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"São Bernardo": Enunciação & Enunciado
As frases de Aristóteles nos fazem pensar na Ideologia enquanto macroestrutura da sociedade. Falando aos cidadãos de Atenas afirmou: “Porque os cidadãos de um Estado, os amigos do poder, julgam poder distribuir cargos não de acordo com o mérito de ser de um e de outros, mas segundo os interesses dos que possuem as decisões, e as decisões dos tribunais, essas decisões resultarão erradas.”

Lembremos que no tempo de Aristóteles um Estado (assim como ainda agora nos dias de hoje), era um grupo de pessoas incorporado na população, mas distinto dos interesses dela. Todas as democracias têm algo de associação privada, de interesse particular. Os que detêm poder, poder aquisitivo, poder econômico, poder político de mandar e desmandar (Paulo Honório quanto a “São Bernardo”), detêm o poder de propriedade e desejam o bem exclusivamente da classe a que pertencem.

A personagem Paulo Honório criou a utopia de um lugar que era melhor do que o anterior, um lugar construído a partir de sua vontade de ser o proprietário, o dono, não apenas de propriedade privada (bens móveis e imóveis), mas de pessoas. Da vontade, das ideias, do tempo real e psicológico delas. Antes da intervenção dele na fazenda, só havia mato alto, planta ruim, joio, pântano. Com ele vieram as benfeitorias, os empregos, a escola, o progresso, a visita do governador.

O esquema literário narrativo do livro é construído quase que em sua totalidade, no “tempo do enunciado”, mesmo após o advento de Madalena, e do suicídio desta, o narrador se desdobra na exposição narrativa que designa toda a sequência de palavras emitidas por um ou vários falantes, pelo conjunto que constitui os dados empíricos (o corpus) da análise e pesquisa linguística.

Em linguística este enunciado se define no segmento da cadeia falada de comprimento narrativo indeterminado, nitidamente por marcas formais: a fala, a retomada da fala por outro falante, e por outros (discurso direto livre, p.ex.). A palavra latina dictium define este tipo de enunciado para que nunca seja confundido com o sentido de enunciação, desde que esta, enunciação, opõe-se ao conceito linguístico de enunciado. Quando não o complementa.

Paulo Onório em nenhum momento arrefeceu a vontade de domínio do espaço e do tempo do enunciado (dele e das demais personagens), mesmo a partir do advento do suicídio de Madalena, quando há lugar para a inserção do discurso narrativo no “tempo da enunciação”, quando sua culpa quer aflorar, emergir de seu nível mais subconsciente, e somente consegue reforçar o discurso anterior da afirmação do “tempo do enunciado”. O discurso do “tempo narrativo da enunciação” não implica uma simples resposta ao falante interrogativo, num certo estado psicológico expresso na conversação.

No “tempo narrativo da enunciação”, o falante adota uma atitude de distância diante do discurso enunciado, dele, por vezes, se distancia totalmente. Quando utiliza o pronome “eu” essa distância tende a diminuir. O uso da terceira pessoa, ou a ausência direta de referências enunciativas ao falante, aumentam a distância entre si e seu enunciado. Dialogal.

No discurso didático o falante aprofunda a distância entre si e o enunciado. Ele (docente), vai indicando se adere ou não ao próprio enunciado. Afirma-se na tensão do discurso a dinâmica da relação estabelecida entre o falante e os destinatários. O discurso passa então a situar o interlocutor, ou o mundo exterior, em relação ao enunciado.

O sujeito da enunciação é sempre o sujeito falante. Identificado com seu “ethos”.

Mesmo nos momentos de maior dramaticidade do “discurso de enunciação”, quando Paulo Honório, num primeiro momento, mostra-se afligido por muitas culpas (após Madalena suicidar-se), ele atenuou o sadismo presente em sua ideologia.

No “tempo narrativo da enunciação”, Madalena continuou estigmatizada, culpada, acusada de querer impedi-lo de tornar “São Bernardo” um lugar próspero, no qual se realizaria a utopia de sua fixação pessoal de proprietário e “herói” construtor da prosperidade local, a partir dos princípios, normas e/ou da ideologia do capitalismo selvagem (“capitalismo Cromagnon”).

A ideologia do discurso e da “praxis” de Paulo Honório visava, sempre, a colonização impiedosa, sádica, cruel, sinistra, tirânica, dos corações e das mentes das pessoas submetidas ao controle de sua vontade de dominação. Ele visava obter delas a subserviência total, tirando delas sua humanidade, querendo deles uma atitude apenas de servidores. Seus trabalhadores eram apenas prestadores de serviços, coisas, “objetos” de uso e abuso de seu poder econômico, político, ideológico.  

