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"O Demônio Familiar"
O romantismo das personagens, a superficialidade delas, provêm do enredo tecido em torno de uma situação inverossímil e cômica. As personagens, femininas e masculinas, a se enredarem facilmente com as peripécias provocadas pelo criado Pedro. Tudo porque Pedro queria ser cocheiro. Para ele, escravo, ser cocheiro era adquirir promoção social.

E o autor criava situações que somente numa peça cômica, estilo farsa, poderiam aparecer. Nem com boa vontade entra na cabeça de alguém com dois tostões de QI, que o sexo masculino estivesse tão bem representado, por aqueles senhores janotas, dominando com uma certa afetação, o adestramento familiar construído artificialmente, as relações por demais superficiais com todas aquelas fêmeas "de família" educadamente oferecidas a seus namorados, que de tão bem comportados pareciam visitantes, por demais delicados, nas salas de jantar dos meados do século XIX. E eram mesmo. Tinham de aparecer nela, sala de jantar, o mais emperiquitados possível. Usando modelos, os marmanjos, e os modelitos da escola de moda francesa, as moças casadoiras.

Aquelas mulheres, politicamente, nadavam sempre em favor da correnteza. Não se ouvia delas nem um mínimo comentariozinho crítico a propósito da auforria do "demônio familiar" representado pela personagem pseudônimo do apóstolo Pedro. Escravo com nome de apóstolo, nada mal. Muito cristão e precursor do realismo. Mudemos um pouco a geopolítica da situação:

Por hipótese, um escritor piauiense, escreveu, em meados do século XIX, uma novela na qual aquelas mulheres, uma vez personagens femininas do Piauí (a sinházinha Henriqueta, a nhãnhãzinha Carlotinha, e dona Maria), seriam muito mais autoritárias, impositivas e despóticas, do que aquelas senhoras, senhores e senhoritas da peça.

O suposto paradoxo se justifica: as mulheres piauienses não eram, simplesmente, personagens da vida no palco romantizado de uma comédia, eram personagens do palco da sala de jantar da vida real. O romantismo, enquanto movimento literário europeu, chegou às mulheres brasileiras da "elite", e da pequena-burguesia, com seus padrões de comportamento provenientes das academias literárias européias. Chegou para ficar. Porém, os condicionamentos da etiqueta social eram mais afirmativos que os devaneios comportamentais idealizados pelos autores dos romances e da dramaturgia da escola romântica.

Alencar, influenciado pelos gracejos literários do teatro de comédia italiano, pela influência da dramaturgia de Alexandre Dumas, e pelas personagens dramatizadas da peça "O Casamento de Olímpia", do francês Émile Augier, "mixou" todas essas influências ordenadas, como se fosse uma receita de bolo de Dona Benta. E surgiu a comédia com a personagem central dramatizada romanticamente representada por Pedro, não o apóstolo, mas "O Demônio Familiar".


Ao navegar nesse barco fantasma da dramatologia romântica alecariana, assombrada por personagens dramatizadas de há um século e meio, a referência às mulheres brasileiras nas peças do romantismo, não eram melhores nem piores que nas conexões afetivas e culturais de outras mulheres em outros continentes. Os costumes americanos eram prolongamentos dos costumes da matriz cultural de então, com sede na Corte literária dos autores que ditavam a moda no continente europeu.

O autor em pauta havia criado com o primitivo "Pedro Pedreiro", uma comédia de hábitos com personagens representativos da sala de jantar brasileira. Aquele servo, com nome de apóstolo, numa comédia da escola do realismo, ia ter de padecer sob a chibata das mulheres colonizadas brasileiras, domesticadas pela vaidade "bélle epóque". O pobre Pedro teria de apanhar do chicote representado pela língua grande das mulheres brasileiras. Não que as mulheres brasileiras, ou aqueles seus namorados dandis, fossem mais mázinhas, ou maus, que as suas conterrâneas e seus compatriotas do resto do Brasil.

A mulher brasileira deveria ser uma modelo de virtudes? Certo que não. As educadas na Europa, já vinham plugadas nos varões europeus, e chegavam-se mais próximas dos varões nacionais que, por sua vez, já se haviam chegado às modas da sexualidade permissiva parisiense, graça ao bom Deus, e a seu representante em França, o "santo Marquês".

