Textos

Os Cavaleiros Da Távola Redonda Do Sertão
Este trabalho visa efetuar um breve estudo do processo de enunciação da linguagem, através da expressão do delírio memorial persecutório (desculpado), do personagem Riobaldo, no romance Grande Sertão: Veredas, do escritor da terceira geração do modernismo, o mineiro Guimarães Rosa.

O objetivo deste preâmbulo se confirma na análise de um texto que supõe a presença da diversidade de expectativas narrativas a partir do estado mental memorioso, transtornado, do personagem Riobaldo. Este, constitui o princípio organizador da narrativa, o ponto de partida, e de chegada, de sua organização literária.

Guimarães Rosa roseou na linguagem. Roseana linguagem do ser tão imaginado cada qual das personagens de Riobaldo, Diadorim, e outros, igualmente encontrados na palavra mágica, poética e política do ser da alma desarmonizada com suas tão veredas do ser signo lingüístico da linguagem. Conceitos e imagens acústicas se unem no crescer do significado fraseado. O significante, expressão oral da língua, ficando sectário das vontades de chegar ao diabo, pobre diabo, que não era senão ele próprio, mesmo, Riobaldo. Ao buscá-lo fora de si, jamais teria como encontrá-lo.

A língua do cangaço expressando-se acerca das possibilidades do ser tão sertão. Ou do ser mesmo, imago: fantasia, idealização de uma pessoa querida, formada na infância, e que se conserva imodificada na vida adolescente e adulta. Memória de si que se volta para si mesma, em sendo sua alma sertaneja que se deve à poesia da canção de Seruiz. Riobaldo ser culpado, devedor da Virgem da poesia. Para compensar esse separar-se do encanto comovido do sentimento do belo, usa ele compensações, festividades, aparições, fantasmagorias, mudanças hormonais fervilhando nas citações subjetivas do demo querendo apresentar-se a si mesmo. Fazer pacto consigo.

A palavra enunciação, relato de façanhas, coisas enunciativas de outras, façanhas das caatingas das Minas Gerais. Chefes de bandos, cabras valentes, boca a boca ardentes, ameaças freudianas, montoeira, sobregoverno a quem somesmamente interessava a cata da grande porção do diamante vivo da guerra mesma, peleja hostil da consagração do delírio. Interminável. Persecutório.

A subjetividade rascunho, delineação de um desenho, ora contorno de figuras, ora gravura, ora escultura, que nunca chega a arredondar-se, desde que parte de um pacto com a enorme tarefa sísifica de ficar no mesmo lugar do qual saiu para todos os lugares: o sertão. Sertão. Útero do ser a parir, qual vomitado, filho consangüíneo do mesmo pai que também é mãe incestuosa: o sertão.

Filho cão, lambendo o rabo da erva daninha, como cobra, Urutu-branco, ofídio crotalídeo, segundo o Aurélio, venenosíssimo, de coloração castanha, estranha, pardacenta, com mancha cruciforme na cabeça, engolindo avidamente a própria cauda de pavão, armado, valente, misterioso. No ser-tão, é tão ser o não ser, que, em se sendo nada, tudo é. Nonada.

Um ensaio sobre Guimarães Rosa, pode ser tão menos inventador das vozes migrantes querendo buscar palavras nas quais se enredou. A direção e a ação da enunciação sem precisão de enunciado. Linguagem, cria ativa, enunciando-se. Posições respectivas do falante e do interlocutor. Um pede, outro ordena, quem tem juízo obedecerá. Cumprirá as primícias da simples expressão de intento, com o dizer e desdizer da emoção de estar a viver o ser tão. Sertão. Nasceu uma rosa na favela do sertão: Diadorim. A expressão promessa do tão perto e do tão longe inacessível, mesmo estando à distância de um braço.

