Crime & Castigo
Este trabalho visa efetuar um breve estudo do processo de enunciação, através da expressão do delírio persecutório (culpado) da personagem Raskólhnikov do romance “Crime e Castigo” do escritor da escola realista do século XIX, o russo Dostoiévsky.
O objetivo deste preâmbulo se confirma na análise de um texto que supõe a presença da diversidade de expectativas narrativas a partir do estado mental hipocondríaco, delirante, transtornado e demencial da personagem em pauta. Esta, constitui o princípio organizador da narrativa, o ponto de partida da organização literária.
O delírio da personagem constitui o discurso central da enunciação. A declaração efetiva de demência, inserida no discurso mais amplo, o discurso sobre ele mesmo, seus parentes e conhecidos, sobre o contexto social da velha Rússia czarista.
A enunciação da enunciação. Este é o tema a partir do qual se desenvolve esta composição literária. Enunciação ato individual de utilização da língua. O enunciado é o resultado deste ato, do ato de criação do falante. De inserção deste sujeito na realidade ficcional do romance.
(Dubois, 1987): O sujeito da enunciação é o falante, considerado como o ego local de produção do enunciado... O sujeito refere o seu enunciado ao momento da enunciação, aos participantes na comunicação e ao lugar em que o enunciado se produz (dêixis).
A personagem confronta-se com seus próprios discursos, numa narrativa polifônica. Ela, personagem, possui várias vozes interiores, conflituosas, na acepção de uma polifonia narrativa onde interagem línguas e discursos (que se contrapõem), entre grupos sociais variados.
A enunciação pessoal da personagem Raskólhnikov se constitui numa espécie de síntese dos conflitos da coletividade. Uma extrapolação das várias instâncias discursivas, não manifestas, subterrâneas, do meio social em que vive. Ela, personagem, é o sujeito de vários sujeitos conflituosos atuantes em seu “eu” dissociado.
Seu “eu” é múltiplo e dividido, significado de seu nome: raskol: cisão. Uma pessoa atormentada pela contradição, pelos opostos conflituosos que não encontram uma síntese adequada na personalidade lacerada. As funções psíquicas estão fragmentadas, a personalidade se perde do contato pertinente com a realidade, na tentativa desesperada de superar a miséria e as necessidades, das quais derivam seus conflitos. Seu corpo é um barco trôpego em vias de naufragar.
Ao buscar exasperadamente uma saída para a situação de pobreza (própria e ambiental: fome e delírio conseqüente, falta de recursos para a continuação dos estudos, carência de motivação, a irmã vai casar-se para ajudá-lo), e o conseguinte sentimento de frustração, por não poder continuar a vida acadêmica a contento, Raskólhnikov desenvolve um inflamado sentimento de rejeição, mesmo com relação àquelas outras personagens que tentam ajudá-lo, seja conseguindo trabalhos de tradução de textos (Razumínkin, amigo de faculdade), ou a mãe e a irmã com pequenas quantias em dinheiro.
A subjetividade de Raskólhnikov confunde-se com a obra literária. Através dele se veiculam as demais personagens, atores de uma realidade social das mais difíceis, decorrente de um momento histórico de grandes mudanças sociais (as lutas internas, a queda do czarismo tendo por clímax a posterior Revolução Bolchevique de 1917).
É a partir do estigma do imaginário pessoal doentio do estudante Raskólhnikov, que a patologia social se manifesta e se desnuda. Ele representa o estigma individualizado dessa patologia. E é através da tentativa vã de superar essa patologia social que ele engendra uma maneira deplorável de superá-la: os crimes que acabam por vitimar Alíona Ivânovna, a agiota, e sua irmã, Isabel.
O texto enunciado do objeto discursivo social e histórico, a Rússia czarista, pré-revolução bolchevista, está organizado e estruturado literariamente no sentido de fazer a exposição narrativa da cultura no contexto expositivo, realista, sócio-histórico.
Dostoiévsky afirma-se no papel de precursor, aquele escritor que antecipa alguns dos principais temas da literatura moderna e pós-moderna: a patologia pessoal da personagem, acirrada e estimulada até ao extremo trágico da criminalidade, pela patologia social: O signo representa a “arena da luta de classe”.
Há a presença do dialogismo (diálogo de idéias entre as personagens) enquanto sentido central da modernidade no discurso narrativo presente em “Crime e Castigo”. Mas o indicativo presente pertinente (relevante, alusivo) do texto, é o monólogo da personagem.
Para Baudelaire, a modernidade é o transitório, o contingente, o efêmero: a atualidade enquanto a metade da arte (a enunciação) sendo a outra metade o eterno, o imutável (o enunciado). A personagem de Dostoiévsky é enunciação e enunciado. Premonição da globalização emocional das necessidades sociais dos tempos (naquela época), ainda por chegarem. Mas o século XXI já está aqui. E a sociedade atual está "saindo pelo ladrão" de Raskólhnikovs. Não estamos mais no início do século XX. Os dias de hoje são os do século XXI.
