A Moreninha
Um dos traços que marcaram a linguagem romântica, o sentimentalismo exagerado, está presente no fragmento que comprova esta afirmação, sacado do Capítulo XXI, "Segundo Domingo: Brincando com bonecas": O personagem Augusto mostra a afetação de sentimentos, ao observar Carolina no rochedo à espera dele e do estudante Felipe.
À medida que a barcaça aproxima-se do ancoradouro, vai se definindo mais e mais a elegante figura de Carolina. Desta vez parece-lhe uma bela realidade, não simplesmente um sonho que se desaparece de sua mente. Logo depois os três descem à avenida, dirigindo-se à casa, enquanto Augusto idealiza a mulher nestes termos:
"Ter a ventura de receber o abraço de uma moça bonita e a quem se ama. Apreciar sobre si o doce contato de uma torneada mão, que tantas noites se tem sonhado beijar. Roçar às vezes, com o cotovelo um lugar sagrado, voluptuoso e palpitante, sentir sobre sua face perfumado bafo que se esvaiu dentre os lábios virginais e nacarados, cujo sorrir considero um favor do céu (...), esses doces enlevos tão belos para a reflexão, e tão graves e apreciáveis para a imaginação de quem ama."
Havia nessa escola literária, por vezes, o predomínio de uma sensibilidade que hoje, limiar do século XXI, dir-se-ia demasiado afetada, colorida por uma masculinidade duvidosa. Na escola do romantismo, princípio do século XIX, os escritores haviam abandonado as regras de composição e estilo dos autores clássicos, substituídos pelo individualismo, por um lirismo de virilidade afetada das personagens masculinas.
Elas mostravam uma comoção vezeira excessiva para com o corpo da mulher, uma impressionabilidade exagerada pelo feminino, produto, talvez, de uma educação sexualmente proibitiva. A liberdade de criação dos autores da escola romântica, não se confirmava numa liberdade de comportamento emocional das personagens, demasiadamente atreladas às normas de conduta de uma sociedade preocupada, até à afetação, em manter as aparências do que se convencionava estabelecer como procedimento social de fino trato.
Joaquim Manoel de Macedo usa o impedimento amoroso da distância das personagens enamoradas, separadas por uma grande faixa de mar, numa época sem telefone, Internet, ou outros meios de comunicação imediata, para criar situações de padecimento amoroso, veementes ânsias das personagens: ela, confinada à ilha de Paquetá, ansiava por encabrestá-lo. Ele, habitante do continente, vivendo a tensão demasiado dramatizada, de querer e não poder estar próximo à sua Carolina.
O leitor mais atento pode desenvolver a impressão de que, enquanto ela cantava versos de adoração platônica ao suposto enamorado, cantando a canção no rochedo, ele, por sua vez, estaria a cantar a sua "hum, hum, hum, Carolina, hum, hum, hum Carolina, hum, hum, hum...Carolina...", em algum lugar privado, aonde a observação de terceiros não fosse possível.
A lonjura entre suas habitações, os motivava à uma realização provisória no plano platônico, desde que, naquela época, costumava-se vencer a longitude entre os namorados, com cartas e bilhetes conduzidos pela figura do jovem escravo, no papel social humilhante, pouco digno, de pombo-correio, de "moleque-de-recados".
No caso particular do casal Carolina e Augusto, esse mensageiro de Eros, esse Hermes tupiniquim, esse Serafim mulatinho chamava-se, não ao acaso, Gabriel. Para levar as mensagens, literalmente, entre os membros desse casal, ele teria de ser um campeão olímpico de maratonas náuticas, desde que, exceto o barco, poderia chegar à Paquetá apenas a nado.
Uma peripécia narrativa é a feitura do romance pelo autor em trinta dias, de vinte de julho a vinte de agosto de um suposto 1844, dia do pedido de casamento e do pagamento da aposta: o desenvolvimento das características das personagens, o desdobrar-se da história, é de exatamente um mês. O tempo da personagem masculina central do romance vai se escrevendo à proporção que se escreve, também, o tempo narrativo do autor. Este fato altera e modifica a situação e a ação das personagens.
