CRIANÇA: História Meio Ao contrário (III)
O rei num belo entardecer teve um chilique. Descobriu, afinal, que em todos os dias o anoitecer é um fenômeno natural. Como os reis não têm obrigação de manterem-se coerentes, nem tampouco aptos a governar seu povo, este, dessa história, nem sequer sabia que coisa é essa de povo.
Seu estado mental era muito grave, deveria, não fosse um rei, ser urgentemente internado devido a uma alienação mental incontestável. Mas rei, principalmente em histórias infanto-juvenis, onde o inusitado e o fantástico são uma constante, não precisam manter a compostura. Nem o autor a verossimilhança.
É a partir da incoerência interna da obra literária, no concernente ao imaginário das personagens e da situação criada, que ela se torna possível e divertida. A criança que lê, supõe que os adultos não são muito bom da bola, e isso é legal para elas, porque eles se tornam falíveis, pândegos e por vezes desastrados, como elas crianças são, a maioria das vezes.
E criança gosta de divertimento. O lúdico enquanto fator preponderante na narrativa infantil faz com que ela seja aceita, e crie um clima de diálogo entre a criança e o mundo adulto. A destreza em saber brincar com a linguagem para tornar o universo infantil mais próximo da pessoa adulta. Abre-se uma possibilidade de aproximação, de diálogo.
O mesmo não acontece nos "games" e histórias ditas para crianças e adolescentes, onde prepondera a hostilidade, por vezes insana, entre personagens que se combatem o tempo todo, e se perseguem, prejudicam e causam danos irreversíveis uns aos outros, quando não se matam, literalmente.
Uma história infanto-juvenil que não apela para interesses bélicos, já é um avanço para a psicologia da criança. É como se uma mão amiga estivesse sendo estendida para ela. Uma companhia para seus devaneios, e o mundo adulto fica um pouco mais perto dela, de seu estado de direito, e de fato, infantil.
Um rei doidinho que faz de conta que não sabe que a noite vem logo depois do dia, é um personagem divertido. Sua maluquice indiscutível torna-o imediatamente um aliado da criança que reconhece nele, um cúmplice contra a seriedade afetada do mundo adulto: suas leis e a rigidez com que reprime o mundo infantil fazem do rei glutão um personagem que quer viver feliz para sempre, como as crianças, que raramente desejam entrar no sensaborismo mecanizado da vida adulta.
Um rei gordão que gosta de comer, que não sabe que diabo é povo, e que põe todo mundo doido vivendo num mundo do faz-de-conta, é uma criança grande que se identifica de cara com as outras crianças, as pequenas. E elas vão sorrir de suas bobeiras, porque, afinal, as crianças gostariam de que os adultos fossem menos sérios e pomposos, descessem de seus pedestais, de sua gravidade, e fizessem da pompa pompom.
As crianças querem estar todo tempo acompanhadas do sem compromisso. Brincar de esnobar as coisas ditas sérias dos que atingiram a maioridade. Afinal, elas estão sabendo, o mundo deles é um passatempo de mau gosto. Eles vivem brigando entre si, se irritando, discutindo, criando tensões que não são nada adequadas ao sem objetivo da vida infantil.
A identificação delas para com o rei doidão é imediata e irreversível. Elas também gostariam de ter o poder que ele tem de botar todo mundo para brincar de não saber que a noite sucede o dia. E o dia vem depois (ou antes?) da noite. E elas se divertem para valer ao saberem que alguém compreende suas atitudes infantis, e é capaz de fazê-las prevalecer no mundo ameaçador, grave, perigoso e austero. O mundo dos entretenimentos adultos.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 15/04/2010
Alterado em 13/05/2011