Textos

Lancelot, Primeiro Cavaleiro (II)
Lancelot era livre antes de conhecer a fraternidade da Távola Redonda. Vivia que nem macaco, de galho em galho, de burgo em burgo, de cidadela em cidadela. Não era cidadão em nenhuma delas. Naquele tempo da Corte do rei Arthur, em Camelot, ninguém tinha mesmo cidadania.

O rei mandava e quem tinha tino obedecia. Ganhava a vida como se fosse artista de um circo itinerante que tinha um único intérprete e comediante: ele mesmo. Safava-se exibindo-se. Era muito ágil no manejo da espada. Desafiava muitos campônios e ganhava os duelos de todos eles. Granjeava, desta forma, a admiração e a simpatia deles. Alguns desconfiavam que, uma vez ele por perto, era melhor dormir com um olho fechado e outro aberto. No sentido de que, em breve, poderia nascer chifres na cabeça de muitos deles.

As mulheres, ao vê-lo, ficavam todas meio oferecidas. O cara tinha carisma. Acho até que ele era epilético, tinha uma cara e um jeito de coitadinho. Devia ter acessos involuntários dessa doença e, por isso, tinha vergonha de andar no meio das outras pessoas. Era triste, essa tristeza talvez viesse desse defeito de fabricação. Fazendo as contas, era um cara muito habilidoso.

Não é fácil conquistar a confiança de um rei severo e respeitado e ao mesmo tempo estar afins de ir para a cama com a mulher dele. Ele assumia os riscos, fazia a cabeça das mulheres, talvez porque soubesse que a cabeça delas é meio lá e cá, flutuando entre o marido e o desconhecido. Guenevére, ainda nem era rainha e já estava pronta a cair na conversa dele. Depois que ele a salvou das garras de um príncipe que era também inimigo do rei, e queria tomar na marra o trono da Inglaterra, aí então, ele conquistou a consideração da Corte e a rainha quase que perde mais que a compostura dela, beijando ele no quarto como quem convida a dançar um forró pé-de-serra. Foi um Deus nos acuda.

O rei tinha aberto a porta, e de pé, olhava os dois no quarto em pleno chupão de língua. Não teve nem mais nem menos. Arthuzão não quis nem saber, ele não podia deixar barato o desaforo do cavaleiro Lancelot, sob pena de perder a aprovação da Corte e ninguém mais olhar ele sem ver antes o par de chifres. E lá estava o coitado do Lancelot em vias de perder o pescoço, a cabeça ele já tinha perdido para a rainha Guenevére.

E aí o ex-Cavaleiro da Távola Redonda que estava querendo tomar de qualquer jeito o trono do rei Arthur, atacou o castelo. No rebu que se seguiu, Lancelot novamente mostrou suas qualidades de exímio espadachim e virou de novo a cabeça de todo mundo, merecendo outra vez os favores do rei Arthur que, a essas alturas estava ferido de morte. Vendo que Lancelot tinha contribuído para salvar o castelo e manter o reino sob controle dos Cavaleiros da Távola Redonda, ele resolveu arredondar as coisas para os lados da rainha e do bejoqueiro. Resultou que o filme terminou no maior dos “happy-end”, como os produtores de Hollywood gostam.

O mocinho ficou com a donzela, após contribuir para salvar todo mundo de viver sob o controle do perverso inimigo do bem, que queria ficar com todas as riquezas do reino. O filme ficou meio bobo e maniqueísta. Os bons venceram os maus e todos viveram felizes para sempre. Que nem conto de fadas. Quem sabe teve até gente que chorou depois de ver todo esse melodrama. Lancelot talvez tenha até gostado de trocar sua boa vida de sedutor das mariazinhas casadas com os zé-ninguém, pelo trunfo sofisticado e a responsabilidade de salvar a segurança do reino de Camelot. Para não falar nos proventos da rainha que tinha tudo no lugar certo e uma cama de casal do tamanho que o diabo gosta.

Nos finalmente, acho que ele não saiu perdendo. Trocou a independência pelos privilégios de governar que antes eram do rei. Agora ele poderia dizer que o rei era ele. E rei é rei, manda em tudo e em todos, e quem tem juízo obedece. Depois, não tinha mais perigo dele perder nem a cabeça nem o pescoço. Ele que havia ganho tudo com aquele jeitinho de quem não quer nada, oh!, ganhou todo mundo com aquela prestidigitação de mágico de circo.

É certo que ele, Lancelot, tinha coragem e audácia. E vendeu a liberdade por um preço alto, como quem ganha sozinho o prêmio acumulado da megacena. Na época ainda não havia esse tipo de loteria. É certo também que ele não mais tinha de se envergonhar dos ataques epiléticos. Se é que ele sofria mesmo desse mal. Ninguém ia implicar com ele nem ter peninha dele. Bastava fechar a porta do quarto e podia tremer à vontade ao lado de sua Guenevére. Dá-lhe duro Lancelot: Cada Quixote fica com a Guenevére que merece.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 12/04/2010
Alterado em 12/04/2010


Comentários