"A Poesia Primitiva E O Poema Acadêmico"
Os estudos filosóficos e sociais, até a atualidade foram efetuados pelo adulto branco, civilizado, que reduz à sua própria realidade a realidade dos outros. O mundo das crianças ou o de povos terceiros, era e é deformado por seus preconceitos. Rousseau discerniu há mais de duzentos anos que o menino não é um adulto em miniatura, ele é um ser com conflitos de uma pessoa pequena. Depois de dois séculos e os adultos continuam a ajustar as crianças e alunos como se estas verdades ainda não estivessem totalmente ratificadas pelos teóricos. A partir desta afirmação podemos afirmar a força da chamada ilusão antropocêntrica.
Ou a redução do mundo à história humana como se esta história fosse sua única realidade. Como diria David Hume: A vida humana é tão importante quanto a de uma ostra". Isto, do ponto de vista universal, cósmico. A verdade é relativa. A realidade é objetiva em sua sistemática da objetividade. Heidegger define "Dasein" enquanto conhecimento humano intencional: sabemos sobre certa coisa que nos desperta o interesse. A fenomenologia do "Desein": conhecemos o que nos interessa conhecer.
A grandeza de uma literatura, ou de uma obra literária, depende de sua relativa intemporalidade e universalidade. Estas, por sua vez, dependem da função total que possa exercer, dos fatores que a prendem a um determinado momento e lugar. Na literatura oral esta função é menos pronunciada.
Ainda segundo Heidegger, a consciência de nossa finitude não se ajusta à dedução lógica do aspecto morfológico (fisiológico) da morte. Mas se afirma na existência (fenomênica) humana da disposição afetiva através da qual afirma a angústia (aflição, ansiedade) dela. Morte. Existencial. Parece complicado? Mas é de uma simplicidade à toda prova.
Até mesmo nas comunidades mais primitivas essa simplicidade se revela.
Ao surgirem oportunidades de comunicação entre os grupos, sua universalidade afirma-se mais, do que o que sucede com a literatura erudita: de um lado ela aprofunda experiências peculiares, por vezes folclóricas, ao grupo, de outro, personifica e dramatiza certos temas da mais intensa intemporalidade: a ex. de mitos análogos em muitos povos. Deles provêm a emoção que as lendas e canções, danças e narrações primitivas despertam quando, mesmo precariamente são vistas e/ou ouvidas desligadas de seu contexto dramático original.
A função social, ou "razão de ser sociológica" (Malinovsky), independe da vontade ou da consciência dos autores e consumidores de literatura. Ela se manifesta no ato de criação da obra, de sua inserção no universo de valores culturais e de seu caráter de expressão comunicativa. Os escritores e o público estabelecem certos desígnios conscientes que passam a formar (adquirir estrutura) nas camadas de significado da obra.
O escritor deseja atingir certa finalidade: mostrar determinados aspectos, por vezes sombrios, da realidade. Esse lado voluntário da criação e da recepção da obra, converge para uma função exclusiva: seu uso ideológico. Ela, obra, pode manifestar-se enquanto ideia, ainda que, muitas vezes, seja uma ilusão autoral, que se desmente através de sua estrutura objetiva.
O autor dirá como os fatos da vida enganam, e de que forma a virtude é apenas uma aparência, opiniões que poderiam ser externadas por Machado de Assis ao falar, hipoteticamente, sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas. É o público que dirá se as "Memórias" teriam ou não mostrado isso. Ou aquilo. A função ideológica se faz mais clara nas circunstâncias de uma finalidade política, religiosa ou filosófica. Essa função é importante para a obra, na avaliação de seu mérito pela crítica: de algum modo é o âmago de seu significado: não costuma aparecer aos olhos do leitor menos criterioso.
A consideração simultânea das três funções (função total, social e o exercício intelectual ideológico), torna certa obra inteligível, inserida num sistema de significações e de relações lógicas conhecidas.
A função total indica a origem da forma linguística, a elaboração de um sistema simbólico, que transmite certa mundividência (visão do mundo), por meio de instrumentos expressivos adequados. Ela representa por meio da significação, as representações (dramatizações), individuais e sociais, que ultrapassam a conjuntura imediata da obra literária.
Verifica-se quando, na Odisséia, simultaneamente à representação da sensibilidade e da inteligência, há a reprodução descritiva da experiência característica da vida social, coletiva (cultura). Através dessa representação, os valores épicos da civilização se fazem presentes.