Raskólhnikov, em seu delírio persecutório, prescinde de palavras, mas seu monólogo reproduz os próprios conflitos e os das outras personagens. Para que desenvolver com elas o diálogo (discurso) direto na vida real, exteriorizar coisas que para ele são tão subentendidas? Se essas coisas saltam aos olhos de todos, pelos poros, pelos pêlos, pelo olhar e o gestual, pela condição pessoal e social de seus familiares e conterrâneos? Todos representam as imagens icônicas, especulares, deles mesmos. Todos evocam fortemente as características que o unem entre si: a semelhança, a analogia com o referente (fotografia, diagrama, mapa) de suas carências, sentimentos, tristezas, frustrações.
Não é preciso olhar nos rostos, reparar em suas roupas, seus gestos, nem ouvir o discurso redundante das mesmas, nem interpretar a presença do drama deliberado em suas personas. Basta sentir a presença do que elas calam, do que escondem em seu silêncio. Neste, Raskólhnikov ouve a palavra exata, calada, como diria Mallarmé: “A beira do indizível”.
Dostoiévsky e Mallarmé escreveram prosa e poesia, respectivamente. Abandonaram a pretensão à expressão de um sujeito particular. Reconheceram-se enquanto seres sociais. Enquanto artistas, se afastaram voluntariamente da banalidade e da fala vazia da burguesia, inteiramente dedicados a uma prática que esta vê como improdutiva, uma prática condenada, talvez, à extinção, mas engajada na tarefa de dar um sentido novo às palavras da tribo. O mesmo que é dito sobre Mallarmé, se poderia afirmar com pertinência sobre a literatura de Dostoiévsky:
(Philippe Sollers/Perrone Moisés, 1998): A escritura de Mallarmé, com seu espaço antecipado e múltiplo, suas torções, suas relações latentes, seus cruzamentos internos e visíveis, confronta-nos com aquela questão à qual garantimos respostas feitas de antemão, já que nossa linguagem é geralmente percebida sem questionamento: não atinamos que pensar é escrever, que ler é ler o que somos — e o jogo da literatura nos oculta. Nos enganamos constantemente sobre a literatura na medida em que ignoramos a impessoalidade de seu jogo.
O mesmo pode ser dito de Dostoiévsky, tal como Borges afirmou de Mallarmé:
(Borges/Perrone-Moisés, 1998): Representante de uma espécie nova, a do homem de letras como sacerdote, como asceta e como quase um mártir.
Roland Barthes, em sua aula inaugural no Collège de France (1977), usa o adjetivo exato ao falar de Mallarmé. Poderia tê-lo usado igualmente, de modo pertinente, se tivesse efetuado a referência discursiva à obra de Dostoiévsky, “Crime e Castigo”, na construção da personagem Raskólhnikov.
(Barthes, 1977): Nenhuma história da literatura (se ainda se escrever alguma), poderia ser justa ao se contentar, como no passado, com encadear escolas, sem marcar o corte que põe então a nu um novo profetismo: o da escritura: Mudar a língua, expressão mallarmiana, é concomitantemente mudar o mundo, expressão marxista: existe uma escuta política de Mallarmé, daqueles que o seguiram e o seguem ainda.
A mesma citação de Bartes a propósito de Mallarmé, poderá ser dita com pertinência quanto ao romance em pauta de Dostoiévsky, principalmente através do delírio culpado de Raskólhnikov: a presença da delinqüência (juvenil) deste personagem, profetisa a delinqüência juvenil de milhares (milhões) de jovens em todo o mundo que não têm outra alternativa social, senão desaparecerem no barco torpe, e trôpego, da violência promovida pela criminalidade do narcotráfico, da prostituição, do homicídio, do roubo, do assalto, do seqüestro, promovendo a insegurança da sociedade como um todo, vítimas da corrupção política...
Sem que se apontem os culpados por esta situação, e sem que os mesmos (políticos) sejam punidos pela danação de seus filhos e filhas. Filhas e filhos da descendência social satanizada, globalizada, deliberada, da sociedade do século XXI intertextualizada via discurso da personagem, jovem estudante homicida de “Crime e Castigo”, no século XIX:
(Raskólhnikov, após cometer os crimes): Ao menos o raciocínio ainda não me abandonou completamente. Não perdi, portanto, nem a memória nem a reflexão. Se as tivesse perdido, como teria me lembrado disso? Pensou, triunfante, soltando um profundo suspiro de satisfação: Tive apenas um acesso febril que passageiramente me perturbou o raciocínio... Com efeito, há vestígios. O bico da bota está manchado de sangue, pusera o pé, imprudentemente, na poça de sangue. Como vou consertar isso? Como vou conseguir me livrar dessa bota, dessas franjas, do forro do bolso?
Que estamos a presenciar na sociedade de hoje? No “Pra Lamento”? Nas instâncias superiores das supremas “Cortes de Justiça”? Nas ruas das cidades, nas programações de tv, nas novelas do horário nobre, nos jornais nacionais? Senão a disseminação da corrupção, da patologia social, do delírio persecutório da vida dos jovens sendo ceifada pela criminalidade e prostituição enquanto opções de vida? Vemos a sociedade enquanto disseminação da doença denominada ideologia liberal, neoliberal? As pessoas jovens com seus discursos bobos, sem essência pertinente, sem consistência moral, sem princípios éticos? Falando de futebol, da modelo fulana, da atriz de novela sicrana, da filha da Xuxa, do filme vampiro do dia.