Logo no primeiro parágrafo o autor apresenta quatro personagens: o padre Silvestre, o advogado João Nogueira, Arquimedes, Lívio Gomes de Azevedo Gondim. O próprio narrador fala de um plano que “mediante lambujem”, estava a por em prática. De nenhuma dessas personagens, por um ou outro motivo, Paulo Honório consegue subsídios literários para escrever seu livro.

Ele resolve enfrentar a empreitada sozinho, e nessa tarefa vai mostrando, gradativamente, como gosta de dispor das pessoas que prestam serviços para ele, segundo seus interesses privados. A voz narrativa é em primeira pessoa. O autor é todo poderoso, e dispõe delas, personagens, da maneira que acha melhor, para justificar a dominação não apenas da força de trabalho, mas anímica, ideológica.

A imagem de um homem empreendedor, dinâmico, dominador, obstinado, possessivo, determinado, obcecado, vai se afirmando na narração do “tempo ideológico do enunciado”. Ele não desanima com os fracassos, supera os empecilhos sem considerar princípios, quaisquer que sejam: religiosos, morais, éticos, honra ou vergonha. Ele deflagra toda uma série de ações de banditismo, jagunçagem, ameaça judicial, chantagem, para apressar a aquisição das terras da fazenda “São Bernardo”.

O capítulo 3° se reporta aos acontecimentos de há meio século: a infância miserável, o crime, em pagamento do qual ficou 3 anos, 9 meses e 15 dias na cadeia. A ideologia do “tempo do enunciado” a todo momento confirma os negócios escusos, a manipulação do tempo ideológico que se quer afirmar com a velocidade dos "novos tempos". Contrariando o tempo preguiçoso e estagnado do roçado de Padilha ou da plantação de seu Ribeiro, calma e sem problemas.

Paulo Honório requer pressa, quer produzir para o mercado consumidor capitalista, não há sensibilidade em suas intenções, há apenas a ânsia inesgotável de lucro, afirmada pela noção de quantidade. Luís Padilha é para ele um objeto.

Marciano, Rosa, “seu” Ribeiro e dona Glória, Casimiro Lopes, Mestre Caetano, ele alquebra, humilha, debilita a todos, acovarda-os, submerge a cada um deles na necessidade dos despossuídos, dos excluídos das benesses do sistema da ideologia capitalista. Humilha-os, porque sua referência é a cadeia de acontecimentos nefastos que ele superou pela ganância, pela vingança às humilhações sofridas, quando não passava de peão de boiadeiro de outros fazendeiro e proprietários da região.

Desta forma se confirma o “tempo ideológico do enunciado da narrativa”. A suposta posse de Madalena, o casamento... É aí que o romance começa, e já estamos, aproximadamente, no 18° capítulo. Segundo a opinião dos teóricos da literatura, (Lukács, p.ex..), um romance é a história da busca de valores autênticos por um personagem problemático, dentro de um universo vazio de significado no qual não há imanência (necessidades psi, procedentes da razão ou da espiritualidade).

Paulo Honório somente agora passa a ser um personagem problemático (após supostamente começar a matutar as razões do suicídio de Madalena). Agora ele não mais está tão senhor de si, coeso, forte, irrepreensível, “dono da cocada preta”. O suicídio dela problematiza o autor narrador.

Volta-se, afinal, sobre si mesmo, desnorteia-se. Seu mundo não é mais o do senhor de engenho, o dono da Casa Grande, o carrasco da Senzala. A objetividade de herói épico entre em crise. É simplesmente um canalha em crise. Um capitalista em crise, uma ideologia em conflito. Um ser que não sabe como usar o acontecimento do suicídio de Madalena para se humanizar, tornar-se gente, com sentimentos e emoções a compartilhar com as outras pessoas, que não são para ele senão “coisas”, objetos de uso e abuso de seu poder. Trabalhadores em prol de seus interesses particulares.

O narrador do “tempo ideológico do enunciado onisciente” começa a fazer uma tentativa frustrada de tornar-se humano. Mas já é tarde. Ele cristalizou todas as suas vivências passadas. Não tem condições de repensar-se e a todos os seus crimes.

Paulo Honório está impossibilitado de vencer os obstáculos que o separam de sua impossível humanização. Sua vida continua sendo miserável. As tentativas de justificar Madalena resultam em acusações cada vez mais afirmativas contra a conduta dela. Para compensar uma culpa que ameaça destruir com as bases de sua ideologia, ele reafirma a eliminação do Mendonça, posiciona-se outra vez como “herói” que constrói “São Bernardo”, que inaugura obras concluídas, que recebe a visita do governador, e a ele se mostra supostamente vitorioso. Mas é um homem arrasado.

