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CRIANÇA: História Meio Ao Contrário (II)
Os reis comumente tentavam viver felizes para sempre, dentro de seus castelos medievais, supostamente após terem conquistado o reinado através de feitos heróicos. O rei da História Meio ao Contrário não tinha saído do Castelo ao entardecer, e ainda não vira a noite substituir os últimos raios de sol.

O rei e a rainha tinham sorte e esperteza. Sorte porque tinham saúde e gostavam muito um do outro. Esperteza porque resolviam seus problemas sem achar que eram menos felizes por tê-los.

Num belo entardecer, como sempre fazia, a rainha manda um criado chamar o rei para o banho. Depois do banho, o jantar ao som de música da banda real. Naquele fim de tarde o rei não estava querendo sair da contemplação das cores do horizonte ao entardecer.

O criado ia e vinha com recados e chamamentos. O rei, muito educado, não dizia ao criado: "Diga à rainha para ela dá merda ao burrinho que vai e vem". E o criado continuava a ir e a voltar com as mensagens da rainha.

A rainha e a princesa estavam comendo um jantar real, presume o leitor, delicioso, quando o rei entra no salão a berrar, como que apavorado:

      — Socorro! Prendam os ladrões, biltres, facínoras, bandidos. . .

A rainha perguntou muito com jeito:

      — Majestadezinha, o que houve?

      — Uma coisa horrenda: roubaram o dia.

O rei teve um chilique, um surto psicótico. Afinal, como alguém poderia roubar o dia? Mas rei é rei e ninguém contraria o que ele diz, sob pena de castigos cruéis e perda de mordomias.

Todos, de um modo ou de outro, confirmaram que o dia havia mesmo desaparecido. O Primeiro Ministro foi chamado em caráter de urgência urgentíssima, enquanto Sua Majestade se perguntava como diabos alguém roubara, de baixo de suas reais barbas, a luz do dia.

O Primeiro Ministro, muito vivo, comentou conciliativo, que o mistério do desaparecimento do dia acontecia todo dia.

      — Como todo dia? Eu acabei de ver, agorinha mesmo. Como uma coisa dessa acontece todo dia e apenas hoje eu fiquei sabendo?

      — É que V.M. é um homem feliz para sempre. Na hora do real banho, do real jantar, quando o sol desaparece no horizonte, V. M. estava sempre dentro do castelo, tomando seu real banho, e depois jantando ao som real de sua banda particular.

      — Mas deveriam ter me avisado. Eu nunca soube disso.

Majestade, se as pessoas lhe avisassem da chegada da noite, dos problemas do povo, V. M. não poderia continuar sendo feliz para sempre. Em seu castelo tudo é tranqüilo, sob controle, sem esquentar a cabeça.
      — Como o povo sabe do desaparecimento do dia e eu não? Eu sou o rei. Chame o povo aqui, imediatamente. Quero saber tudo dessa história. Como pode ser o rei o último a saber?

      — Majestade, a essas horas da madrugada o povo está dormindo. Ele não é uma única pessoa, são muitas.

      — Como assim muitas? O povo é alguma espécie de monstro?

      — O senhor sabe o que é o exército, não? Não é um, são muitos soldados. O povo é a mesma coisa. Ninguém cutuca no ombro do exército, não é mesmo?

      — Quero falar com o povo agora mesmo, insistiu o rei. Chame ele agora!

      — Temos algumas pessoas do povo no castelo, Vossa Sublimidade. Vou mandar que se reúnam no pátio. Agora mesmo, Majestade.

O gordão então falou:

      — Vocês sabem quem roubou a luz do dia? Digam-me. Vocês são o povo, são muitos, sabem de tudo. Eu sou o rei e exijo que me digam. Quero agora mesmo o nome do ladrão.

Todos ficaram logicamente calados. Com o rabo entre as pernas.

      — Não precisa se exaltar, Majestade, temos muitos espiões entre as pessoas do povo. Logo saberemos de tudo, tin-tin-por-tin-tin.