A função social na Odisséia revela-se nas festas gregas, na fixação dos costumes da sociedade da época, no modo como se desdobravam as relações entre as pessoas, as camadas sociais hereditárias, os valores espirituais e materiais, a unidade fundamental do mundo helênico, sua oposição ao universo de outras culturas (a Grécia ocupada pelos aqueus, povo indo-europeu, no século XV a.C.), os deveres de resistência fundamentados na unidade dos sentimentos de comunhão no mundo cultural helênico.
A função ideológica revelava-se na união deste complexo voluntário de criação e recepção da obra homérica. Este aspecto concorre para a afirmação de um posicionamento autoral específico, talvez menos importante para a compreensão de sua finalidade literária, do que os fenômenos narrativos anteriormente mencionados pelas funções total e social. A consideração simultânea dessas três funções permite a compreensão, sem oscilação ou desvios, da obra literária.
No trabalho de análise da literatura dos grupos iletrados, interessa a compreensão da combinação da análise estrutural com a função social. Ela liga-se diretamente à vida coletiva em suas manifestações mais simples, comuns e pessoais. Ao contrário do que possa ocorrer nas literaturas eruditas, nunca o escritor esnoba a expressão dos aspectos comunitários que interessam a todos.
A comunidade reconhece no autor uma personalidade bem definida em defesa da expressão da identidade cultural mais necessária à afirmação da personalidade coletiva, às suas solicitações mais características.
À sociologia passa, maior parte das vezes despercebida, a interpretação da função social da obra literária enquanto revelação da individualidade criativa do autor, quando essa individualidade manifesta-se como objeto da psicologia literária e da crítica. A interpretação demasiadamente "sociológica" conduz à pretensão da sociologia em querer estabelecer-se enquanto expressão de uma apreciação teórica (e/ou estética) própria da teoria literária.
A sociologia privilegia, nas obras literárias das sociedades primitivas ou rústicas, a ordenação ambiental dos fatores sociais. A sociologia poderia ser eficaz para a compreensão de autores tais como Rimbaud, Baudelaire, Wordsworth, Blake, Whitman, Mallarmé, Yeats, Joyce, Proust, Eliot, G. Stein, Valéry? Ou para a compreensão das inovações formais, e domínio da linguagem e do conhecimento romanceado sobre o folclórico em Mário de Andrade? Não! E sim, para a compreensão dos contos populares, das "histórias de pescadores", das modas de viola, dos rituais das comunidades primitivas e atuais, dos cantos de vida e de morte dos tupinambás.
A literatura enquanto arte individual, chama a atenção pelo aspecto coletivo. A insuficiência do estudioso crítico da literatura provém, muitas vezes, da falta de discernimento sociológico. As obras de arte literárias não são compreendidas satisfatoriamente a partir da aplicação dos métodos e processos usados habitualmente.
Os textos literários, e outros, não podem, nem devem, ser desassociados de seus contextos. A pessoa que os interpreta e o ato de interpretá-los, sua situação de vida e convivência, são agrupados à visão do mundo da sociedade (mundividência social): "Eu, sou eu, e minha circunstância".
A arte literária é uma espécie de "intertexto", do real para o ficcional. E vice-versa. É uma intermediação da imaginação autoral, através da estilização formal que ordena e reordena as coisas, os seres, as emoções e os sentimentos, a partir de uma criação de perspectivas. Criação que sugere uma, ou várias, leituras e/ou releituras da realidade. Esse controle da técnica literária ficcional é indispensável à criação de inusitadas configurações dos juízos de valores local, regional, nacional e universal.
Em suas melhores performances autorais, não há nela, arte literária, gratuidade ou arbítrio. A melhor ficção é uma maneira de se penetrar mais profundamente os meandros e larbirintos da realidade: das consequências futuras da realidade de agora. O incitamento que aguça a vontade e/ou a necessidade de estilização formal, é facilmente detectável na arte e na literatura primitivas, desde que observemos seu contexto.
Há uma diferença que se faz nítida entre a literatura do primitivo e a do civilizado: Na primeira é necessário considerar-se certas manifestações biológicas e sociais raras na literatura escrita do indivíduo urbanizado. A exemplo, transcrevo alguns versos do poema da tribo norte africana dos "nuer". Eles celebram o amor de toda a coletividade, a identidade entre os indivíduos da tribo e as emoções sociais de insegurança trazidas pela presença ostensiva e invasiva do colonizador inglês. Há uma identidade entre a afetividade humana e a bovina, numa adequação da linguagem tribal à realidade experimentada na convivência com os rebanhos bovinos.