Nos oito primeiros capítulos ele representa a força dos "tempos novos" com as exigências de seu ritmo de trabalho. Ele é um instrumento da ideologia capitalista, no “tempo ideológico do enunciado”. Seu mundo não tem problemas, os que têm são previsíveis e fazem parte da ideologia.

Madalena entrou aos poucos em seu mundo. O mundo de uma pessoa de aparência forte e afirmativa. Ao cooptá-la, visita o juiz Magalhães para conversar com dona Marcela, mulher deste, sobre os dotes de Madalena. Mente à família do juiz ao dizer que está de visita para resolver os problemas que causa o Pereira. No capítulo 13 há a conversa com dona Glória, preparando a aproximação com Madalena, a estratégia de sua suposta posse.

Ele, Paulo Onório, pretende exercer o processo ideológico de “reificação” (conceito marxista), relativamente a Madalena. Ou seja: incluí-la no processo de alienação ideológica, de “coisificação” de sua realidade objetiva. Paulo Honório não consegue “coisificar” Madalena. E não admite sua derrota nessa tentativa frustrada de submetê-la totalmente à sua vontade de comando, comunicação e controle.

E ficou puto de raiva por não conseguir dobrá-la às suas imposições.

Madalena não se inclui em sua ideologia de senhor dos subalternos: porque era dessa forma que ele os queria: sem vontade, sem caráter, sem ética, sem personalidade, sem sexualidade definida, sem identidade, sem vontade própria. Ela não se submete à sua suposta impotência sexual, ao seu senhorio, à sua “reificação”, à posse de sua realidade objetiva, de seu corpo, de sua alma, de sua vontade, de sua personalidade, de seu caráter pela subjetividade destorcida, pela monstruosidade de uma ideologia criminosa, tirânica, de dominação e degradação do outro pela “reificação” de um jagunço proprietário de terras. Que se transformou em fazendeiro. Em patrão. Latifundiário.

Que progresso o povo do lugar usufrui? Eles não se tornam cidadãos, estão cada vez mais indefesos, não havia possibilidade de dignidade e cidadania. Antigamente eram os deuses e os reis. Com a revolução burguesa, eles foram substituídos pelos proprietários de terras tipo Paulo Honório. Madalena não se submete à autoridade predominante, à sujeição e a obediência esmagadora, irrefutável, a Paulo Honório.

A teoria da ideologia política liberal (neoliberal), “democrática” é baseada na ética judaico-cristã. Como essa ética judaico-cristã considera a mulher e a define, desde tempos antigos, há mais de três milênios? Na fazenda de Paulo Honório não poderia faltar a presença do padre e da representação ideológica da Igreja:

Todos devem aceitar a miséria, a mesquinharia, a usura, a vilania, a ditadura, o despotismo a ideologia dominante, porque, se estiverem afirmando uma aceitação submissa, enquanto bons filhos de deus, o reino da eternidade estará aberto a todos, com os anjos cantando homilias e glórias, aos miseráveis que se submeteram à ideologia dos paulos honórios da vida. Todos muito bem acomodados à direita de “deus pai”, confortavelmente deitados em redes, ou em colchãos “onix”, comprados nos armazéns Paraíba, a longos prazos de crediário.

Que dizem os livros sagrados das mulheres? Vamos nos ater à breve passagem do Levítico (12:2): "Se uma mulher parir um macho, será imunda sete dias. Se parir uma fêmea será ritualmente imunda por 14 dias... Ela contaminará tudo que tocar. Se uma vizinha esbarrar acidentalmente nela, terá de lavar-se e esperar até o entardecer do outro dia para adorar a Deus no Tabernáculo. Após duas semanas após o parto, a mulher não poderá participar de cerimônias religiosas por mais de 33 dias, se deu a luz a um filho, ou 66 dias se deu a luz a uma filha."

A Bíblia não explica por que uma mulher fica impura pelo dobro de período quando dá a luz a uma filha. O conjunto de ideologias que estão incluídas na ideologia de Paulo Honório, se fazem presente no contexto pessoal, familiar, social (e enquanto espécie) de Madalena. Madalena suicidou-se porque vivia cercada por um conjunto de condições que a oprimiam implacavelmente.

Esse conjunto de condições às quais Paulo Honório representava tinha um nome: IDEOLOGIA. Que é IDEOLOGIA? Um complexo de normas, de ideias dogmaticamente organizadas por um grupo político, em uma época, que traduzem uma situação histórica. De dominação. Social.

