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“O Jarro”
Numa classificação relativa à história do cinema, este filme pode ser identificado como neo-realista, movimento cinematográfico que começou na Itália pós-II Guerra Mundial, em 1945. A partir da literatura passou às demais artes, destacando-se no cinema. Pretendia participar da realidade enquanto verdade e testemunho, através de documentários dramatizados, autobiográficos, tendo como atores, inclusive no teatro, as próprias personagens populares.

Destacaram-se como precursores do Neo-Realisto, o francês Jean Renoir com Nana (1934), Crime e Punição (1935), As Regras do Jogo (1939), o alemão Erich von Stroheim A Grande Ilusão (1937), os cineastas italianos Luchino Visconti, Ossessione (1942), Alberto Lattuada, Sem Piedade (1943), e Clamor (1944). Inaugurou o Neo-Realismo Roberto Rossellini, ao dirigir Roma, Cidade Aberta (1945), Alemanha Ano Zero e Paisá (1947); Frederico Fellini, Luzes: Variedades (1950); De Sica, Ladrão de Bicicleta (1949) Umberto D (1952), seu cenarista, Cesare Zavattini, o acompanhou em seus filmes posteriores. O principal nome da cinematografia italiana pós-neo-realista, Michelângelo Antonioni, destacou-se com os filmes Um Caso de Amor (1950), seguindo-se a este a famosa trilogia A Aventura (1960) A Noite (1961); O Eclipse (1962).

É fácil observar os pressupostos estéticos do movimento neo-realista: os mencionados acima, os baixos custos de produção, as filmagens documentais ao vivo, ainda hoje são utilizados por cineastas do 3º Mundo. No Brasil o Neo-Realismo chamava-se, na década de 70, Cinema Marginal. Seu principal representante, Rogério Sganzerla, dirigiu o excelente filme O Bandido da Luz Vermelha. Nele mostrou-se um conhecedor dos estilos de filmagem das escolas e diretores que fizeram a história do cinema.

O cineasta iraniano Ebrahim Foruzesh, roteirista e diretor do filme "O Jarro", ainda agora usa os mesmos princípios que usaram os cineastas do pós-guerra, que, na falta de capital para a realização de seus filmes, faziam cinema de baixo orçamento com excelente qualidade estética. Em suas realizações artísticas da Sétima Arte, mostravam a diversidade de emoções e sentimentos contraditórios, que as pessoas menos favorecidas, vivendo num estado de perene necessidade, mantinham, tendo de sair dos subúrbios distantes, de madrugada, para trabalhar a pé nos grandes centros urbanos. Caminhavam durante horas e já chegavam estressados ao trabalho. Desde que, quando havia condução precária, faltavam os centavos para pagar a passagem de ônibus.

Em Ladrão de Bicicleta, Vittorio de Sica narra a história de um pai de família numa situação social precária, que é pego em flagrante, roubando uma bicicleta, para ter condições de continuar trabalhando e levando um mínimo de alimentação para os membros de sua família. Antonioni, um cineasta da elite, com temática existencialista sofisticada (vide trilogia mencionada), assemelhava-se à produção neo-realista nos orçamentos baixos de seus filmes em preto e branco (p&b).

Em "O Jarro", filme atual, o cineasta focaliza uma comunidade do interior da região palestina, suas mazelas, as feridas abertas dos ressentimentos das pessoas sem esperança, esquecidas dos poderes públicos, menosprezadas pela burocracia da secretaria de educação do lugar, que poderia passar um ano inteiro para substituir um jarro d´água comunitário que está vazando, no pátio de uma escola pública.

"O Jarro" é o pretexto para mostrar os estigmas sociais que constrangem os habitantes de um povoado do interior palestino, que em sua miséria de filosofia de sobrevivência, vivem reproduzindo uns com os outros, os comportamentos de que são vítimas pelas autoridades, das quais não recebem nada, exceto desprezo, e pelas quais são capazes de lutar e morrer, por razões que não fazem parte de seus interesses de pessoas pacíficas, em busca, através da educação, de melhorar suas vidas de extrema pobreza.

O estado emocional dos membros desse grupo, uma mistura de mesquinharia, sovinice e avareza, imita fielmente as intrigas que vêm de cima, os comportamentos infames de um Estado ausente (inexistente: o povo palestino não tem um lugar geográfico onde possa exercer uma política para sua gente), das autoridades que ignoram os seus sofrimentos, a penúria de uma sobrevivência deplorável, que os faz conviver como se fossem animais que se hostilizam mutuamente, quando não há outra motivação que os una, exceto, os acontecimentos vividos na escola, e um jarro, que, de tão antigo, não tem condições de conserto em seus múltiplos vazamentos.

Cabe a uma mulher esmolar doações pela comunidade afora, para angariar condições, através de sua iniciativa, de adquirir um outro vaso, alto e bojudo, para alimentar de água as crianças, e outros membros da comunidade que passam pelo pátio interno da escola. A caneca e a água servem de elemento físico de identificação comunitária.

Beber de sua água, a partir de uma mesma caneca, é o modo das pessoas sentirem-se irmanadas, de fazerem uma comunhão coletiva com um elemento básico e indispensável para a vida: a água. Ao tiraram a água com a caneca do jarro, elas mais que estão se alimentando, estão a participar de um ritual ecumênico: sentem-se gente que satisfaz essa necessidade comum, sem ter de se agacharem, como se fossem antropóides, no córrego, e colher a água diretamente com os lábios e a língua, ou conduzindo-a com as mãos até a boca.

Beber da água do Jarro é uma maneira de sentirem-se civilizados. De fazerem parte das conquistas culturais concretas da sociedade contemporânea, de compartilharem bens de supostos valores, de atualizarem seus costumes. Beber da água do jarro é uma forma, ainda que precária, de se sentirem individualmente elaborados, desenvolvidos, aprimorados, participantes do desenvolvimento social e cultural da comunidade humana mais ampla, globalizada pela tecnologia.

Beber do jarro, era a ação coletiva mais próxima que podiam chegar das conquistas técnicas atualizadas da civilidade e da educação coletiva "globalizadas".
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 12/04/2010
Alterado em 31/03/2011


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