Há, nesta poesia, mais "poesia" e interatividade entre homem e bois, do que, talvez, perdoe o leitor o exagero, em toda a literatura de Guimarães Rosa:
"O vento sopra do norte, uirauira
Para onde sopra ele?
Sopra do lado do rio
Trazendo os pastos bons
A vaca do chifre curto
Leva ao pasto os ubres cheios
Há bastante leite para todos
Que Naiagaak, minha irmã, vá ordenhá-la
Que ninguém se aproxime antes que ela vá ao pasto
Minha barriga se encherá de leite
Ao dançar o Orgulho de Naiaual
Turbulento Rolniang, reprodutor da tribo
Os estrangeiros dominaram nossa terra
Os milicos ingleses vestidos com roupas de chumbo
Postos na margem, usam nossa água
Cabelo Preto, minha irmã,
Estou atônito. Estamos todos perplexos
Olhamos estarrecidos para as estrelas de Deus. "
A compreensão da nova realidade, com a presença do invasor inglês, suscita a criação da poesia pelo poeta "nuer". As manifestações do impulso estético variam conforme a cultura. O que para um escritor acadêmico pode ser necessário, para um poeta da cultura primitiva vem a ser fundamental.
A prática de vida primitiva, seu conhecimento emocional ampliado pela atuação costumeira dos sentidos, a continuidade das sensações perceptivas orgânicas e espirituais, formam uma unidade que promove a criação dos estímulos estéticos elementares. Eles servem para mediar as representações dramatizadas do mundo, socialmente condicionadas pela sobrevivência do grupo. Este fenômeno vital da criação, da elaboração literária da diversidade de emoções e sentimentos suscitados pela vida emocional natural do homem, é mais característico nas sociedades primitivas, iletradas.
A literatura desta forma, somente poderá ser interpretada de maneira mais intensa e conveniente através da análise sociológica. A sociologia torna evidente que naquelas sociedades o sentimento estético é suscitado por fatores diversos dos que condicionam o mundo da criação letrada. A criatividade primitiva está ligada pelo cordão umbilical da organização social, e representa uma nítida afirmação das normas, valores e tradições.
Segundo as pesquisas literárias da inglesa Audrey Richards sobre a alimentação de uma tribo "bantu", sua relação com a vida social, "os fortes sentimentos ligados à função fisiológica da nutrição, explicam a crença do primitivo de que comer é um ato mágico. Comer é, sem dúvida, um ato que transforma seu estado e o faz sentir como se estivesse possuído por novos poderes". Comer, como ato de renovação das forças físicas e emocionais. Comer como um ritual de Ressurreição do corpo. Da alma.
A "sacralização do alimento" tende à conferir à busca da comida, à colheita, ao preparo, formações e representações mentais um caráter mágico, ritual, ao mesmo tempo experimental e poético, que não se repete igualmente duas vezes, e está sempre renovando sensações ligadas à prática da magia primitiva, imitativa. A imaginação e o desejo de fantasiar essas sensações, são parte orgânica da vida tribal. Social.
Na poesia o indivíduo "nuer" exprime a inquietação de seu grupo ante a presença ostensiva dos estrangeiros. É nítida a força da ambientação associada à sobrevivência, com invocações à realidade econômica. Estão presentes o tempo do leite bom, as vacas bem nutridas, a certeza de que o alimento faz parte de um complexo significativo que é responsável pela geração de emoções de segurança e prazer, insubstituíveis. Prazer e emoções adequadas à interpretação do mundo do rebanho humano e bovino, com nomes iguais em ambos.
A sensibilidade individual é igual à coletiva. As emoções suscitadas no indivíduo tribal pertencem a todos. O poeta as transmite e predispõe o espírito coletivo da sociedade "nuer" a compreender a inquietação causada pela presença do invasor. O sentimento poético nasce da emoção e do questionamento de todos, inseparável da identificação afetiva com o gado.