O prisioneiro da própria história do sertão. A língua fuçando o rabo, sentindo as asperezas do odor das caatingas à mineira, como o feijão, a mandioca, as farinhas, nascendo e minguando nas violas, de parte com o demo, democrático, do sertão. Demo Riobaldo, armado e desconfiado de tudo, até do olhar o próprio rabo. E ele cresce com a narrativa, a promessa proposital de continuar, como Sherazade, as mil e uma cantigas historiadas pela ficção realista do real: Riobaldo. Ficção que não tem senão a noite e o dia. As Mil e Uma Noites do Sertão Roseano. Cada sertão, cada oásis, cada mil e uma noites, têm as histórias infindáveis que se merecem, ao se unirem os estados psicológicos expressos na percussão persecutória do desatino, devaneio, desvairamento, único êxtase conclusivo do ser tão solar sertão. Ser tão luar do sertão.

Morreu uma rosa no sertão: Diadorim. Riobaldo da Cunha e a Capitu machadiana. As criaturas do sertão costumam arrastar a linguagem sem peias em suas botas sem meias, sob o chapéu de couro assolarado. Inventado na atualização do enunciado da conversação que por sua vez é enunciação. Do sertão.

O falante adota, o falante indica, transparece na opacidade que entretém o enunciado, virando enunciação. Como cobra comendo o rato do pensar em rápida sucessão. Alhures, as noções vão se deformando, repetindo, redundante na vertente de uma tensão dinâmica entre falante e destinatário. O discurso carece de situar o interlocutor, o sertão exterior, o mundão do enunciado, ao mesmo tempo sujeito falante da enunciação, ao mesmo tempo Riobaldo. O ego Riobaldo local da enunciação do enunciado.

Leroi-Gourian situou em 50 mil anos, mais, as incisões traçadas em pedras e ossos, origens da escrita. Há 30 mil anos, no aurignaciano, figuraram-se gravações e pinturas. Dez milanos a menos a figuração era plantada em todo grupo tribal, atinge a destreza técnica da modernidade 15 mil antes da era moderna. E os falares foram se desdobrando como cobra pelo chão inusitado da língua, primeiro momento decisivo da invenção da escrita: os falares em volta das fogueiras primevas.

O código Riobaldo misturado à vontade de Diadorim, que nunca é o que se mostra (ser tão). Nunca se mostra o que é. Os signos da linguagem subterrânea emanam da festa subjetiva irrelevante do homem do sertão roseano que não consegue rosetar Diadorim. Tudo que ele quer e precisa, inalcansável, exceto pela voz pictograma, que, ao se ideogramar, resvala para uma inconsciência que se rebela contra a fermentação inusitada de elementos fonéticos fragmentados: cosmos magnéticos da psique em evolução. Estrelas azuis lançando-se para a eternidade de uma estrela vermelha, uma anã branca. Fragmentos saindo de corpos celestes da subjetividade sertaneja, para invadir a estrela da manhã, em busca da luz luciferina, desejar desaventurar-se em universos que não o da expansão do matutar, a pleitear um diálogo, intertexto de um monólogo desesperado de querer, desejar sair fora da repetição dos signos convencionais: totêmicos, tabus, mágicos. Desvendar de vez as veredas sobrenaturais do sertão, entregar-se a ele total, por falta de opção que seja outra, irreal. Tão sozinho sertão de todas as criaturas do Deus dará.

A ambigüidade da travessia. O impasse pactua com a esperança desesperançada do sertão da literatura. A força da língua, símbolo a demandar caminhos ermos de regiões do sertão mercadoria, símbolo do diabo. Cangaço, Riobaldo. Afinal quem, no sertão, exclui-se de trabalhar para o demo? Armado até os dentes venenosos, o Urutu-branco, pronto para salivar o monólogo que é sinonímia de diálogo: a pergunta-resposta e a resposta-pergunta.

A alma vem de Deus, sendo por ele estabelecida, nem que o caminhante na travessia assim não queira. Alma não é negociável, títularidade intransferível. A senhora não acha, professora? Me declare, agora, desassombrada, definitiva. Peço. Pergunto para narrar, narro pra perguntar. Vivendo de fazer perguntas, de repente algo se aprende até então passado ao largo. Inapreensível, incontido, inestimável. Como poder apreciar o inapresentável. Que se apresente para poder ser devorado pelo saber canibal do inocente e feroz antropofagismo sertanejo. Sangrento, terrível, perigoso. Viver é perigoso.

