A Seca De 32 (33,34,35,36,37,38,39,40...06...)
Dizem alguns estudiosos da literatura sobre o sertão, que o sertão se narra como a história do primeiro conto da Bíblia judaica, “Caim e Abel”. Caim simbolicamente é a metáfora figurativa, dos “amigos da nação do palanque”, no “pra lamento”. Abel representa o homo-sapiens-fabiens, simplório, que são as gentes que estão submersas na sede de justiça e de cidadania dos sertanejos, os rurais e os urbanos: As “cem siglas”: 100 Terra, 100 habitação, 100 salário, 100 emprego, 100 sexo. 100 cultura, 100 bens, 100 crédito, nada no ativo, com um passivo “pra lamentar”.
Ibiapina, 1965): A voz era humilde porque a terra não era sua, e o seu caminho era o caminho da seca. O caminho da fome. O pai era o capitão porque era o dono da casa. Arriou a bagagem, rumorejou. Um suspiro tão grande como o sertão...
O que é bom enunciado repete-se:
“A voz era humilde porque a terra não era sua, e o seu caminho era o caminho da seca. O caminho da fome. O pai era o capitão porque era o dono da casa. Arriou a bagagem, rumorejou. Um suspiro tão grande como o sertão...”
O gênero conto, do Gênese até os dias de hoje, vem exercitando um intertexto. A noção de espaço cíclico, sem saída, vem também do Antigo Testamento: os judeus errando no deserto (no sertão oriental) que nem os cavaleiros da Távola Redonda de Riobaldo, por quarenta longos, intermináveis, melancólicos, sofridos, dias de maná. Deus deu, deus dá, deus dará. . . E o maná que deus dá continua o mesmo: não está saciando a fome de pão e de justiça da parte simbolizada por “Abel”, de seus filhos sertanejos.
Será que Deus tem filhos apaniguados na ala do “pra lamento” da seca?
Se todos ficaram na mais descarada impunidade nos desgovernos anteriores, por suas políticas contra a seca, em favor de seus ativos financeiros, por que os “pra lamentares” de todos os sucessivos governos, desde a proclamação da República, continuam sendo fundamentalistas, fanáticos, como se fossem metáforas (deputados, senadores) dos costumes políticos de seus antecessores? (Ibiapina, 1965):
— Que coisa triste. . . seu moço. Dá até para não se acreditar nas coisas do outro mundo. Será possível que Deus exista ? Achava que sim. Agora, certeza que não. Deus sendo Deus, como o povo quer que ele seja, não ia deixar que uma criança inocente morresse de fome em tamanha miséria. De duas uma: ou Deus não existe, ou só existe para os ricos. E se Ele existe apenasmente para os ricos, pra mim não, porque nasci na pobreza, e nunca soube o que fosse ser rico na vida.
O conto de Fontes Ibiapina fixa um ponto vital no argumento da seca. No conto realista o “por vir” vem nunca. Não precisa aparecer, ser metonímia de personagem outro que não o presente do indicativo (Ibiapina, 1965):
— Virou-se para o pai e pediu uma esmola de sete palmos de chão. O menino ficou assustado com aquela história. Pensou o que pudesse ser uma esmola de sete palmos de terra. Sem compreensão. . . Só depois que cavaram as sepulturas, lá na “Covinhas dos Anjos”, foi que eu compreendi o que era a esmola de sete palmos de chão.
A tipóia atada numa estaca tentava balançar, não podia, de tão esticada que ia. Ninguém cantou “irmão das almas” ! Não sei se porque o corpo era maneiro, ou se porque sabiam que em tempo de seca não se encontra um “irmão das almas” pra remédio.
Arriaram a bagagem. Desataram as cordas e, sem nenhum protocolo, jogaram os punhos da rede na cara do pequeno defunto. Botaram-no na sepultura. Uma mulher magra gritava dentro duma carga de nervos, como se quisesse proibir a cena. Ninguém deu assunto às loucuras da mulher. Meteram terra na cara do menino, qté que ficou rente: uma sepultura do mesmo jeito das outras.
Nas cartas de Tarô, “O Quinze”, é o número do diabo. Não “O Quinze” da seca romanceada de 1915, por Rachel de Queiroz. O pacto que o sertanejo faz com o diabo do sertão é nele permanecer para todo o sempre, sem ter para onde sair, seus filhos e filhas sem ter para onde ir. Se for pra cidade grande vai tudo se prostituir ou vender drogas. “Se ficar o bicho pega se correr o bicho come”. O bicho só não pega e não come, os “pra lamentares” responsáveis pela política da impunidade de palanque da seca.