Mais calmo o rei ordenou ao povo que voltasse a dormir. Mas continuou a insitir em saber o nome do gatuno da luz do dia. O Primeiro Ministro não se fez de rogado:

      — É um Dragão enorme, maior do que o castelo e o vale. Solta fumaça gelada pelas narinas, tipo nuvens. Ele rouba o dia por algumas horas. Depois devolve o sol pela manhã, outra vez. O pior é o olho do monstro Majestade.

      — Os olhos, você quer dizer.

      — Ele só tem um olho, um olhão enorme. O Dragão Negro que rouba o sol todo fim de tarde, Majestade.

      — É horrível, o olho vai diminuindo, diminuindo, até quase desaparecer. É quando ele dorme, vai dormindo, dormindo, fechando o olho. E depois o olhão vai aumentando, aumentando, o Dragão vai despertando, despertando, até ficar enorme outra vez, e luminoso, Sereníssima Majestade.

      — Que horror, horrendo, exclama o rei.

      — Deve de ser lindo, diz a princesa.

Cala a matraca, menina, censura a rainha.

Ordeno que o monstro horrível seja morto.

      — Ordena a quem que o mate? Esse maluco pirou completamente. A pergunta e o comentário ficaram calados na boca do Primeiro Ministro. Afinal se ele pensasse alto sua cabeça ia rolar na hora.

      — Avise ao reino que quem conseguir matar o Dragão Negro ganha de presente a lindeza de minha filha. Assim eu mato dois coelhos de uma só paulada, pensou o rei. Livro-me dessa encalacrada.

Dia seguinte todos ficaram sabendo da oferta do rei. A população leu e ouviu os editais reais.

      — Eu é que não queria casar com um desconhecido só porque ele é bom de briga,disse a Pastora.

      — Não vai aparecer ninguém, falou a Tecelã. Precisa muita coragem. E pensou, cá com seus botões: Seria um doido varrido que nem o gordão aflito pra se livrar da princesa encalhada.

      — Meu trabalho tem serventia, garantiu o Ferreiro. Mas enfrentar o Dragão Negro. . . É só a fantasia doentia de um rei ocioso e mandrião. Pensou cá com seus botões.

O Camponês foi logo dizendo que não estava a compreender nadica de nada. Como a caça do Dragão Negro poderia caber na cabeça de alguém? Pensou e calou para preservar a cabeça no pescoço.

No outro dia apareceu o Príncipe Encantador na casa da Pastora querendo água para o cavalo e dizendo que ia se apresentar no castelo.

      — Você quer casar com a Princesa?

      — Nada disso. Não gosto é de ficar parado com a boca cheia de dentes esperando a consorte chegar. Uma aventura é um desafio. É preciso ter o que fazer.

      — Que aventura sem pé nem cabeça! Ela quis dizer, mas calou, para não ofender o Príncipe Encantador. E a Pastora,como uma boa mulher faladora, logo foi contar a novidade para o povo do lugar, mal o Príncipe galopava rumo ao palácio. Quando a Pastora calou o camponês falou:

      — Agora vamos ter que defender o Dragão. Ele é nosso amigo.

      — Isso mesmo, confirmou o Ferreiro. Não fosse ele a gente ia ter de trabalhar sem parar. O dia nunca ia terminar.

      — Se ficasse fazendo sol o dia todo, as flores e os frutos iam queimar. O Camponês atestou.

      — Trás os Montes mora um gigante. Ele pode nos ajudar, disse a Pastora.

      — Isso mesmo, disseram alguns.

      — Bem pensado, confirmam outros.

      — A gente precisa tentar falar com ele. Talvez nos dê uma idéia.

      — Quem vai ficar fazendo nosso trabalho? Perguntou a Tecelã.

      — Não faz mal parar o trabalho, se isso ajudar toda a gente. Fez-se ouvir o Ferreiro.

      — Você pensa que é fácil despertar o Gigante? Perguntou o Camponês: se não vamos todos ele não vai ouvir nada.

E foram todos dançando e cantando até a habitação do Gigante. Chegando lá começaram a berrar:

      — Acorda, acorda, acorda.

      — Que diabos de corda é essa? Peguem logo a maldita que eu quero dormir.