O amor, o ódio, o medo, a esperança, a morte, a sorte, a rapina do inapanhável. Não encontrável, inseduzível. O signo no meio da rua, centro olhar do furacão. Os jagunços são como os demais sertanejos: todos rodam a baiana nos confins incomensuráveis da prisão. Do sertão. Sertão é dentro, semente que tira e dá. Não é maligno nem caridoso. Dessemelhante, desagrada, amarga, conforme o senhor mesmo.

Me responda, por Deus, quem é o diabo? Ser ateu e dá graças a Deus, me responda: Quem eu sou. Sou eu? Sou sertão? Não é um pacto com o dito que Riobaldo faz ou não. Pacto consigo, seu próprio estranhamento de ser um ser do sertão. Sertanejo pacificado pelas rotinas da vida aceita na paisagem do botocudo, saquarema, roceiro, pioca, chumbo de caça.

As criaturas regaladas na espera do desejo final da morte. “Deus é a paciência, o contrário é o diabo”. Inexistência até nos ermos da significação de si mesmo. Do sertão. Inexistência do que não há. Redundância. O signo não precisa existir para haver? Se ele não existisse, por teimosia da palavra, aí é que ele ia de tomar de conta de tudo. Se você achar que inexiste, a existência sua expandirá disseminando-se mais ainda.

O signo vige na natureza diversa do homem sertão. Fenômeno, iminente tempestade. Indício de conhecer qualquer coisa, mesmo a do não perceber. Pode não ser fortuito, mas sempre deliberado. Aí está seu mais valer. Sinal do código, da cifra escrita, gestual, visão, bengala branca que tudo espia pelos olhos do cego, trazendo idéia de mais abstrata justiça de ver mais longe os avessos.

Como se pode pactuar com uma inexistência, imaginado remoto certificado do velho trato da serpente? Quem desregula aos poucos as criaturas de uma mesma criação? Lá no “Gens” deve de estar escrito que trato primeiro é valença pra todo mundo. Sempre. As criaturas ainda são de tão ruim peleja como aquelas do paraíso, que botou toda descendência dos que vivem no sertão a perder de vista outra esperança que não seja os deslimites. Andar às voltas, 40, 50, dezenas mais de anos, comendo a poeira e o maná do sertão, que Deus deu, que Deus dá, desde o “Gens”. Ser-tão prisão de si mesmo.

Deus manobra com os homens. Riobaldo é mostra dessa força. Pensa inconvenientes para poder dizer pela língua qualquer signo. Signo arbitrário sem arbítrio: símbolo simbólico. Valor desevocativo, mágico, místico. Um burro não podia de ser um cavalo. Um tigre: “Tiger, tiger”. Deus se manifesta a partir dos movimentos, os ausentes, os presentes. O passado desasseado das coisas. O sertão é do homem não é de deus nem dos remansos do diabo, aonde o sertanejo vai se perder no desfigurado. Paisagismo. Sertão é regozijo, signo de todas as coisas. Tentativas de dizer as indizíveis. É sim, é não. Sertão se funde e confunde, errante, para servi-se de si, de ser tão sertão. Nele o peregrino se integra na travessia da servidão a seus desígnios.

Que é o sertão? Sertão é vida, querença de mutação que não vem nunca. Ter medo nenhum. Riobaldo e seus companheiros, tomando de conta dele, e dentro. Sem poder sair. Quem poderia sair de si mesmo e divagar afora seus limites? Além dele não há signo. Sem conflito, como chegar ao ermo do outro? O sertão é semelhança da espécie de que é feito todo humano. A firmeza dissolve o enunciador por cima da cela cavalgadura. Animal enxertado, tanoeiro, traçoeiro. Encovado em si, a trotar acercado ao nu do corpo da cavalaria.

Sertanejo caminha como centopéia. Mil passos e tantos mais, e não desacerta na busca do profundo signo insuperficial do sertão. Cada ser, tão projeção de exigências solares. Quem quiser compreender, dele se diferenciar, o corpo, a alma, tonteia, desembesta, se dissolve na paisagem de um oásis ao qual não há chegança nunca. Nonada. Negaceia. Com ele se vai envolvendo, obedecendo, escravizando-se. Exigente perplexidade.

