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“Laços De Família” — Ela, Rosa Púrpura Do Cairo”
A personagem central vivenciava a vida artificial de uma rosa de pano. Lembra “The Purple Rose of Cairo” (Woody Allen). Uma marionete do lar, centrada em meia dúzia de fixações. Tanto, que entrou numa crise intensa de intenção da vontade, por descobrir que ia oferecer à amiga um buquê de rosas. As flores eram tão lindas que ela pretendia imitá-las em sua beleza passageira. Ela também gostaria de reter a sedução, o encanto, a delicadeza da flor.

Ela temia que, ao oferecer as flores à amiga, perdesse ela, Laura, aquele contato tão essencial nela ausente: a leveza, a beleza, a originalidade, a manifestação fugidia do queria para si, e em dando a outrem, perderia. Sua fragilidade tão grande, a perenidade de um momento que ela não poderia viver. A vida fugaz de uma rosa. Mesmo essa fugacidade ela não teria, porque nada nela era da natureza autêntica, instintiva. Tudo nela era mecânico, imitação, artificialidade. Ela queria presentear o buquê à amiga sem se separar das flores. Sem estender as mãos e os braços e ser capaz de doar-se. Porque ela não queria perder o contato com a beleza intransitiva, passageira, que ela invejava da rosa. Das flores:

(Lispector, 1998): Mas, sem saber por quê, estava um pouco constrangida, um pouco perturbada. Oh, nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema a incomodava (. . .) Nesta cena imaginária e aprazível, que a fazia sorrir beata, ela chamava a si mesma de “Laura”, como uma terceira pessoa. Uma terceira pessoa cheia daquela fé suave e crepitante e grata e tranqüila, Laura, a da golinha de renda verdadeira, vestida com discrição, esposa de Armando, enfim, um Armando que não precisava mais se forçar a prestar atenção em todas as suas conversas sobre empregada, carne, que não precisava mais pensar na sua mulher, como um homem que é feliz, como um homem que não é casado com uma bailarina.

O ideal de Laura era querer ser uma pessoa perfeita, uma mulher perfeita, uma mãe perfeita, alguém que não precisava sempre fingir estar bem, porque não acreditava nunca que pudesse estar bem. Essa a sua “perfeição”.Gostaria de poder ser uma metáfora da rosa, da flor, de sua “tranqüilidade luminosa”. Da naturalidade de seu fascínio, ainda que transitório.

Sentia-se demasiada culpada, exceto por imaginar que, todo o dia poderia dar-se àquele homem. Uma certa satisfação resultava disso, a única coisa que talvez pudesse assemelhar-se à efêmera ocupação da fêmea, a fugidia quimera de um orgasmo que se assemelhava à duração da vida de uma flor.

A característica principal de Laura estava em tentar conseguir o que para ela seria sempre uma impossibilidade. Sentir-se inteira, coerente, bela, como uma rosa. Uma flor. E ao tentar, distanciava-se cada vez mais irreversivelmente da perfeição transitória da flor. Da rosa. Sua imperfeição aumentava a olhos vistos à proporção que gostaria de reter a perfeita harmonia da existência efêmera da flor. Da rosa.

Ela, Laura, que não passava de uma imitação grosseira, artificial, rústica, obscena, sórdida imitação fingida, simulada, afetada, de si mesma. Da assintonia de suas funções psíquicas. A fragmentação de sua personalidade jamais poderia assemelhar-se à harmoniosa inteireza das pétalas da rosa. Sua realidade não poderia sintonizar-se com a real presença, simetria e suavidade da flor.

Clarice Lispector tenta resgatar o lirismo que há numa pessoa mecanizada. Semelhante, sua literatura, à poesia de Drummond. A introspecção é a ponte que a personagem Laura tenta construir entre sua falta de sensibilidade e de razão, para uma vida da qual deseja abstrair um máximo de poesia, a partir da contemplação da perfeição de uma flor.

Ela, que tudo que conseguiu ouvir do marido em favor de si, da justificativa de seu casamento, estava apenas na fixação do cônjuge na falta de esbelteza, de beleza, de naturalidade, de suas pernas curtas e grossas. Dizia ele:

      — De que me adiantava casar com uma bailarina?

A incomunicabilidade, a solidão. A aceitação de uma submissão a uma relação caracterizada pela carência de afeto: os laços de seu lar que a unem ao marido, não passam de uma súbita peregrinação da libido, emulada pela visão de suas coxas curtas e grossas.