As políticas do “pra lamento” para o sertão são todas malassombradas, com repentes de sobrenaturais pactos com o capiroto. O sertão de Fontes Ibiapina não é diverso do sertão de Guimarães Rosa, do sertão de Graciliano Ramos, do de Euclides da Cunha, de Glauber Rocha, Raquel de Queiroz ou Nélson Pereira dos Santos. O sertão é ele mesmo uma metáfora, metonímia de si próprio.
No desespero da seca tudo é desigual. E todo mundo mantém a esperança da “chuva do Caju”, da “chuva do dia de santo Antônio”, da chuva que deus deu, que deus dá, que deus dará. Todos os sertanejos, como bons católicos fãs de padim padre Cícero e quejandos, olham para o céu na esperança do pingo dágua gotejando por milagre de obra e graça de São Pedro. Ninguém é católico o suficiente, nenhum “pra lamentar” é honesto o bastante, para acabar com a miséria do sertão. Mas todos querem tirar proveito de seu folclore. Os escritores denunciam isso através da literatura. A literatura que é cada vez menos lida, pelas quadrilhas de “pra lamentares”.
E o folclore supostamente “naturalista” aumenta a demonologia superticiosa:
(Ibiapina, 1965): Às seis horas o sol meteu a cara sem nenhuma mancha de nuvem. Sinal de inverno, nada ! As carnaubeiras parem muito, não há inverno. Enquanto a peitica canta, não chove próximo à lagoa à tarde, as andorinhas faziam redemoinhos, uma só não faz verão, e muitas, redemoinhando, são sinal de que não haverá gota de chuva. Era como se todos tivessem escrito para São Pedro e ele ouvido o implorar da gente pela seca.
Janeiro meteu os peitos com a cara mais limpa do mundo. Mais uma experiência. A experiência dos cinco primeiros dias do ano, que correspondem ao período hibernal. Cada um dirá como há de ser o mês, a que corresponde. Uma experiência a mais que falhou. Nem um sinal de chuva ! Nem um sinal de inverno! ! . . . Quando uma galinha se espoja na areia quente do terreiro, ou um porco se escaramuça arrastando uma palha presa aos dentes, a chuva baterá nas telhas antas do raiar do dia. Mas os xiquexiques não floraram. As galinhas não espojaram. Nem os porcos arrastaram palhas.
A criação de um folclore do sertão para sua gente se conformar com o gado migrando magro e caindo pelos caminhos, sem água, sem árvores, sem frutas, sem esperança, o desespero dos olhos estufados dos animais colhendo a última gota dos açudes barrentos da caatinga. A água cor de argila pardacenta retida nas contas bancárias dos Cavaleiros “Pra Lamentares” da Távola Redonda do “Pra Lamento”, e seus sócios, os banqueiros e latifundiários do “Reich dos Mil Anos”.
Fontes Ibiapina conta um conto mas não aumenta um ponto. Nada mais há a aumentar. Ele escreve sobre a terra dos que clamam pelo aparecimento de uma planta xerófila, para o gado ruminar, mastigando o pouco como se fosse o demais. O conto “A seca de 32” repete, na composição literária, a luta árdua, das pessoas e do gado definhando sem limite. Sem ajuda, sem verbas. As condições da natureza como castigo de Deus. Além da miséria a culpa pelo existir desasistido dos poderes.
As reses caindo, o folclore fluindo, as lendas disseminando os costumes do caboclo do Piauí indo cortar o mandacaru, último recurso de sobrevivência. A terra, o homem, o gado, danando-se por uma gota dágua que nunca vem.
(Ibiapina, 1965): Começou o flagelo do gado. Em pleno maio, e as reses já entrambicando de magras. Nosso vaqueiro-de-varanda todos os dias ia pegar os que não mais podiam resistir sem razão e traze-los para o cercado-da-porta. E lá se ia todo mundo para aquele trabalho aperreado e quase sem futuro. Começamos pelas ramas de juazeiro e feijão-bravo. Todas as tardes íamos ao mato. Parecia que aquele trabalho não se acabava mais. Eu me recordava das histórias que o pai contava da Seca de Quinze. E tinha a impressão de estar vivendo em Quinze mesmo.