Esta sociedade é uma metáfora das condições sociais da Rússia czarista, pré-capitalista. O que muda é a roupagem nova, a ilusão coletiva de que a pobreza vestida de esperança, um dia há de mudar as suas pobres e miseráveis vidas. Uma sociedade que lança seus filhos no delírio persecutório do personagem Raskólhnikov, como se Dostoiévsky estivesse escrevendo o roteiro de vida de nossos próprios filhos, de nossas próprias vidas, lançadas no inferno dantesco da insegurança, da pobreza, da miséria, da falta de recursos para a educação, na vigência patológica da marginalidade. Da impunidade.
Raskólhnikov é uma metáfora da vida da maioria dos filhos dessa sociedade sem investimentos pertinentes em letramento, em educação acadêmica, exceto a mais elementar. “Crime e Castigo” é um romance profético. Por quê? Porque prenunciava a patologia social de nossa modernidade e da pós-modernidade. Manifesta-se nele a cultura da pobreza, da necessidade, da impossibilidade de um estudante universitário continuar seus estudos por absoluta falta de recursos, amparo financeiro, emprego, subsídios.
A PATOLOGIA DA NECESSIDADE
A personagem Raskólhnikov é tida pelas demais personagens, apesar de sua aparência “borralheira”, por um rapaz versátil, inteligente, criativo, tradutor, universitário, porém avassalado pela necessidade, pela miséria, pela patologia social que o lança implacavelmente num estado psicológico de delírio, por saber-se imerso em condições de sobrevivência que não permitem que ele prossiga seus estudos, devido à carência mínima de recursos para a sobrevivência trivial: fazer duas ou três refeições por dia, ter condições biológicas e psicológicas para a concentração, reflexão e raciocínio lógico.
A fome abateu o seu senso de realização, sua auto-estima e amor-próprio. A valorização de si mesmo e de suas possibilidades intelectuais se torna uma impossibilidade.
A economia do século XIX na Rússia, no espaço geopolítico dostoievskiano do romance “Crime e Castigo”, estava sob influência da revolução industrial britânica. A política burguesa afirmava-se em todo o mundo a partir das conquistas sociais da revolução francesa. A burguesia estava em ascensão na terra-madrasta de Raskólhnikov. A política vigente era a “liberal” e nacionalista do Czar. Ela tentava estabelecer os princípios da “modernidade” na velha e decadente Rússia imperial, que logo depois se transformaria, via revolução bolchevista, na Rússia comunista, estalinista, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e finalmente, na Rússia capitalista do presidente Putim.
A burguesia banalizou tudo, inclusive os valores relativos à religiosidade. O burguês faz a apologia fanática do egoísmo, afirma que as finalidades (por mais ávidas de lucro a qualquer preço que sejam) justificam os meios de obter mercadorias. Na vigência do ideário (liberal e neoliberal) burguês, a corrupção e a impunidade se disseminaram como uma praga social irreversível, desde que proveniente dos estratos mais privilegiados da suposta “elite”. O "resto" da sociedade é uma espécie de Maria vai com as outras. Vai, na imitação do comportamento dos que, supostamente, "se deram bem".
Raskólhnikov é vítima da patologia instintiva dos ancestrais “cromagnon", burgueses. A burguesia não gosta de literatura, de estudantes universitários, de investir no quadro docente das academias. A burguesia não vê utilidade na educação formal, acadêmica, exceto na aparência dela, educação.
A burguesia não educa realmente. A educação burguesa é um cerimonial de entrega de diploma. Os estudantes saem das faculdades ávidos de um único objetivo na vida: ganhar dinheiro com sua profissão seja como for. Se tiver de, para arranjar um emprego, ter de transar com o filho homossexual do patrão, ele (ou ela) não hesitará um segundo. A necessidade de sobrevivência obriga os ex-universitários a fazer o que for preciso para ter dinheiro, comprar as roupas de grife, freqüentar o shiopping center dos corações atraiçoados. Dostoiévsky não era muito otimista.
Os investimentos dos governos em educação são os mínimos. Na realidade há uma política contra a aquisição de conhecimento pertinente à vida acadêmica, estudantil. As instituições universitárias estão sucateadas por falta de investimentos. E os estudantes pobres são metáforas e metonímias dos Raskólhnikovskys da atualidade. O Brasil, em pesquisa atual da ONU é o terceiro país do mundo em educação de péssima "qualidade".
O poder profético da miséria de educação na literatura de Dostoiévsky se faz presente nas instituições de ensino no século XXI. Quantos milhares de Raskólhnikovskys, de ambos os sexos (e de sexualidade intermediária), existem nos corpos discentes das diversas universidades públicas e privadas?
A patologia selvagem dos ancestrais “cromagnon” originou os mecanismos de exploração burguesa da força de trabalho social. A exploração dos mais abonados pelos financeiramente carentes. E vice-versa. Um vale-tudo de sordidez e covardia no relacionamento entre os diversos estratos sociais do poder político e social, num movimento descendente em poder aquisitivo, de consumo, proveniente da suposta “elite”, que vai minguando, numa desordem decrescente, até as camadas mais desprovidas de recursos de sobrevivência. De cultura. De cidadania.