É da aceitação geral que o estatuto da lingüística enquanto estudo científico da linguagem é assegurado pela publicação, em 1916, do Curso de Lingüística Geral de F. de Saussure. Ao considerarmos o período anterior, desde a Antigüidade os homens se interessavam pela linguagem e reuniam uma série de observações e explicações dos falares, que formam a herança da língua. Esta, passou da oralidade para a escrita, tendo em ambas uma representação da variegada articulação da linguagem. Para chegar até a linguagem literária de Clarice, haja tempo. E talento.

A diversidade de significados é característica da Obra Aberta, representação dos contos e romances de Clarice, através da subjetividade ampla, por vezes desesperada, de algumas de suas personagens.

A beleza da diversidade de uma sincronia subjetiva que encontra na literatura de Lispector, por vezes, uma referência no linguajar inovador dos falares sertanejos à Guimarães Rosa. As personagens clariceanas vivem numa espécie de tentativa de exteriorizar uma espécie de “sertão” interior.

Elas, as personagens de Clarice, vivem a separação radical do ponto de vista diacrônico da linguagem linear exercitada anteriormente por autores que a antecederam. Suas personagens exercitam a linguagem como uma necessidade fundamental. A expressão da subjetividade delas se “desformaliza”. A deslinearidade subjetiva manifesta-se como signo de uma exteriorização da festa interior da linguagem, expressão corporal esquizofrênica da personagem sentada no móvel, sem os braços nos encostos, a espinha curvada para frente, mergulhada nos delírios, no rio subterrâneo a correr em direção algures.

Comemoração de uma nova maneira de tentar criar uma ligação pertinente entre forma e conteúdo da expressão, até então inexprimível. Sempre inexprimível. Indizível. Inefável. O corpo enquanto mecanismo tutelar da subjetividade neural, mecânica. Quem sabe herança de atavismos inexplicáveis. Que ela, desesperadamente, sabe que deve, mas não pode deles se libertar.

(Lispector, 1998): Se o médico dissera: “Tome leite entre as refeições, nunca fique com o estômago vazio pois isso dá ansiedade” —então, mesmo sem ameaça de ansiedade, ela tomava sem discutir, gole por gole, dia após dia, não falhara nunca, obedecendo de olhos fechados, com um ligeiro ardor, para que não pudesse enxergar em si a menor incredulidade... E lhe dera uma palmada nas costas, o que a lisonjeara e a fizera corar de prazer.

Sim, ela mostrava estar movendo-se como se fosse parte de uma engrenagem sem vida própria, um parafuso a dar voltas sobre a rotina de si mesma. Bem ajeitadinho, o parafuso, ela mesma. Bem azeitado, bem arrumadinha. Azerada. Como uma máquina. Como se não fosse humana. Ela, paradoxo, a seguir o ritmo cíclico de uma engrenagem ajustada numa velocidade na qual pudesse acompanhar o ritmo de seu delírio persecutório, desde o tempo em que estudara no Sacré Coeur:


(Lispector, 1998): Ela fora arrumada e limpa, com um gosto pela higiene pessoal e um certo horror à confusão. O que não fizera nunca com que Carlota, já naquele tempo pouco original, a admirasse. Carlota ambiciosa e rindo com força: ela, Laura, um pouco lenta, e por assim dizer cuidando em se manter sempre lenta. . . Quando lhe haviam dado para ler a “Imitação de Cristo”, com um ardor de burra ela lera sem entender mas, que Deus a perdoasse, ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido.

Cristo era a pior tentação. E Carlota nem ao menos quisera ler, mentira para a freira dizendo que tinha lido. Pois é. Poria o vestido marrom com gola de renda verdadeira.

As rupturas lingüísticas, no tempo, no espaço e na coerência deslinear da narração, são uma constante no texto clariceano. A constituição das frases, forma a inversão dos sentidos das personagens que perscrutam alguma forma de perigo que está em vias de irromper. Dessa forma, as palavras disfarçam uma plenitude calma dos ambientes familiares. Disfarça também o perigo que inutilmente sufoca. Tal situação é comum às personagens clariceanas.

(Lispector, 1998): E depois ficava exausta como uma recompensa. Não mais aquela falta alerta de fadiga. Não mais aquele ponto vazio desperto e horrivelmente maravilhoso dentro de si. Não mais aquela terrível independência. Não mais a facilidade monstruosa e simples de não dormir — nem de dia nem de noite — que na sua discrição a fizera subitamente super-humana em relação a um marido cansado e perplexo. Ele, com aquele hálito que tinha quando estava mudo de preocupação, o que dava a ela uma piedade pungente, sim, mesmo dentro de uma perfeição acordada, a piedade e o amor.