A literatura do civilizado muitas vezes evoca os alimentos, de um modo diferente do indivíduo "nuer", a exemplo do poema "Natureza Morta" de Guilherme de Almeida, aonde as frutas se dão a conhecer pela força do aroma, do colorido e sabor, sem alusão à qualidade nutritiva ou às sensações mágicas provocadas pelo comer ritual, "ecumêmico" expresso na poesia primitiva:
Na sala fechada ao sol seco do meio-dia
sobre a ingenuidade da faiança portuguesa
os frutos cheiram violentamente
e a toalha é fria e alva sobre a mesa
Há um gosto áspero de ananases
e um brilho fosco de uvaias flácidas
e um aroma adstringente de cajus, de pálidas
carambolas de âmbar desbotado, e um estalo oco
de jabuticabas de polpa esticada
e um fogo bravo de tangerinas.
E sobre este jogo de cores
gostos e perfumes, a sala toma
a transparência abafada de uma redoma.
A qualidade dos alimentos serve de objeto de contemplação discursiva. Eles são valorizados pela cor, a consistência e as associações outras, próprias das literaturas eruditas. Elas mantêm uma realidade de objetos de paisagem.
Em À "la recherche du temps perdu", a gelatina ou a "carne de boi à moda" da personagem Françoise, servem de pretexto para uma culinária que simboliza o trabalho do artista. Certos "insights" da memória, essenciais na estrutura narrativa do livro, são desencadeados por um pedaço de bolo molhado de chá de tília, sem que a aparência dos alimentos seja causa de inserção especial, dela, alimentação, na narrativa.
Em Sonetos de Orfeu, de Rilke, na Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, na seqüência inicial do Ulysses de J. Joyce, e em muitos outros poemas e romances eruditos, os efeitos estéticos são exteriores. Não há vestígio da dimensão fisiológica. No poema "nuer", a emoção orgânica da nutrição manifesta-se livre e diretamente no plano da arte, sem que seja necessária nenhuma mediação que o civilizado possa estabelecer entre elas.
Há uma diferença de serventia nos dois casos.
Inspiração: para o primitivo o alimento é motor de diversas emoções. A emoção é condicionada por uma referência à alimentação básica (o leite de vacas dos "nuer"). Os civilizados só se vinculam ao universo da emoção estética, se passarem por um processo de perda de sua realidade nutricional. Nessas circunstâncias, o escritor acadêmico opta por uma referência simbólica dos alimentos (leite, pão, vinho), estes, não sendo básicos, têm uma aparência ornamental, e a qualidade nutritiva é simplesmente banida para um segundo plano significativo.
Quando não há a criação proposital de emoção lírica, ou sua inserção acintosa no discurso poético do universo simbólico, a alimentação emerge com toda sua força de comida, alimentação vital. Essencial. É o que acontece na poesia "nuer".
Na poesia formal das escolas literárias, o alimento, mais das vezes, é um componente manifesto da condição econômica, característica de um tempo quando os gêneros literários impunham severos padrões, a partir dos quais fome e comida apareciam apenas com a intenção de dramatizar o escárnio, o ridículo, a vulgaridade das classes mais baixas, sem as conotações mais estimadas do lírico e do trágico.
Raro é encontrar na literatura dita civilizada, o alimento enquanto celebração fisiológica e fonte de lirismo e introdução estética à expressão das mais intensas emoções, tal como podemos verificar no comovente poema "nuer". Os grupos eruditos que produzem literatura, adotam modelos de gêneros sugeridos pela ideologia de classes, ignorando o processo natural de granjear a conquista da cozinha enquanto realidade básica de alimentação do corpo e do espírito. Nas obras ditas cultas, de vezo civilizado, com capricho emocional elevado, a alimentação manifesta-se despida de sua natureza especial: sua aparição é formulada em função dos valores estéticos da civilização.
O ponto de vista sociológico mostra que a poesia e a arte primitivas não são atividades práticas nem vicariantes (substitutivas de outras). As manifestações da arte, e da arte e ciência da literatura, ocupam o mesmo espaço e o mesmo tempo da vida social. A arte (a arte literária) é um elemento vital, necessário, instigador da vida inteligente, das revelações intelectivas. Ezra Pound afirmou com direito legítimo de quem amava a literatura e tinha com ela intimidade nas três dimensões do conhecimento:
Profundidade, abrangência e atualidade: "Uma nação que negligencia as percepções de seus escritores, entra em declínio. Depois de um certo tempo ela cessa de criar e agir, e apenas sobrevive."
O Brasil, local, regional, continental, é um exemplo vergonhoso dessa negligência que descaracteriza a identidade nacional em prol de uma globalização do interesse político e econômico de grupos totalitários.
Vide a educação. Por exemplo.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 21/04/2010
Alterado em 23/03/2011