de fita durex: "Week-end em Búzios. Esteja a vontade. Beijos. — Isa".
Amô acende uma linha de incenso odor olíbano e outra de mirra. A fita começa a tocar uma música algo estranha, mistura de Stravisnky com canto gregoriano. Transmite a sensação de uma jornada épica, ao mesmo tempo em que intensamente íntimo, o som integra-me.
No banho refrescante, beijinhos começam a acontecer. Ela veste uma camisola transparente. Começo a massagear suavemente seus ombros. A carícia da ponta dos dedos circula por meus bagos, umbigo e mamilos. Ao beliscá-los, um choque de pequena voltagem perpassa-me o corpo, até os dedos dos pés arquearem.
A sonoridade hipnótica da música que ela balbucia acompanha os movimentos de suas mãos por meu abdome. Sobre ele espalha lentamente um óleo de aroma suave, muito suave, como a marcar o ritmo dos gestos, a expressão corporal. O tesão a se intensificar, ainda que contido nos limites integrativos do mútuo, crescente e disciplinado desejo. Como se seguindo um roteiro anímico, deliciosamente imposto pela estupefaciente sonoridade.
Espalha o óleo sobre a ereção, perpassa a língua pelos bagos. Introduz o pênis na boca, os dentes arranham de leve a superfície verticalizada. Os lábios sobem em direção aos meus. Ela começa a cavalgar, amazonas de habilidade indescritível, sobre ele. A camisola transparente, os seios empinados roçam meu rosto. As mãos tecem meus cabelos e a volúpia dos pensamentos. Meus dedos penetram no espaço entrecoxas. Massageiam a parte interna dos lábios de sua vagina molhadinha. A ponta da língua lambe ávida e contida os bicos oferecidos dos peitinhos.
Calor afrodisíaco nos envolve, como se fosse um cobertor a proteger das variações térmicas fora dessa fronteira, onde só o prazer faz sentido. Seu órgão muscular carnudo, alongado, da cavidade bucal movimenta-se em câmara lenta, na direção do cerne de minha mente, invadindo suavemente os orifícos de meus ouvidos.
O desejo multinterativo interpenetra-se. Eros e Psiquê protegidos pelo prazer, após a jornada através do mundo dos mortos. Satisfação e êxtase. Minha cabeça apoiada na almofada marroquina, movimenta-se para trás, enquanto meu corpo, num ritmo lento e contínuo, é deliciosamente cavalgado por ela. Fecho os olhos, abandono-me a esta deliciosa dominação.
Ao baixar o queixo vejo-a, cabeça para trás, a mão direita sobre um seio, a esquerda sob o outro. Minhas mãos chegaram-se a eles, apertando-os carinhosamente, enquanto os músculos de sua vagina contraiam-se com gradativa intensidade.
Os sussurros crescendo até começarmos a murmurar um mantra de lobos. Num momento estávamos a uivar. Um fluxo de líquido quente brotou de sua vagina, como se fosse ela a fonte de todas as delícias. A terceira margem do rio jorrou do pênis para dentro dela em fluxos de surpreendente abundância. Foi o primeiro orgasmo de minha vida. A manhã chegou depressa. Raios de sol adentram a janela do quarto, como se querendo flagrar nossos corpos fazendo sexo. Lendo meus pensamentos murmura:
— Sol voyeur este.
Sim, somos compatíveis. Podemos conviver em harmonia, presumo, dentro do exíguo espaço de uma barraca de camping. Por longo tempo. Sinto-me energizado. A delícia do prazer é um universo paralelo ao mundo dos conflitos e da dor. Faça o amor, não faça a guerra. Começo a compreender o que significa esta frase.
Depois do café da manhã, ao meio-dia, quero ir caminhando até a rua do Catete. Ela diz como chegar ao hotel seguindo pelo Jardim Botânico. Não é perto, mas minha disposição é grande. Sigo suas instruções. Combinamos estar aqui no apartamento às 22 horas. Anoto o endereço. Pago mais três diárias no hotel, estou quite até amanhã, segunda, às 12 horas.
À tarde assisto a um movie no cinema Paissandu, na rua do mesmo nome, próxima ao hotel. O nome do filme, algo apocalíptico, "O Anjo Exterminador", direção do espanhol cosmopolita Buñuel. Meus conhecimentos da sétima arte são limitados, porém, creio, esse filme está na lista dos dez melhores do planeta.
Reencontro a Mochileira na praça N. Sra. da Paz, imediações do apartamento de Isa. Ela tinha transado um button com desenho de um logosigno astrológico, por dois ingressos para uma peça de teatro escrita por José Vicente: "Hoje é dia de rock". Estou escrevendo este livro há duas décadas dos acontecimentos vividos. A memória, porém, é nítida como se os estivesse vivenciando hoje.
Chegamos ao Teatro Ipanema pouco antes da peça começar. Um cartaz indicava a direção de Rubens Corrêa. Com Isabel Ribeiro, José Wilker e o próprio Rubens Corrêa. Paulista, sem vínculos com o bairrismo caipira, parcial, posso analisar a peça sem as seqüelas da "guerra-fria" psicológica alimentada entre os dois estados fronteiriços, por mentalidades tacanhas. A maturidade de minha experiência me exime da suspeita de parcialidade.
As interpretações careciam de consistência dramática. Exceção de Isabel Ribeiro. A porralouquice tragicômica atraía milhares de espectadores apatéticos. A patuscada era um sucesso de público, apesar da direção flutuante, inconsistente. Apenas um happening para faturar um público absolutamente carente de eventos culturais sobre uma realidade emocional incandescente.
Público modelo "qualquer lazeira me diverte". Sem nenhum preparo para exercer consciência crítica. A peça, parte de um nacionalismo cultural antropofágico: "É nacional, vamos prestigiar".
A repressão cultural da ditadura, através da censura, amordaçava a dramaturgia, o cinema, a literatura, a poesia, o jornalismo. Restava-se explorar o mais superficial e oportunista entertainment. Os atores se divertiam ganhando fama e grana com a peça. Hoje, mais de duas décadas depois e, quem diria, no Brasil ainda "agora é dia de rock".
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 21/02/2011
Alterado em 24/05/2013


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