Sertão é a cidade invisível em que vivem todos os fantasmagóticos do cangaço. Perplexidade por de dentro quente no chapéu de couro. A expectativa é regida pela rédea da besta. O sertanejo vai virando tigre debaixo do sol, da chuva, do vento, das estrelas, do luar, por de cima da cela. Quem vai abrir nessa casa uma porta ou janela se no descampado não há janelas nem portas? Sertão é relento. É toda parte do mundo sem tamanho definido: tudo incerto, tudo certo, como matemática de cantador de embolada. Pujança inexplicada.

Sertão: um viver tornado por si, ser tão perigoso. A vida de si e do outro tão por um fio de cabelo. Zé Bebelo e os demais bebês do sertão. Zé Bebelo como se fosse bibelô da coragem própria. Se produz, se engole e se cospe. O sertão em toda parte ganha do tamanho sempre mais menor do homem. O lugar incerto do convívio: todos e tudo.

O sertão se consultando a si mesmo na documentação da paisagem. Jagunços trotando em suas bestas, clandestinos chapéus de couro tostados pelo sol da ilegalidade desembestada. Cada dia sobrevida. Trilha desigual de veredas. Melancólico delírio dos vales, cacimbas, espinheiros, mandacarus, lagartos, brejos, pântanos. Aracnídeos, riachos, e demais nichos polissêmicos, geofísicos, geográficos. Visão travada na visão que nunca chega ao real do oásis. Palavra inconsolada. Insolação. Desconsolo. Solo do trote da besta a galopar cavalo.

“Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe pra gente é no meio da travessia. Existe é homem humano, travessia... de terra péssima, vários tipos sobrepostos de areia infértil... árvores, arbustos e má relva, são, nas chapadas, de um verde comum, feio, monótono.” Riobaldo real falando de si mesmo: “Sertão, o barulho das coisas rompendo e caindo, e estralando surdo desamparadas, lá dentro. Sertão!

O ser do sertanejo como se estivesse ao largo do espaço, no tempo sem marcação de horários. A desrotina imprevisível do ser interiorizado do sertanejo-centopéia. O brasileirismo, universalismo. Religiosidade de cabresto, cabra-da-peste. Encabrestado pelo mundo satanizado do coronelismo sertanejo. Caboclo: a palavra mistério querendo configurar-se na transrealidade do sobrenatural. Sertão: Ô inferno pra ter cão. A universalidade do mundo satanizado pela impossibilidade de sair fora do muro da vergonha de fronteiras que se tornam universais, a partir da exasperação máxima das idéias do mestiço, cariboca, carijó, desembestado saber-se engaiolado numa arapuca: seus comparsas todos pássaros, sisifismo, sifilíticos, as asas exasperadas querendo subir a aba do morro no trote. O latifúndio improdutivo, peste social encarnada, da cor do capeta, numa sociedade satanizada pela ordem e pelo progresso lazeiroso desses bandos de cornos do latifúndio.

Riobaldo, rio, boca-do-bárbaro, serpente cármica do paraíso perdido na “terra sagrada do nunca”. Diadorim, Nhorinhá, Ana Dazuza versada em artes mágicas, como bem quer a teologia do capeta. Diadorim, Otacília, mandante encanto de Riobaldo. O gosto pelo ser traído do jagunço. Enganosa, pessoa má e traiçoeira, insinuante, ardilosa, todas as intemperanças da serpente do paraíso sertão, tão Riobaldo. Astúcias, “demasias do coração”. Diadorim, banquete de Platão, negaça, nonada, admoestação dos sentidos traídos pela encenação “rapaz do sertão”. Diadorim, Urutu-branco, serpente do ser tão. Sertão Carandiru, sertão do Urutu, arma guerra ambígua.

Diadorim, a busca desembestada de Hermógenes. Ela quer o pai vingado, o sangue derramado, a alma exposta do sertão, tão radical. Implacável como a cultura das novas gerações globalizadas. Quantas pedras no meio do caminho de Riobaldo. Diadorins. Gostar incestuoso do “progensnitor”. Joca Ramires, vontade de vingar o pai. Tragédia grega. O banquete de Platão às avessas. Sublimação platônica de sua particular Cinderela. Expressão orgânica da sexualidade castrada. Reprimida. Deprimida pela beleza inatingível do ser tão orgânico. Estruturado. Certezoso.