E ninguém faz nada para superar essa situação de carência de tudo, de recursos, de alimentação, educação, saúde pertinentes à falta de cidadania. E a revolta pessoal e social dos Raskólhnikovskys, aumenta em proporção geométrica, com relação àqueles representantes da sociedade burguesa que não investem na educação deles, personagens dostoiévskyanos, miseráveis, famintos, maltrapilos, sem condições de continuar seus estudos, prostituindo-se, escravizando-se, num exercício social interminável de subalternidade.
O Crime desta sociedade está acompanhado de seu respectivo Castigo: insegurança e perturbação mental para todos. A criminalidade enquanto recurso único para os Raskólhnikovskys da atualidade obterem certa compensação pelo que a sociedade lhes rouba quando os "pra lamentares" legislam em causa própria, ao transferir ativos financeiros públicos da educação e da saúde, para suas contas bancárias privadas, através de um sem número de “maracutaias” protegidos pelas legislações em causa própria.
O “Crime e Castigo” da sociedade atual (profetizada por Dostoiévsky) que tem medo de parar seus carros nos semáforos, que aumenta a altura dos muros de suas residências e os provêm de fios elétricos de alta tensão para se defenderem daqueles contingentes de Raskólhnikovskys que estão presentes, todos os dias, na sala de jantar da burguesia abastada (e da pequena-burguesia) através dos noticiários cada vez mais violentos, de uma quantidade que parece irreversível de criminosos infanto-juvenis. De crianças que trabalham para os barões do narcotráfico através da comercialização de seus corpos para a prostituição e as conseqüências sociais da mesma.
O personagem Raskólhnikov do romance “Crime e Castigo” é um exemplo de desdobramento social da patologia dos “pra lamentares”, de uma política que age no sentido de perturbar a consciência dos indivíduos em formação, de forma a lançá-los perversamente na irresistível opção pelas mais diversas formas de criminalidade, ao invés de estarem nas escolas, com seus corações e mentes voltados para o aprendizado de uma profissão, estão sendo jogados no mundo do crime como se fossem pessoas nascidas para a rejeição e o desprezo da sociedade dita respeitável, institucional, estabelecida.
A sociedade de “Crime e Castigo” cria os seus mecanismos de autodestruição a rápido, curto, médio e a longo prazos. Os Raskólhnikovskys ameaçam a civilização globalizada que não terá como se defender dos subprodutos da superpopulação. A possibilidade de um ataque nuclear por grupos terroristas é (oficialmente) de mais de 20%, e de um ataque por armas químicas e biológicas, que têm semelhante poder destrutivo, é de quase 50%.
A ideologia burguesa é uma doença, uma patologia, uma metástase em rápido processo maligno de satanização dos recursos públicos para a iniciativa privada dos bolsos, das contas bancárias, dos ativos financeiros dos “pra lamentares” movidos por interesses de outras corporações de profissionais liberais da sociedade.
Veja os noticiários e confirme a insegurança da poltrona de sua sala de jantar do século XXI. No século XIX, o que dizia o autor sobre o jovem acadêmico, personagem de “Crime e Castigo” ?
(Dostoiévsky, 2004, p. 441): Começou então para Raskólhnikov um tempo singular: dir-se-ia que uma densa névoa subitamente tivesse se posto à sua frente, envolvendo-o em uma solidão pesada e inexorável. Ao evocar essa época, muito tempo depois, ele compreende que sua consciência está obscurecida, e que esse estado permaneceu, com breves intervalos, até a catástrofe definitiva. Estava absolutamente convencido de ter se equivocado em muitos pontos, por exemplo, no momento e na duração de certos acontecimentos... Confundia os fatos, considerava um incidente conseqüência de outro que não existia senão em sua imaginação. Era dominado por uma mórbida inquietação que degenerava em medo pânico.
O delírio persecutório de Raskólhnikov antes, durante e após a execução dos homicídios, é o ponto de partida (e de chegada) do romance de Dostoiévsky. É o ponto final de muitas vidas de jovens do século XXI, que não têm outra saída que não seja a criminalização de suas vidas.
O ponto a partir do qual inicia o enunciado do homem social subterrâneo, patológico, subconsciente, revoltado, faminto, necessitado, desprezado, rejeitado pela patologia social de uma “elite” que afirma uma suposta superioridade, a partir da condição de supremacia de classe, de poder aquisitivo. De uma “elite” que concentra de forma insana a renda de uma sociedade em benefício de seu esbanjamento. A interioridade, medíocre e insensata dos Raskólhnikovskys atuais é produto de uma condição social de impunidade daqueles representantes dos poderes públicos que lhes roubam famigeradamente a possibilidade de educação, habitação e saúde mental.
A mensagem de Dostoiévsky é simples e clara como um lago cristalino: a patologia social da “elite” é a responsável pela patologia de seus membros sem privilégios, exceto os da fome, da carência, da rejeição de sua humanidade e cidadania pelos poderes constituídos. Esses poderes os tornam membros de uma fraternidade dos fracos, psicóticos, desesperados, desiludidos, oprimidos e inúteis. Exceto para o uso provisório dos barões da criminalidade, da anarcoditadura.
Dostoiévsky ao escrever “Crime e Castigo” faz, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o que seria o futuro das grandes massas de assalariados e pequeno-burgueses da modernidade pós-revolução industrial. A ideologia do liberalismo e do neoliberalismo burguês, alimentando subjetivamente os pequeno-burgueses com os fogos fátuos da propaganda, e da cultura da estrumeira (luxúria, banalização dos corações e mentes, consumo desvairado e violência) via tv.