A IDEOLOGIA por ele representada pressionou implacavelmente Madalena, mas ela se recusou a ser propriedade “reificada” de Paulo Honório. Por não ter uma válvula existencial de escape para sua dominação perversa, patológica, suicidou-se.

Ora, segundo teóricos da literatura, o romance “São Bernardo” começa no capítulo 18? No 19? Quando o “discurso ideológico da enunciação” se faz, finalmente, presente. São dele, Paulo Onório, as palavras:

"A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga que aceito inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranquila. Estou assim, irritado contra quem? Contra mestre Caetano, não obstante ele ter morrido? — Acho bom que vá trabalhar, mandrião!"

Este, talvez, seja o principal texto da “ideologia do tempo narrativo da enunciação”. Neste romance.

Em seu delírio Paulo Honório continua: “Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com o chapéu de couro de sertanejo, ela assoma de quando em quando à janela, mas ignoro que a visão que se me dá é atual ou remota.”

Está presente nestes textos acima, o fluxo de consciência, o monólogo interior, o processo narrativo em voga do romance moderno. A sequência é caótica e os desordenados pensamentos, percepções, sensações de Paulo Honório, tanto tempo depois do “suicídio” da esposa Madalena.

Este romance, um exemplar da literatura realista, nordestina. O narrador, Paulo Honório, representa ao mesmo tempo a força alienada do desenvolvimento, da ordem e do progresso, a miséria ideológica: a fome, a seca, a necessidade, o crime, a impunidade, o papel da Igreja associada à ignorância, ao fanatismo e a tirania da ideologia do latifúndio, da submissão incondicional das pessoas ao poder de um proprietário rural do trabalho e da mais-valia dos sem terra, sem cidadania, sem posses, sem dignidade, sem assistência médica, sem educação: 100 coisas.

No plano psicológico, o romance mostra a insensatez da opressão, a tensão implacável e desesperada de uma mulher que é conduzida inexoravelmente ao suicídio pela insensibilidade de um representante rural do capitalismo “cromagnon”.

Graciliano questionou a ideologia feroz dos paulos honórios da atualidade, para que as livrarias continuem comercializando livros que façam o leitor pensar sobre a condição de cidadania aviltada pela ideologia política, rural e urbana, do latifúndio. As livrarias que tanto estão comercializando uma subliteratura para o lucro dos coelhos.

O suicídio da Madalena no romance de Graciliano Ramos lembra as estatísticas atuais dos suicidas das terras à “São Bernardo” das tribos indígenas. A quantidade de suicidas aumenta escandalosamente. Talvez porque suas terras estejam sempre sendo invadidas pelos paulos honórios da atualidade. Eles levam para elas o alcoolismo, as pedras de crack, a cocaína: os signos da cultura degenerada do homem branco. Quem tem piedade dos povos pacíficos das nações indígenas, colonizados pelos latifundiários, herdeiros das “caravelhas” saídas das Caravelas de Cabral?

As “CaraVelhas” continuam invadindo as terras indígenas. A indústria farmacêutica dos Estados Unidos comprou grande parte da Amazônia. Tirando dessas nações nativas, a esperança de dignidade, de cidadania, as riquezas naturais de suas terras, a matéria-prima para suas cidades de carne, mas sem a sensibilidade e a razão. A depredação do ambiente ecológico, das madalenas tribais, Quem se importa?

Quem se importa? As madalenas morenas, suas filhas pequenas sendo empacotadas como mercadorias para o usufruto da pedofilia do turismo nacional? Louras, mestiças, indígenas, mulatas, as etnias excluídas da sociedade, nas mãos ambiciosas e capciosas da ideologia do mercado neoliberal dos paulos honórios da atualidade nacional...

Quem tem olhos para ver que tipo de política, ideias, valores e crenças estão conduzindo as madalenas das tribos indígenas ao suicídio em massa? O senhor “Mercado”, o senhor da alienação, da coisificação das pessoas cristalizadas pelo ideal do consumismo, as joga no lixão da história, como se fossem camisinhas usadas nos sanitários dos “Psycho Motéis”.

Elas estão cada vez mais pressionadas a repetir o “suicídio” da Madalena de "São Bernardo". As grandes cidades pululam de madalenas. As madalenas habitantes das metrópoles. Fritzlanguianas. Nas metrópoles, nas quais as pessoas que se recusam a ser meramente mercadorias, sofrem as consequências pela recusa a ceder às exigências do processo sistêmico de sua desumanização.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 08/07/2010
Alterado em 15/11/2013


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