O efeito que o narrador provoca no leitor atento à construção das personagens, da paisagem social de uma época, e do desdobramento emocional da narrativa, está no desafio que ele poderá aceitar ou não, de que esse leitor poderá desenvolver, ele também, a aptidão de contar uma história, escrevê-la em trinta dias, quem sabe em um pouco mais, um pouco menos, de tempo.
No capítulo nove, a natureza da mulher, selvagem ou civilizada, é exposta como semelhante: Ela deseja ser amada fingindo não amar. Deseja ser senhora de quem é naturalmente escrava. O suposto amor, de modo geral, costuma criar situações ficcionais inusitadas. Há situações de desdobramento mágico das intenções amorosas. Quem ama não dorme, e se dorme, dorme com um olho aberto e o outro fechado.
O sangue ferve, e o coração febril do personagem Augusto tem sede de saciar-se nas águas das lágrimas dos olhos da amada, fonte milagrosa da namorada idealizada pela tonalidade romântica da narrativa. A mulher idealizada detém esse poder inefável de apaziguar a paixão, de manter-se a desfrutar mais quietamente o ímpeto carnal do amante, cada vez mais puxado para baixo pela força da gravidade.
Carolina deseja aproveitar a oportunidade de enlaçar seu Augusto, enquanto a mágica do amor perdura dura. Ambos anseiam por voltar ao paraíso perdido das primeiras investidas na intimidade emocional da outra pessoa.
O casal anseia por continuar a beber da fonte da juventude amorosa, voltar, mais uma vez, a perturbar-se no bendito lugar de saciar-se na nascente do leite e do mel adâmico, paradisíaco, da devoção ao outro, de modo que a frágil flor do amor continue a vicejar no coração do senhor e do vassalo. E, quem sabe, obra e graça de uma mágica inusitada, possam, ambos, jamais se cansar de repousar ao lado do outro no silêncio do depois. No doce ao léu dos abraços. Ouvindo o cântico sagrado da canção da ternura. No romantismo, por vezes, suas personagens aspiravam à fruição, a longo prazo, do fofo sopro do inefável.
Na obra existem alguns fragmentos que comprovam que o tempo e o espaço do enunciado não condizem com o da enunciação. No início do capítulo VII, "Os Dois Breves Branco e Verde", lê-se: "Negócios importantes minha senhora, tinham obrigado meu pai a deixar a fazenda e a vir passar alguns meses na Corte. Eu o acompanhei, assim como à nossa família. Isso foi há sete anos, e nessa época houve um dia (...) que importa um dia? O dia, o lugar, a hora, tudo está presente em minha alma como se fora sucedido ontem o acontecimento (...) Foi há sete anos e tinha eu então treze anos de idade que, brincando em uma das belas praias do Rio de Janeiro, vi uma menina que não poderia ter ainda oito."
Augusto está a mencionar um evento que não condiz com o tempo linear da narração:
"Eu via a travessa menina hesitar longo tempo entre o desejo de possuir a concha e o receio de ser molhada pelas vagas (...) com suas lindas mãozinhas segurou o vestido até o joelho, e quando a onda recuou, ela fez um movimento, mas ficou ainda no mesmo lugar, inclinada para diante e na ponta dos pés (...) correu para trás e sem o pensar, atirou-se em meus braços, exclamando:
— Ah! Eu ia morrer afogada!
Depois, vendo o vestido cheio de areia, começou a rir-se muito sacudindo-o e dizendo ao mesmo tempo:
— Eu caí, eu caí!
Enquanto a garotinha anunciava os eventos aflitivos pelos quais passou, estes já haviam acontecido no tempo real da narrativa.
Na seqüência enumero quatro fragmentos que exemplificam alguns aspectos românticos de "A Moreninha":
(l) A autocontemplação (narcisismo) no canto XVII, do capítulo 10, "Achou quem o tosquiasse": "Somente para teus beijos/Te guardo a boca pura;/Em que lábios tu podes/Achar maior doçura?.../Meus lábio murchareis/Seus beijos não tereis?"