O homem da modernidade deseja, mas não possui condições pessoais, nem motivação social, para defender direitos de cidadania. Raskólhnikov é o jovem padrão da sociedade globalizada pelo consumo de todo tipo de droga (fome, necessidade, humilhação, miséria.)
Quando ele começa a vingar-se da sociedade, é evidente que exercita uma maldade defensiva. Reage a uma perversidade que vem de cima para baixo. Dos que têm poder aquisitivo para os que têm fome e sede de justiça. Uma maldade e uma perversidade disseminada pelas instituições tipo “Pra Lamento”.
É objetivo do autor deste trabalho, tornar visível a ponte entre duas culturas a da pré que motivou a da pós-modernidade.
Nenhum “serial-killer” matou ou matará uma quantidade tão grande de pessoas, como quando um grupo de “pra lamentares” desvia verbas para a educação, ou a habitação, ou para programas de alimentação escolar, visando subsidiar seus padrões de atuação social, tipo roubo e impunidade dos recursos dos Raskólhnikovskys das escolas e academias da realidade pós-moderna.
UM ROMANCE REALISTA DO SÉCULO XIX
QUE CRIMINALIZA A PATOLOGIA SOCIAL
DAS INSTITUIÇÕES SOCIAIS DO SÉCULO XXI:
(A SEMELHANÇA NÃO É COINCIDÊNCIA)
O rapaz habitava num tugúrio que mais parecia o armário de um quarto. Há tempo vivia num estado mórbido próximo à hipocondria. Deprimido pela pobreza, pelas pressões do lugar, parecia querer transcender magicamente o ambiente em que vivia. Sentia o calor sufocante das ruas em torno de seu mocambinho. Havia cal, poeira por todos os lados, presença de reformas e construções. O odor peculiar do verão era simplesmente insuportável. As ruas próximas tinham o odor de álcool, dos bêbados e das tavernas.
Sentia-se fisicamente fraco, os pensamentos o incomodavam. Sua impaciência juvenil, o olhar de quem está sempre cheio de razões que a própria razão desconhece, as roupas parecendo improvisadas, o caminhar apressado de quem simula está querendo chegar a algum lugar, mas nunca chegava a lugar algum, porque não saía das proximidades de sua habitação miserável. A fixação doentia de seus pensamentos o incomodava sobremaneira. O vestuário pobre fazia com que não quisesse encontrar-se com outros camaradas seus do curso da faculdade.
As cardoveias palpitavam, andava sempre nervoso, pensando: “Se agora tenho tanto medo, como levar a coisa a cabo?” Entrou no quarto, admirava-se da desconfiança da velha. Adentrou a convite dela, que o chamava carinhosamente de bátiuchka. No entanto havia nele, toda vez que para ela olhava, um sentimento anormal de repugnância, a mortificar e a oprimir seu espírito. Trouxera para ela uma coisa para empenhar. A velha o explorava, assim como um grupo enorme de pobres diabos.
Quando saiu da presença da velha, entrou pela primeira vez numa taverna, sentiu na língua o sabor da aguardente que lhe adentrava pelo nariz, através do odor de grande intensidade.
Alíona Ivânovna, a agiota (o nome é uma derivação da palavra alienação, alienada, Alíona) conseguiu ficar com o relógio e um anel que Raskólhnikov, o rapaz pobre e desequilibrado, levara para ao empenho, dando-lhe em troca do mesmo apenas um rublo e cinco copeques. Ele não estava em condições de negociar, precisava do dinheiro e aceitou.
Raskólhnikov desdobra sua via crúcis de pobreza, envolvendo-se com os tipos mais patéticos, ouvindo-lhe as histórias em botecos. A exemplo do teberneiro, Marmieládov, sobre a suposta ascendência nobre da mulher Ekatierina Ivânovna e de Sônietchka. Todas as personagens adultas viviam numa grande penúria, cercadas de crianças que passavam fome, e quando conseguiam algum dinheiro, compravam comida para os pixotes para que não morressem de fome.
Para aqueles pobres diabos, Raskólhnikov era uma espécie de herói, privilegiado pela inteligência, que conseguira passar nos exames e fazer parte de uma faculdade, pagando uma e outras disciplinas, quando conseguia, a grande custo, manter uma freqüência regular, até abandonar de vez os estudos, por falta de meios mínimos de sustento.
A mãe e a irmã zelavam para que continuasse os estudos, mas nada podiam fazer. Até que ambas mandaram para ele uma certa quantia de dinheiro que Raskólhnikov terminou gastando para fazer filantropia. Um amigo de faculdade, compadecido de sua penúria, trouxe-lhe um texto denominado Pertence a mulher à espécie humana? A obra de autoria de Rousseau, a tradução, apesar de Rousseau ser francês, seria efetuada do alemão. Por uma página Razumínkin, amigo de faculdade, adiantou-lhe três rublos. Prometendo-lhe outros três rublos de prata quando terminasse a tradução.