Ela, super-humana e tranqüila no seu isolamento brilhante, e ele, quando tímido, vinha visitá-la levando maçãs e uvas que a enfermeira com um levantar de ombros comia. Ele, fazendo visita de cerimônia como um namorado, com um hálito infeliz e um sorriso fixo, esforçando-se no seu heroísmo, por compreender. Ele, que a recebera de um pai e de um padre, e que não sabia o que fazer com essa moça da Tijuca . . .

Ela, sempre postergada, sempre embaraçada nos laços de família. Eles deram tantos nó nela, que ela nem sabia mais discernir a amizade, o sexo, o calor, o tempo, o espaço, o convívio, enquanto coisas que têm vida separadas. Para ela a rotina fazendo parte da mesma discórdia. Os significados nunca se renovam. A convivência submissa, o passeio, a desmemória. Após a chegada do marido, tomariam o ônibus, jantariam com Carlota e João. Para ela...

A personagem central volta ciclicamente, como um mecanismo de relógio, aos mesmos pontos de partida e de chegada, como um bonde chamado desejo, que encontra o mesmo passageiro, permite-se penetrar por ele, e o abandona no mesmo ponto final. Reconhecendo-se ambos em sua insignificante rotina. Sem diferir de um animal pavloviniano, ansioso por sentir a luzinha vermelha acesa, salivar e satisfazer o instinto de devorar o alimento insosso da rotina.

A libido da personagem não é mais um instinto sexual sinônimo de vida e renovação. É sinonímia de repetição, submissão, uma lubricidade patológica, uma concupiscência doentia. Laura era uma máquina com as engrenagens envelhecidas. Assim como o marido Armando. Não realizara nada, nem o desejo primário de ter filhos.

Metódica ao vestir-se, esperava o marido já pronta, coberta com o vestido marrom com gola de renda creme. Era a mulher da aceitação de uma condição pragmática, de uma formalidade asséptica, de uma obediência cega:

(Lispector, 1998): Se o médico dissera: “Tome leite entre as refeições, nunca fique com o estômago vazio pois isso dá ansiedade” — então, mesmo sem ameaça de ansiedade, ela tomava sem discutir, gole por gole, dia após dia, não falhara nunca, obedecendo de olhos fechados, com um ligeiro ardor, para que não pudesse enxergar em si a menor incredulidade... E lhe dera uma palmada nas costas, o que a lisonjeara e a fizera corar de prazer.

Desde o tempo em que estudara no Sacré Coeur:

(Lispector, 1998): Ela fora arrumada e limpa, com um gosto pela higiene pessoal e um certo horror à confusão. O que não fizera nunca com que Carlota, já naquele tempo pouco original, a admirasse. Carlota ambiciosa e rindo com força: ela, Laura, um pouco lenta, e por assim dizer cuidando em se manter sempre lenta. . .

Quando lhe haviam dado para ler a “Imitação de Cristo”, com um ardor de burra ela lera sem entender mas, que Deus a perdoasse, ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido. Cristo era a pior tentação. E Carlota nem ao menos quisera ler, mentira para a freira dizendo que tinha lido. Pois é. Poria o vestido marrom com gola de renda verdadeira.

Laura e Armando têm um pacto. Ambos devem cumpri-lo heroicamente. É inútil querer sair racionalmente de uma situação que os faz prisioneiros dele, pacto; dessa aliança. Sua crença e amor encontravam no cansaço de suas tarefas caseiras, um lugar subjetivo, desconhecido, no qual encontraria um ponto de fuga dentro daquele cansaço, o melhor nicho, a melhor recompensa, o sono:

(Lispector, 1998): Suspirou com prazer, por um momento de travessura maliciosa tentada a ir de encontro ao hálito morno que era a sua respiração já sonolenta, por um instante tentada a cochilar. “Um instante, só um instantezinho !”, pediu-se lisonjeada por ter tanto sono, pedia cheia de manha, como se pedisse a um homem, o que sempre agradara muito Armando.

Ele a olhava com timidez e respeito, ela, sentada com seu vestidinho caseiro. Ela, ele sabia, fizera tudo para (não) se tornar luminosa e inalcançável. Não havia a possibilidade de uma palavra sequer (lhe) dizer. Da porta via a mulher sentada no sofá sem apoiar as costas. Alerta e tranqüila como um trem. Que já partira. Como se fosse passageira de um único, último e fantasmagótico metrô. Que não pararia nunca em nenhuma estação. E não chegaria nunca, jamais, a lugar algum.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 23/04/2010
Alterado em 09/07/2010


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