Diadorim, celebração, libido que nunca chega. Enganosa vontade. Pior do que Urutu-cascavel, crueldade sem paridade com nenhures, afinidades com o “deus das SS”, deus do sertão. Apesar dele mesmo ser Sertão Feito Homem. Como diria Patativa do Assaré, homem com agá. Espécie de demônio. Novamente serpente paradisíaca perdendo a todos nos ermos tortos do sertão. Crucificando-se na rotina da ratoeira, pássaro proibido de alevantar vôo. Fênix cinzas, não fosse poder de sê-las, como teria queimado abrasado, circulante, fugitivo, humilhado nos confins da Sibéria sertão?

O corpo de baile das figuras figurativas, emblemáticas. Clichês de valentia, muito sofrer. Trânsito impedido para a manifestação dinamismo de animação perdida. Diadorim, a alma bela da Cinderela romantizada no castelo itinerante, misterioso, da Corte, cavalaria da Avalon do sertão. Ele, Riobaldo, fixado na canção intuída da poesia de Seruiz. A leitura inconsciente de seus significados puros, imaculados. Representados por Diadorim. Intrujo sertão, dentro das idéias, Riobaldo seduzido pelo morubixaba das almas, das falas assoberbadas, singularidade inalcançável: Diadorim. Ser tão à mão. Ao mesmo tempo sertão distante, premeditando hora de chegar inchegável. Inalcansada Diadorim. Inalcansálvel corpo virginal cantado por Seruim. Rito de Passagem sem passagem.

Riobaldo menino-homem perseguidor da Perseguida. Sombra limitando a monotonia e a melancolia interminável, vulva moça infinita, enquanto dure: Diadorim sobrenome Sertão. Falavra voz, silêncio da linguagem sob grande pressão. Com-pulsão compulsória, pedra filosofal, Santo Graal, e nada. Nonada. Nadinha. Merreca. Sozinha. Maria Madalena sem manejo das vontades: ilusão, coração escurecido do mito. Lobos correndo em círculo fechado para alimentar a matilha. Alquimia sem satisfação. Pássaros à inglesa. Era um garoto, Diadorim, era do sertão. Irreconhecível reinado dos medos. Da rainha de papelão do medo. Do ministro do diabo, ingresia pânica da desmodernidade. Tudo tem nome, tudo tem fome: sertão. Até fora dele em sendo ele.

Euritimia, ambivalência, crença no neoliberalismo do sertão. Sertão, cidade invisível. Diadorim, rainha de papelão, balbuciando enganos, mentiras, corpo outro, enganoso, do sertão. Tudo luminoso como aqueles neóns, nos brasões das bandeiras dos coronéis do sertão. Bandeirolas rotas (rotas rotas) de São João. Pintadas nas festas das cidades fantasmagóticas, da gente invisível do sertão. Gente que manda por detrás das tropas de jagunços. Ser tão covarde, ser tão homicida. O medo campeia do balir da ovelha “blair-bléé-blé”.

Como é mesmo o desenho da bandeira das ingresias? A gente vive enrolado nela, como tudo fosse da raça olhos azuis, Diadorim. Cinderela infrutificada. Traiu a tudo de si mesma nos outros. Quis ser ela. Saltar o muro da vergonha, realezas latifundiosas. Ter vida própria. Se mataram a princesa Diadorim, quem mais não há de matar essa gente do sertão, dessas cidades invisíveis das europas sertanejas? Sensível impulso que o sertão desrealizou. A vaga identidade sexual dos lordes, companheiros da Távola Redonda de Riobaldo. Matança à-tôa, de bala. Polícia amarela do sertão. Soldados jagunços, do exército amarelo de sua majestade, o reino do Urutu-branco. Fazendo das massas cinzentas das gentes, queimações. Desidentidades. Tem até jornalista a mando dos Latifúndios da Távola Redonda de Zé Bebelo, cangaceiros andrajosos do medo, matando covardemente gente, nas cidades invisíveis da sertaneja pulsão.