(2) A senhora dona Ana conta a história em que os enamorados Ahy e Aoitin idealizam-se na fonte mágica de lágrimas. No capítulo XII, "As Lágrimas de Amor", o narrador descreve a personagem nativa idealizada: "Uma jovem tamoia, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração, muito linda e sensível..."
(3) No capítulo XII, "Meia Hora Embaixo da Cama", lê-se, na narrativa de dona Gabriela, referindo-se aos versos que um paquera havia, supostamente, escrito para ela, autopromovendo-se como se fosse um Zeus, ideal de potência romantizado de toda e qualquer mulher: "Num dia, numa hora/Num mesmo lugar/Eu gosto de amar/Quarenta/Cinqüenta/Sessenta/Se mil forem belas/Amo a todas elas."
(4) No final do capítulo VIII, "Augusto Prosseguindo", este se autodefine de maneira narcisista, proclama-se uma "borboleta de amor". Na mesma cena Carolina está a perseguir uma borboleta que, até então, inutilmente, buscava prender. Ao conseguir capturá-la, o leitor é induzido a visualizar a rendição de Augusto à coleira doméstica de Carolina.
Não poucas personagens românticas se rendem ao sentimento de carência afetiva denominado amor. Esse sentimento passa a impressão de que aquelas personagens românticas gostariam de apegar-se a essa utopia emocional que lhes ajudaria a tornar imperceptível a prisão mútua, doméstica, na companhia um do outro.
Na maior parte das vezes fica claro ao leitor menos envolvido pela trama romântica, que seria realmente difícil a essa personagem jovem, portadora de, aproximadamente, duas décadas de reivindicações emocionais, escapar das armadilhas exteriores, visuais, da vaidade feminina.
Augusto está extasiado com sua Carolina. Passam a impressão de que sentir-se-iam felizes ao cederem logo ao impulso para serem domesticados pelas convenções sociais do casamento, como se fossem cãezinhos de estimação. Não podem suportar sua própria dor, sozinhos, e mergulham de cabeça na possibilidade do matrimônio , como crianças ansiosas por brincar de médico com uma mesma paciente, com o mesmo doutor.
Talvez fosse esta a experiência do sentimento de amor adolescente, que conduzia um estudante de medicina, no segundo quartel do século XIX, inexoravelmente, ao convívio doméstico com uma representante da vaidade feminina da época: o cair nessa arapuca espiritualmente vazia, morder esse anzol, denominavam, algumas personagens do romantismo, de felicidade.
E as donzelas romantizadas adornavam-se para apanhar esses pássaros na gaiola de suas velhacarias, com a ajuda de cosméticos, das aparências otimizadas pelos parentes e pelos "sábios" conselhos das damas de companhia, assim como pelas candinhagens familiares e os vestidos da moda.
Como diria aquele personagem de D. H. Lawrence ("The White Peacoc"), ao contemplar a paisagem do entardecer, visualiza a pavoa que, com estardalhaço, voa e pousa no braço estendido de um anjo de sepulcro, no pequeno cemitério da abadia. Após pousar, ela, a pavoa, abre o leque de penas coloridas, e do pequeno orifício, à mostra, saem dejetos.
A bela ave, as plumas coloridas com manchas oculares iridescentes, ao abrirem-se, canta ainda mais alto, orgulhosa, como se vitoriosa e ciente de sua bela perfumaria de plumagens. E o personagem que a observa exclama, ao sentir a transitividade da vida e da paisagem, sabendo que a pavoa de sua mulher o havia traído, infringido as veneráveis promessas do casamento, e roubado dele sua auto-estima e seu amor-próprio: "Tudo vaidade, berros e sujeira".
A escola do romantismo, muito apropriadamente, sugeria aos jovens e enamorados leitores dos autores dessa escola literária, que aproveitassem os momentos felizes de real, e ilusória, bem-aventurança. Eles talvez não durassem mais que oito ou nove meses. Em São Paulo, os advogados de "beira de altar ", costumam distribuir aos padrinhos dos noivos, seus cartões de identidade. Eles poderão precisar de seus serviços. Em Breve. A duração do bom êxito do matrimônio pode ser mais transitória do que pensa o casal mais otimista.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 21/04/2010
Alterado em 09/07/2010