Juntou-se ao "corpus" da dramaturgia alencariana, os costumes do romantismo brasileiro, representado pela dramaturgia de Martins Pena, França Júnior e Artur Azevedo. A encenação da peça contou com o apoio de Viriato Correia, Oduvaldo Viana e Nicolino Viggiani, empresários e diretores do teatro Trianon.

Os eventos da sala de jantar da dramaturgia romântica alencariana, da peça "O Demônio Familiar", ocorreram em meados do século XIX, tempo escravocata. Era totalmente improvável que um criado, mesmo de nome Pedro, fosse tratado com modos tão corteses, por pequenos burgueses que, para justificarem a ascendência social, tinham de mostrá-la com uma suposta superioridade no tratar seus subordinados com a severidade característica dessa classe fútil e "blasé".

A afetação, o tédio que provocavam seus servidores domésticos, eram literalmente mostrados na indiferença social para com os subordinados domésticos, tanto da parte das mulheres como dos homens da época. Elas e eles faziam questão aberta de mostrar de uma maneira acintosa, o quanto eram "superiores" a seus servos. Principalmente os não alforriados. E haja discriminação, humilhações, admoestações, advertências e castigos.

A exclusão social dos familiares envolvidos na trama, com relação ao escravo Pedro, "O Demônio Familiar", não aparece. Era como se não existisse. Não é à-toa que foi classificada como uma comédia de revista. Os patrões do moço serviçal Pedro, e os amigos desses (patronos), toleravam de muito boa vontade, suas manipulações, sem sequer uma simples admoestação mais severa.

As mulheres da época, alimentaram as teorias sociológicas, como sendo consideradas meros produtos sociais do que havia de mais artificial e superficial. Consideradas, pouco mais que bonecas enfeitadas com os trejeitos e roupagens com que buscavam realçar as vãs vaidades, e capturar, a partir delas, os paqueras e transformá-los, em marido, o mais rapidamente possível, em animais domesticados pelo cabresto matriarcal.

As tias Marias, as donas Henriquetas, as sinhás Carlotinhas por esse Brasil afora, costumavam obedecer, rigorosamente, o manual de comportamento familiar padrão importado da Europa, que incluía o ser, o mais rigorosas e inóspitas possível, no trato com seus subordinados. Quanto mais severas e repressivas, mais mostravam o quanto eram descendentes das sirigaitas mais chegadas ao servilismo à Corte da família real de Portugal no Brasil.

Na peça "O Demônio Familiar", o moço Pedro convive com elas, e suas amizades, como se fosse um membro da família, fazendo e acontecendo, no papel de servo. Todos aceitam que uma mulher esteja grávida ou não. Uma mulher que se diz ligeiramente grávida, cria uma morbidez paradoxal. Assim como estar lieiramente lacaio, na época de Pedro, "O Demônio Familiar", não dá para acreditar, exceto numa comédia de procedimentos comportamentais simplória e despolitizada.

Esse comportamento era um pouco fora de propósito, mesmo numa peça de teatro que, como diria Machado de Assis, "justifica-se enquanto uma simples comédia de costumes". E numa simples comédia de costumes, o objetivo maior, senão o único, é fazer valer o entretenimento do público, os risos e os aplausos. As personagens romantizadas, eram, no mais das vezes, totalmente fora da realidade de suas patologias, pessoal e social.

O fundador da Academia Brasileira de Letras, definiu "O Demônio Familiar" como uma peça que mantém o "ar de convivência e de paz doméstica que encanta desde logo". É uma definição realmente romântica da família brasileira da época, das artimanhas manhosas e da agressividade característica e auto-afirmativa de suas personagens da sala de jantar. Justifica-se em sendo, por definição, uma simples comédia de costumes.

Pedro, "O Demônio Familiar", define-se a partir da clássica receita: Três colheres de sopa de chocolate com vinho colhido na França da safra do autores do "Café Français", quatro colherinhas dos cafezais literários e românticos de Martins Pena, França Júnior e Artur Azevedo, e mais um tanto do tempero adocicado dos autores do Teatro de Ópera Italiana de Milão, que apresentava, principalmente, as peças de Alexandre Dumas, autor de influência confessa nos escritos da dramaturgia romântica alencarina: "made in" Paris, Itália e sudeste do Brasil.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 08/07/2010


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