Cangaço, cagaço, prostituído pelas idas e vindas no chapadão. Cangaceiros, jagunços, polícia especial a serviço de sua majestade, o sertão. Doralda, Otacília, Nhorinhá, Nenha, de origem oculta e vaga virgindade, como uma Diadorim Tristona e soldada na paisagem ambulante do sertão. Diadorim Diana, a Caçadora de Hermógenes e seu bando que havia morto seu pai? Princesa da família real dos jagunços da Távola Redonda do Sertão? Pode não desaver alguma justa separação bem e mal ? Palavras da mesma coisa. Se Deus vier, que venha armado. Sertão, onde se mata por matar, de medo de não se afoitar, de não perder as almas todas para o demo, democrático, do sertão.

Todo mundo suspeito de homicida, terror pânico da civilização do sertão. Riobaldo rei, sem poder poético, linguagem que se perde nas margens das lagoas escuras, arrodeadas de areia branca. Da areia branca, da maizena, da farinha, dos detritos das cidades invisíveis do sertão.

Os cavaleiros companheiros de Riobaldo, a serviço dos enganos da rainha Diadorim. Serpente incestuosa que se inseriu na alma de Riobaldo para matá-la mais depressa. Como se alma morresse. Diadorim assombração, cavaleiro jagunço, agora dono de Casa Grande no sertão, agora proprietário das terras do ermo sertanejo, bandeirante, caipira.

Tão brega o sertão das cidades invisíveis da covardia heróica. O muro da vergonha se ergue a todo momento entre os jagunços da Távola Redonda e a realidade mais amena das cidadelas urbanas do país. Matam por precisão e medo. Algum algures diz que há pacto com o demo. Demo, democracia. Ninguém libera o alvar das noites, o luar do sertão. Ele acontece temido, tímido, cheio de poderes, esse sertão.

Riobaldo, menino mitológico. Mais lógico do que mito. A desrotinada vida imprevisível, impregnada pelo misticismo cafona dos coronéis das gravatas de mil dólares e dos sapatões de couro alemão, ou de peles de jacaré. Maldito sertão, veredas do devagarinho. Um Jó, o sertanejo. A quem Deus negou a posse de outra riqueza que não fosse do imenso mundaréu tornado pequeno, feito visual, mundo num mapa que cabe na palma da mão. Demasiado desprotegido de toda possibilidade de redenção. Tão imenso como o grande oceano. Os crimes protegidos pelas leis rotas do sertão. Lei dos latifundiários. Diadorim, rainha da Corte do Sertão da Távola Redonda. Nas Brumas Itinerantes do Avalon Sertanejo.

Diadorim, ser interior efêmero ao mesmo tempo tão fundamentalista na idéia de vingança. Riobaldo também ele enfurecido pelas potestades áridas da seca, das caatingas. Sertão necrópole, financiada pelo capital dos coronelões. Feito filme de Fritzlang. Singular eufemismo, objeto místico do real irrealizado, da terra do cangaço, da terra homem/demens, que não é de deus nem do diabo. As europas estão aqui, presentes no sertão, como quem negaceia a nu, com o capiroto. Linguagem globalizada do poder do medo. Hermógenes, ministro trêmulo, mulo, falando discurso feroz, buscando com a palavra satanizada as almas perdidas no desachado mundo do sertão.

Mundo desencontro. Seruiz Diadorim. A poesia tão perto e demais inacessível. Incerteza incomensurável. Jagunço/demens, perdido na noite da incompreensão. Querendo toda a riqueza concentrar, dividindo apenas com os jagunços que também conseguiam matar tanto quanto ele, a gente indefesa, as Nenhas e Doraldas, Otacílias e Nhorinhás: Rainhas, cada uma princesinha Diadorim do sertão. Indefesa e valente, veredas da vida totalizando uma conta de gente de longe, com emblema e brasão. Nobre escudo de armas, a polícia de jagunços acovardada no sertão das europas. Matando indiscriminadamente todo tipo de inocente, em nome da escrita enviezada, como vitória confirmada pelo sistema alfabético, instrumento de tortura. Linguagem viva matando à-toa. Mídia via satélite, inserida nos casebres, onde água com farinha e feijão é o maná do povo de Deus do sertão.