Na época do romance a “mãe” Rússia, mantinha seu povo numa situação social de extrema necessidade. Dostoiévsky, com evidente propósito simbolista criou o nome de várias personagens para denotar a situação social e psicológica deplorável, manifesta na atuação dramatizada dos mesmos, em suas relações entre si. A exemplo do nome Raskólhnikov, cisão. O étimo do homem cindido, atormentado pelas necessidades e exigências da vida, dividido pelas contradições, com um projeto de vida, mas incapaz de realizá-lo. Na época do romance raskol e raskólhnik, eram sinônimos também da seita religiosa dos Velhos Crentes, adeptos cindidos da Igreja Ortodoxa, combatidos pelo Poder Central.
Marmieládov, o taberneiro, quer dizer confusão, insegurança, coisas indefinidas e misturadas, forjado pelo autor do termo comum, com o significado de marmelada (marmielad). Com a personagem Liebiesiátnikov, Dostoiévsky introduziu um neologismo na língua russa, o termo liebiesiatnichetsvo, que passou a ser usado na acepção popular de adulador, bajulador, o nosso trivial “puxa-saco”, lambe-botas.
Dostoiévsky trabalhava literariamente a humanidade existente em cada homem, mulher, jovem, criança. As personagens e suas relações criam um clima comovente, de intensa verossimilhança com seus leitores. O homem, enquanto espécie, é igual em todos os lugares do mundo, com variações geopolíticas e regionais. Ele trabalha literariamente a humanidade em suas manifestações mais comuns, em seus arquétipos.
O Brasil de hoje, nunca é demais afirmar, está superabundante de Raskólhnikovskys. Quantos de nós têm dificuldades, as mais variadas, de freqüentar e acompanhar a contento, as disciplinas deste e de outros períodos. Quantos de nós estamos querendo apenas nos enganar, de que, uma vez com o diploma em mãos, nossa vida há de melhorar, como diz a canção popular: “A vida vai melhorar... a vida vai melhorar...”.
Raskólhnikov em uma desesperada tentativa de melhorar a vida resolve matar a anciã, e busca justificar o crime num artigo escrito para um jornal universitário, que termina sendo publicado em outro jornal. Nesse artigo ele tenta legitimar, até grandes criminosos em massa, tipo Napoleão Bonaparte, argumentando que para muitas pessoas que supostamente têm preponderância intelectual sobre as demais, podem fazer coisas (até cometer crimes), porque possuem uma boa justificativa parta isto: “Os fins justificam os meios”, como diria em “O Príncipe” Maquiavel.
Estava ele em busca desesperada de justificativas para matar a velha usurária que explorava as necessidades de muitos de seus conhecidos e conterrâneos. Ora, ele estava querendo uma desculpa, um fundamento “intelectual” para seu crime. Algo que racionalmente pudesse acreditar como verdade. Ou seja: com o dinheiro e os bens que conseguisse roubar da vetusta macróbia, poderia ajudar algumas daquelas pessoas, suas conhecidas, que estavam com seus parcos bens em poder da Alíona Ivânovna, a mesquinha, a sovina, a agiota, a avara.
Matando-a, ele poderia terminar seu curso universitário, e manter o mito do filho “bem-dotado”, que chegou à faculdade, por isso mesmo, era melhor do que os outros que, estando em situação semelhante, não conseguiram cursar a faculdade.
Raskólhnikov tinha a alma em fogo, vivendo a agonia da pobreza e de suas contradições. Formava-se nele uma culpa antecipada pelo ato sinistro que ia provocar a danação definitiva de sua vida: a culpa já lhe roia impiedosamente as entranhas antes mesmo de praticá-lo. Ele gostaria de ser, naturalmente, um ser humano bom e digno. Mais ainda, ele devaneava: pertencia àquela espécie de seres humanos que, por uma suposta e especial destinação, poderia fazer coisas que outros seres, sem a tal suposta predestinação, não estavam designados pelo acaso especial, a fazer.
Os fins justificam os meios. Matar a avarenta para fazer bom uso de seus despojos. Vender os bens materiais conseguidos para ajudar os necessitados. Usar o dinheiro para conseguir terminar a faculdade. Ser um homem digno, respeitado, não queria decepcionar a irmã e a mãe de quem gostava até as raias do incesto.
A culpa pelo crime que vitimou Alíona Ivânovna, a velhinha velhaca, e de sua irmã e amiga, provocou em Raskólhnikov um imenso e doloroso delírio persecutório (antes, durante e depois do dito). Ele não conseguia livrar-se da terrível culpa, e tampouco lhe era possível usufruir o produto dos homicídios. Entregou-se afinal à polícia, e descobriu a imensa ternura que nutria por Sônia Siemiônovna (lembra sonhos e sêmen, assim como Razumínkhin sugere razão, inteligência: ela fugia da prostituição, profissão da mãe). Fazia o possível para ajudá-lo. Foi recompensada.
Raskólhnikov entregou-se à polícia quando não havia mais nenhuma suspeita contra ele, e o crime da Alíona Ivânovna estava aparentemente resolvido, desde que um alienado havia confessado ter matado as duas mulheres (presume-se que para ter casa e comida na prisão). Porém ele estava por demais assoberbado pela culpa e queria, de qualquer modo, pagar por seus crimes.