      — Desperta, Gigante, ouça a nossa história. Acorda não é a corda. Fica ligado no que nós temos a dizer.

O Gigante despertou e se ligou na conversa dos camponeses. Começou a se mexer, e a suar. O suor gerou um orvalho que evaporou para as nuvens. As sementes logo brotaram, o capim cresceu. As árvores produziram flores e frutos. Atraíram pássaros e animais. Tudo aconteceu muito depressa.

E o Dragão chegou. E o Príncipe Encantador, com sua lança, a espada e o escudo em punho, galopou em busca da aventurosa possibilidade de se deparar com o Dragão Negro. Aconteceu que as condições climáticas mudaram. Houve chuva, , os riachos encheram, a terra molhada, os borrachudos picavam, as muriçocas zigzuniam, os grilos trinavam, da mata vinham barulhos, as feras passeavam entre trovoadas e raios. O Dragão estava na maior agitação, e o príncipe não se dava por vencido.

Ele viu a moça Pastora sob a luz do olhar único do Dragão. E só então reparou em como a Pastora era bela. E falava respeitosa e graciosamente.

      — Vossa Alteza está bem?

      — Nunca me senti melhor dentro dessa armadura encharcada.

      — Tire a armadura, disse ela. Desejando que ele ficasse mais à vontade.

      — Eu preciso vencer o Dragão.

      — Para quê? Quer mesmo casar com a sirigaita da Princesa? E viver no castelo, ser feliz para sempre sob o sol eterno e o sono?

      — Para terminar o que comecei. E o Príncipe ficou pensativo, será mesmo que eu quero ser feliz para sempre? E ficaram se olhando. Ficaram ficando, até o olho do Dragão sumir e os primeiros raios de sol surgirem.

O rei, parece que ele não estava indo muito bem na cama, já aprontava outro escândalo real, só que desta vez ao contrário. Queria uma explicação para o desaparecimento do sol frio que brilhava de noite. Os malditos, Socorro, acudam. Ladrões, biltres, facínoras, bandidos! Ponham barreiras nas estradas. Cerquem o reino inteiro. Revistem todos os cantos do palácio. Exijo que sejam presos.

Os soldados, a Rainha, a Princesa, o Primeiro Ministro, o povo, todos corriam para todos os lados, esse perguntavam de modo calado: "O que diabo esse pinel está dizendo?"

      — Roubaram o sol frio que brilhava na escuridão. O Primeiro Ministro pensava com seus botões: "Que safado alienado, ignora até o nome da lua. Ele está se fazendo de bobo pra melhor passar por doido."
Dessa vez não foram precisas muitas explicações. Ele podia estar se fazendo de tolo, mas não era burro não. Chegou a conclusão que não valia a pena perseguir e matar o Dragão Negro. Ele é quem fazia o sol aparecer todos os dias e as pessoas descansarem à noite. À luz de seu olhar brilhante. E o rei, querendo parecer um pouco menos bobo, falou:

      — Não é preciso mais matar o monstro. Todos viverão melhor se estiverem em paz com o Dragão Negro.

Então o rei, magnânimo (todo rei, presume-se, tem grandeza de alma, é generoso, liberal), disse ao Príncipe que casasse com sua filha. Na realidade ele estava querendo se livrar da encalacrada. Queria de uma tacada matar dois coelhos. Ou seja: como não gostava de crianças, queria que ela fosse morar com o marido para não perturbar seu modo de ser feliz para sempre, com aqueles gritos e ruídos que fazem os netinhos. Ele se fazia de bobo para melhor passar a mão da princesa. E não apenas a mão, para o "esperto" do Príncipe.

A Princesa alegou que não queria casar. Que agora é que estava despertando para o mundo. Que depois de algum tempo, quem sabe? O Príncipe gostou da decisão desde que estava todo inclinado, quase a cair do cavalo, olhando de lado, admirando a Pastora, com um certo olhar malvado de precisão. A rainha por sua vez, muito zelosamente, piscava o olho direito para o Primeiro Ministro que, apavorado com a possibilidade de ser descoberto, sorria descabelado, mostrando todos os dentes. E todos continuaram a viver felizes para sempre.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 15/04/2010


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