Reconhece, doutor? O sertão, nonada. Em existindo inexiste no nada. No sem valor. As éticas das etnias do medo. Os jagunços da Távola Redonda das europas a dominar, fazendo a inexistência do tudo o mais que não seja propriedade dela. Da casa real do sertão: o Latifúndio da Távola Redonda.

Sertão signo, propaga a si mesmo e tudo o mais deve de se esconder com medo do medo de ser matado pela morte, território ostensivo da beligerância, dos que matam pelo medo de perder, do poder, as proteções das potestades malignas, pretas, pretinhas, igual petróleo do Oriente Médio. Sertão, anunciação do falso, molestoso. Sertão real, pronúncia da palavra, jagunço Riobaldo, primeiro ministro homicida, a carranca de bobo feroz da corte, discurso alegre, fanático radical, mais fundamentalista que inimigo traiçoeiro. Sertão atualizado nas palavras da tirania dos dicionários. Sertão fundamentalista como os versos satanistas dos condenados à morte pela política do sertão árabe, de nome deserto. Sertão representa governo armado do diabo na rua no meio do redemoinho: Estado. Nem por isso seus crimes globalizados precisam de ser respeitados, pela turma de jagunços do “Pralamento” das europas, França e Bahia.

Todos Cavaleiros da Távola Redonda do Sertão: “sir” Aristides, “sir” Medeiro Vaz; “sir” Joca Ramiro, “sir” Major Oliveira; “sir” tenente Ramiz, “sir” Ricardão; “sir” capitão Melo Franco, “sir” Sebastião Vieira; “sir” Sesfredo, “sir” Hermógenes; “sir” Titão Passos, “sir” João Goanhá; “sir” tenente Plínio, “sir” sargento Rosalvo; “sir” sargento Leandro”, “sir” Zé Bebelo; “sir” João Concliz, “sir” Quipes; “sir” Cavalcante, “sir” José Gervásio. São tantas as excelências que vou ficando aqui em enumerá-las. Excelências inventadas por elas mesmas, modo próprio de Narciso das europas ermas do sertão, mistura deletéria de raças. Nele me desvejo no desespelho. Até nas melhores famílias há pacto com o sertão e as leis do sertanejo. Há pacto com o diabo.

A língua das ingresias, natureza mesma do sertão. Como escrever sobre Grande Sertão: Veredas sem linguagem mediante do contrariar?

Que então seja. O sertão, ele, dito, comanda, demarca destinações. O lugar do signo sobrevive na paisagem. Signo da diversa vida desdita da linguagem do sobretudo sertanejo. A deslinguagem deserudita, gramática inormativa, vista como da natureza mesma do sertão. Zé Bebelo e Riobaldo se perdem da recíproca desconfiança. Riobaldo, no realizar ou não o pacto, consegue servir de chefe do bando até então desgovernado por Ze Bebelo. O lugar dele consegue. A força natural dos elementos vertendo em favor seu.

Governança, travessia, tanoeiro das águas do São Francisco. Joca Ramiro chega no sítio de Selorico Mendes, precisão de passar a noite no turvo do luar enuvalhado, a se esconder nas sombras da noite das inimizades de tocaia. De manhã mantém contato com a memória. Aprecia os cavalos do bando mítico brilhando sob a luz desimpedida da estrela da aurora. Momento de transcender o rito de passagem da infância para a vida do adulto, acostumado a não passar pela juventude, ir logo de contudo, sem permeio, para os laços apertados da vida adúltera do cangaço. Botar de molho a coleira do cagaço, superação de medos. Visar um lugar para pastar quando na aposentadoria.

No seu dizer, transcender o rito: “Eu represento aquela hora, tudo tão bom. E o que é saudade”. O tempo, irreversibilidade, soprou mais forte o vento da coisa outra, coceirinha da puberdade. Assuntou no cantar do outro a pergunta: “Siruiz, cadê a moça virgem?” Do perguntar surgiu o estranhamento. O bando partiu. Os versos permaneceram promessa a se cumprir. Também para a criança, rito de passagem para o desejar.