Numa visita de Sônia Siemiônovna à prisão, Raskólhnikov, uma vez condenado a oito anos (devido às atenuantes do homicida) ajoelha-se diante dela e a abraça. O amor emana dele como uma força extraordinária, uma promessa de que valia a pena a cumprir, sabendo que Siemiônovna estaria, devotadamente, à espera de que ele saísse da prisão, para fazer valer o sentimento, a amorosidade, a com-paixão que ambos sentiam pelo outro. Ela fornecia a ele todo o ânimo necessário para suportar as agruras de uma vida de prisioneiro. Havia, afinal, encontrado seu tesouro. E sabia, em seu coração e em sua mente, que toda a solidão, cansaço, estresse, seriam plenamente recompensados pelos carinhos da mulher que agora era também a mulher de seus sonhos. E de sua realidade.
As personagens subterrâneas de Dostoiévsky são homens, mulheres, jovens e crianças angustiados, enjaulados em uma realidade social perversa, sádica, idiota e idiotizante. Uma realidade social fragmentada, selvagem, estúpida, num mundo tumultuado, onde a subversão do poder do dinheiro e da política, não permite perspectivas.
A perturbação mental das pessoas de todas as idades é apenas um reflexo do mundo exterior medíocre, temerário, absurdo. A sociedade reflete a psicopatologia dos interesses da “elite” (a verdadeira escória do mundo). Dostoiévsky antecipou a natureza real do homem moderno, desinteressado em crescimento interior, por estar sempre constrangido pela necessidade, pela miséria, pela corrupção, pelas hostilidades de uma sociedade dedicada a devorá-lo e a torturá-lo impiedosamente. E sempre.
O MOMENTO HISTÓRICO:
O PERÍODO REALISTA EUROPEU.
AS OPINIÕES EQUIVOCADAS DE
TCHEKHOV E NABOKOV SOBRE
DOSTOIÉVSKY
O realismo foi semelhante em toda a Europa. Os ideais do liberalismo estavam desacreditados. Havia miséria nas cidades em decorrência da crise de produção rural. As classes populares estavam em condições deploráveis, enquanto a burguesia, seus escritores,
a partir do primeiro quartel do século XIX, criava uma visão mais objetiva da realidade, contrapondo-se ao idealismo romântico.
O Realismo Russo posicionou-se na Europa, a partir do cenário literário dostoiévskiano, quando a Rússia estava no auge da pior crise econômica de sua história. O flagelo cultural do país, produto das deploráveis condições de vida dos camponeses e operários, serviram para estimular os autores realistas russos, até então influenciados pelo Realismo europeu.
Esses autores eram, principalmente, Fiódor Dostoiévsky e Léon Tolstoi, o mundo para eles não era um complexo de construções sociais determinadas por uma classe ou grupo de pessoas, mas uma série de processos históricos através dos quais a realidade se refletia nas consciências, e fazia as pessoas, agentes desses processos, pensarem sua própria condição na construção dos mesmos.
As pessoas passaram a pensar as mudanças históricas que estavam acontecendo a partir da participação delas no processo de produção de riquezas que gerava uma grande quantidade de produtos em busca de mercados de consumo, mas que não tinham influência positiva na mudança qualitativa de suas vidas.
O fazer histórico das pessoas se afirmava como parte de um conjunto de processos de produção, nos quais elas apareciam como parte de uma máquina que mudava os rumos da vida social, política e espiritual, com ênfase na quantidade de mercadorias produzidas pela industrialização que privilegiava uns poucos capitalistas, e escravizava as multidões de operários e camponeses.
A Revolução mudou a compreensão dos processos através dos quais as pessoas participavam da história da produção capitalista. Os burgueses eram os novos reis e príncipes dos parques industriais que se multiplicavam nas grandes cidades. Elas, cidades, não eram mais apenas burgos. Eram os cenários dramatizados da tragédia burguesa (e pequeno-burguesa) em sua origem e redundância.
Dostoiévsky iniciou a militância política fazendo parte de grupos anarquistas, afirmando a
atuação social através da literatura. Preso e condenado à morte, passou cinco anos na Sibéria e mais cinco como soldado de um batalhão do exército do Czar. Anistiado em 1859, vai habitar em São Petersburgo onde escreve “Crime e Castigo”.
Dostoiévsky ao voltar à Rússia encontra a situação política deteriorada, os jornais fechados por ordem do governo, a esposa agonizava enquanto o irmão mortificava-se em grande aflição financeira. Suas crises de epilepsia aumentaram. É nessa atmosfera feroz de decadência existencial e social que ele escreve “Crime e Castigo”, seu romance mais dramático.
Ele agora era PhD em problemas humanos: vivera muito tempo entre os criminosos mandados para a Sibéria. Familiarizou-se com a grandeza humana exatamente onde proliferavam os complexos de culpa, o crime e o castigo. Até o criminoso mais feroz tinha seus momentos de nobreza, através dos quais evidenciava-se uma surpreendente riqueza de sentimentos: a velha fé, esperança e caridade, características da alma, da plebe rude russa.
Raskólhnikov, estudante pequeno-burguês, está com a mente fervilhando de leituras não muito bem digeridas. Sente-se capaz de realizar grandes feitos, visando afirmar-se um ser humano proficiente intelectualmente e benéfico a outros seres humanos. Acreditou que, com a morte da velha usuária, apoderar-se-ia de algumas de suas posses, continuaria os estudos, seria digno da mãe e da irmã, e obteria os meios de ser útil à comunidade.