O sertão de Ibiapina, é o sertão da linguagem e da experiência cíclica dos calendários da seca. O tempo público do sertanejo socializando suas carências, a atividade cronológica da desexistência cotidiana. O sertanejo é antes de tudo um forte. Ainda que sem ninguém e desasistido dos poderes “pra lamentar”, ele continua vivo em direção a um suposto futuro. Em direção a sete palmos de chão. A direção do futuro é uma viagem ao passado. O que aconteceu acontecerá. As crianças de barriga inchado pela consumo excessivo de farinha, café, as viroses, as bactérias e as lombrigas.
Nesse tempo acontece a vida mágica, mítica, da subjetividade, porque a vida mesmo não pode acontecer diferente das carências do calendário. O presente indicativo intemporal da necessidade, no tempo político dos eventos físicos, sempre repetidos, cíclicos. A celebração da engrenagem cronológica do tempo histórico das migrações, da seca, em direção a outros lugares, manifestações geopolíticas dela mesma: o sertão é como Deus, onipresente, está em todos os lugares. Do mesmo jeito.
A continuidade sem mudança dos discursos “pra lamentares”. O padrão cultural da realidade enquanto procedimento e processo. A política do “Reich dos Mil Anos” do “pra lamento” segurando em rédea curta o tempo histórico do sertanejo. O constructo da fome elaborando-se e sintetizando-se na mais elementar e covarde antropofagia. A concepção cristã do tempo recorrente reacontecendo. O futuro em busca de repetir os movimentos do passado.
O futuro anterior, prevalecido no singular exercício da palavra e da culinária do sertão: a dona de casa mexendo o angu de milho seco pra sustentar no outro dia, no mesmo lugar, a roda-viva, mixórdia. No meximento do angu de farinha com água da poça, a colher-de-pau vai bulindo as impertinências do tempo físico, psicológico, o tempo cronológico, o tempo histórico: o tempo do imbróglio lingüístico. E o dramalhão mal elaborado da seca do sertão continua a vivenciar a cultura implacável da seca. A estiagem de 1877, de 17, a de 32, e todas as outras.
O mundo do imaginário sertanejo é o único lugar para o qual ele pode expandir sua linguagem. Quantas histórias de pescador em meio ao sertão sem nenhuma água. A seca ordena as representações simultâneas de tudo quanto é imaginário: o da fome, da miséria, das verminoses, da esperança, das ladaínhas, dos joelhos ralados, mortificados, de tanto rezar em vão.
O próprio ficcionista Ibiapina, através da voz do narrador, afirma:
(Ibiapina, 1965): Lembrei-me duma história que a velha Madrinha Clara, ama-preta, contava. Tive a impressão de que depois ia nascer capim naquela sepultura, e aquele menino ia cantar: “Negro do meu pai,/não corte meus cabelos,/que a madrasta me enterrou/pelos frutos da figueira/que o passarinho comeu./Xô passarinho. . .!”. A mãe acendeu duas velas de cera de carnaúba nas extremidades do túmulo. O retirante pendurou os olhos compridos na estrada e convidou a velha para se irem. . .
Qualquer representação do imaginário se realiza através da linguagem. O memorial literário da seca não faz as políticas de palanque acabarem. A literatura denuncia, mas não alivia. Não há possibilidade de sensibilizar o “pra lamento”, faze-lo reconhecer que o sertanejo pertence à espécie humana do “pra lamentar” ? Humana ?
(Lima-Romero, 2000): O ficcionista oscila do regional ao universal urbano. Às vezes se misturam a ficção e o folclore. Fontes Ibiapina é o maior conhecedor das crendices, superstições e tradições do povo piauiense. Daí essa simbiose literária. A profissão de magistrado possibilitou o conhecimento da diversidade do folclore e das crendices locais. Hoje, a caracterização folclórica do Piauí tem seu registro definitivo em Fontes Ibiapina.
Fontes Ibiapina, assim como outros autores piauienses, deveriam merecer do corpo docente, responsável pelo ensino da literatura piauiense, uma atenção mais detalhada (a afirmação não é uma crítica pessoal à professora Celestina). A academia, deveria promover um estudo menos superficial de suas obras. Do que significa a prática do estilo de escrever à Ibiapina, no gênero Conto.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 12/04/2010