O tempo levou, o vento soprou as cinzas:

—Seruiz, cadê a moça virgem?

As brasas encandeceram o sentir da poesia atiçou, instigou fogo, incandescência, excitação do apetitar. Aquela coceirinha transtornando os baixios do desejar. O trotar dos cavaleiros, os versos cantados de Siruiz. Significados no que têm de poesia, emergiram do mote afogueado. Contato com o perigo. Vertigo. O galope: força masculina do ir em frente, no parado tempo largo do sertão.

A poeira escorregadia do galope mestiçagem de grilos, na paisagem misturados os bichos, os mugidos, as árvores. O orvalho descendo como luar da estrela mututina. A saga sagrada da memória no homem dito vivido. O menino presente, sempre, sem largar mão do tempo perdido. Proustiano tempo que o homem que perdeu a poesia no momento de encontrá-la. Há de querer passar a vida toda reproduzindo seu pacto com o outro lado enunciado que não rima com o coração, exceto o da rosa mística de satã. Maria Madalena feita Diadorim. Lacaniana. Incognoscível. O “outro” é também a “outra”. Endiabrado. Endiabrada.

Riobaldo lagarta de fogo, no desacertar a desmemória, homem certeiro se faz na pontaria, uma arma da valença de Tatarana. A poesia substituída pelo gatilho. A arma afirmou nele lugar de privilégio na geografia do corpo sertanejo. Os dedos borralhos no gatilho, a moringa na repetição do perguntar: “Siruiz, cadê a moça virgem?” Os pés molhados pelo capim, levou o homem ao girar a roda da memória sempre para o mesmo lugar da poesia perdida. Orson Welles a chamou Rosebud. Lugar inesquecível da infância, louvado no amontoado da desmemória. O critilar dos grilinhos do campus sertanejo. Significado que não quer perder, porém sabe que perdido.

Descobrimento de que as pessoas e as outras coisas não são exata verdade de existir. A advertência incerta da saudade. Sabendo ? Nós todos já vendemos nossa noção de alma para o ser mefistofélico do sertão. Basta nascer, e pronto: peixinho na boca do tubarão. As águas todas correm para o mar. Um dia o sertão vai virar mar e o mar virar sertão. Quem viver há de vê. De ver. Eu queria ser eu outra coisa. Riobaldo constituído da sã vontade. Alma e palma desalma de vez no conflito: Deus ou o demo?

O gozo do agarrar no desespero de fechar, ora num, ora noutro. A desincerteza do duvidar. Lembrei dum rio por chegar a outra terceira margem inchegável. Pressagiar dela aqueles momentos, átimos, coriscantes, à boca do não falável, sem conseguir mesmo que na ponta da língua, a falavra pensar que esteja a desdizer-se. As idéias das coisas passadas, inventadas, esquecidas, tão remota criação do mundo a se repetir. Sempre. Nelas o sentir de cara com a razão. Não a minha, outra que mais apropriada.

—Perguntei ao Garanço: aquele rapaz que cantava cousas.

As sombras delas anuviavam o olhar do coração. Riobaldo queria saber que diabo a moça virgem, perguntar à desmemória do ser mais próprio de saber dela, Seruiz. Não de Seruiz queria saber, mas da moça virgem, branca. A moça do verso que tornou encantado o menino em sua busca pelo resto da vida como cavaleiro da madrugada do sertão, de sua virgem. O paraíso perdido do orgasmo esquecido só praticável com a moça virgem. Virgem santa que a fome era tanta de tão merecida moça virgem. Um cabaço encantado na palavra xis, arquivo definitivo, emoção maior na memória do menino:

—O senhor se alembra da canção de Seruiz ?

O diabo, afinal, seria descoisa diversa daquela poesia ? Escrever é traição, apelo à força ruim de tudo que a lei representa de legal. A simbólica morte dos cavalos, da poesia, da infância. O estar do outro lado da vida: Chefe, num repente. Ze Bebelo arreda pé. Nem ele nem João Goanhá: Riobaldo.

Vida de jagunço, Tatarama, Urutu-branco: o diabo na rua no meio do redemoinho.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 30/07/2010


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