A tragédia pessoal de Raskólhnikov ilustra o processo psicótico (psicológico) do sentimento de culpa. A velha miserável estava explorando, a ele e a uma série de pessoas que o estudante estimava, com as quais mantinha alguma proximidade e convivência. A vida dela, que vivia da agiotagem, era miserável, mas era uma vida humana.
Raskólhnikov pensava (delirava), que vinha da antigüidade o hábito de chefes de Estado assassinarem milhares de pessoas, sempre encontrando um motivo que justificasse os massacres. Ele estava em busca de justificar o homicídio. Se ele vivesse hoje, em julho de 2005, se espelharia em “Bush de Blair”.
Ninguém, nem a melhor imprensa, os considerava, ou os considera criminosos, herdeiros da prática anciã do terrorismo de Estado. A esses a história reverenciava como heróis, erguiam-se estátuas à memória homicida dos assassinos em massa, ao holocausto promovido por eles. O genocídio era motivo de serem considerados homens extraordinários.
Ele também seria um herói, um semideus menor, na escala dos grandes genocidas da história. Consumado o homicídio, Raskólhnikov imerge num sentimento de culpa ainda mais intenso do que aquele que o abatia antes mesmo de consumá-lo. E o amor pela pessoa humana enquanto membro espécie, o remorso pelo assassinato da velha usuária, provoca-lhe um sofrimento atroz.
A alma cristã de Raskólhnikov derrota o “animal cromagnon”, produto do “capitalismo selvagem”, cujos fins justificam os meios. O ser humano nele derrota o burguês “pra lamentar”, que não sente nenhuma culpa em matar milhares de crianças, condenando-as a uma vida de criminalidade, miséria e sofrimentos, ao transferir as verbas públicas para a educação delas, direcionando-as às suas contas privadas.
Em seu delírio de remorso antecipado (ainda não havia cometido os crimes), exclama:
(Dostoiévsky , 1982): Meu Deus! Como tudo isso é repugnante! Ser possível que eu... Não! É uma loucura, um absurdo! Como pude ter tão horrível idéia? Como pude ser capaz de tamanha infâmia? Isso é odioso, ignóbil, nojento!... E no entanto, durante um mês, eu...
É imperioso que entre numa taverna para sentir-se outra vez humano, falar com pessoas, embebedar-se, talvez. Fica conhecendo o proprietário da mesma, Marmieládov. Este, passa a contar a vida de ex-funcionário público, casado com uma mulher de origem nobre. Após perder o emprego a mulher degradou-se em trabalhos humilhantes, ele tornou-se um etilista, um alcoólatra, e acabaram por entregar a filha à prostituição para salvar da fome os irmãos menores. Hoje, século XXI, a prostituição "chic" tem outro nome: a carreira de modelo.
Ao voltar para casa, Nastácia, cozinheira e criada da hospedaria, entrega uma carta na qual a mãe narra superadas dificuldades sofridas pela irmã, que agora está para se casar com Piotr Petróvitch Lujin, um advogado de futuro promissor. Em breve todos o visitariam. Raskólhnikov sabe que esse casamento é um modo da irmã está se vendendo, como uma prostituta, para ajudar a ele, que não mais freqüentava a faculdade por falta de recursos.
A imaginação intensa e a consciência culpada, são ferimentos que motivam sentimentos de desonra e desprezo por ter-se permitido sequer pensar nos assassinatos.
Escritores do gabarito literário de Tchekhov e Nabokov não toleravam a literatura de Dostoiévsky. Para eles Dostoiévsky não era um autor proficiente na arte de escrever, era um pseudoprofeta de voz estridente. Eles certamente sabiam usar a arte e a técnica literárias, mas estavam longe, muito distante, de uma avaliação criteriosa, sequer razoável, do dom profético presente na literatura de Dostoiévsky. Este, se confirma nos dias de hoje, no Aqui e Agora, da realidade da patologia social do século XXI. Aqueles escritores, ao criticar o autor de “Crime e Castigo” de modo depreciativo, estavam a exteriorizar preconceitos relativos à suas experiências pertinentes em literatura.
Sobreestimaram-se sobremodo, Tchekhov e Nabokov. Exteriorizaram uma “inveja” subterrânea da força de expressão real, e ao mesmo tempo virtual, profética, da literatura de Dostoiévsky, em particular da personagem Raskólhnikov de Crime & Castigo.
A ninfeta de Nabokov jamais chegaria aos pés da intensidade e da veemência anímica do autor, oráculo e personagem da patologia do mundo globalizado da pós-modernidade. Ignoravam eles, Tchekhov e Nabokov, que seus exercícios de aprendizado literário, não eram nem nunca serão respostas culturais com o mesmo impacto de um presságio universal à Dostoiévsky.
Os Raskólhnikovskys se confirmam na sociedade do século XXI, com sua política neoliberal. Enquanto a ninfeta de Nabokov está longe de provocar o mesmo impacto de denúncia social do personagem central de “Crime e Castigo”. Ainda que a intenção literária de Nabokov não tenha sido essa.
Nenhuma de suas personagens possuíam a determinação sangüínea, apaixonada, vibrante, da “ficção” de Dostoiévsky. Nem sua força premonitória.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 16/04/2010
Alterado em 09/07/2010