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Lancelot, Primeiro Cavaleiro (I)
Era um cidadão tipo circense. Usava a espada para desafiar os agregados dos burgos, mostrar-lhes sua habilidade, como se fosse um brioso cavalgador a serviço de algum rei ou príncipe. Luta com eles para mostrar que é mais hábil, e com isso ganhar o respeito e a sobrevivência, com mostras de competência na arte de manipular a chanfana, na circunvizinhança dos castelos. Campeava pelos campos das terras dominadas pelos grandes latifundiários do momento, que se reuniam numa fraternidade autodenominada Cavaleiros da Távola Redonda... Sob o comando do Rei Arthur.

Após uma série de façanhas heróicas, conquista a consideração e a reverência da Corte. O rei Arthur dirige-lhe o honroso convite de participar da Mesa Circular ao redor da qual se reúnem periodicamente seus cavaleiros. A honraria chegou após Lancelote salvar a rainha Guenevére, mulher do rei, das mãos maléficas de seu rival, ex-cavaleiro, mas que havia fundado seu próprio feudo, e passava a desafiar Arthur, empenhando-se na conquista dos pequenos principados mais indefesos, no reino da Inglaterra.

A rainha Guenevére vai a Camelot em busca da proteção do rei contra as constantes invasões de suas terras pelos asseclas do impiedoso príncipe e ex-cavaleiro arturiano, que queria à força de suas conquistas, ir aumentando o contingente de seu exército particular e, de conquista em conquista, visava ampliar seu despótico domínio ficando clara a pretensão ao trono da Inglaterra, ao reino de Camelot.

O domínio de Arthur era uma imitação realista das antigas novelas de cavalaria, todas derivadas da fábula primitiva do jovem príncipe escandinavo (sueco) Beowulf, que, entre outras façanhas, havia participado de um concurso de natação que durou dez dias, tendo por antagonista o famoso campeão dos países da Escandinávia, chamado Breca.

Após competirem dez dias e dez noites consecutivas de natação em praias litorâneas, nas fronteiras entre os quatro países (Suécia, Noruega, Islândia e Dinamarca), a lenda não especifica se eles, em dez dias de furiosa flutuação e rivalidade marítima, ultrapassaram os limites fronteiriços de todos eles.

Após lutar contra monstros marinhos que viviam assombrando o litoral, Beowulf sagrou-se vencedor. Após ter sido sugado por um monstro marinho, emergiu da profundeza oceânica, em meio a uma mancha enorme de sangue que transformou a espuma branca das ondas em vermelho. Os espectadores, estarrecidos, pensavam que fosse também dele a quantidade de sumo vital, mas era apenas plasma da apavorante, cruel, descomunal e extraordinária criatura marinha que vinha apavorando, há gerações, os reinos vizinhos.

A lenda desse homérico príncipe, desse Hércules setentrional, de sua lâmina, comprida e pontiaguda, formada por dois gumes, originou outras, por toda a Europa, das quais sobressaiu-se a da cidade mágica de Avalon, que sustentou a espiritualidade e as fantasias do reinado arturiano, em Camelot.

A lenda do rei Arthur é originária dessas fábulas com personagens imaginários, das poesias de amor platônico (e físico) reelaboradas, por escritores medievais ao estilo fantasioso de Dante Gabriel Rossetti, que edificou a fraternidade pré-rafaelita (a Pre-Raphaelite Brotherhood).

Das lendas dos países nórdicos, formou-se um ciclo de fabulação de origem celta que ganhou o imaginário da Inglaterra, e depois a Bretanha, conduzido pelos bretões que fugiam das invasões dos saxões e dos anglos. Desses enredos derivam os heróis da biblioteca do Quixote, as várias histórias do rei Arthur, o culpado amor da rainha Guenevére por Lancelote (origem de dezenas de óperas clássicas, de tragédias shakespeareanas e de outras), os complôs de cavaleiros das “Idades Médias” afora (Alta, Média, Baixa), a busca do Santo Graal, Camelots & Avalons S/A.

O Lancelote do filme presta-se à imagem do cavaleiro errante, romântico personagem de uma infinidade de alegorias, ficções e metáforas mundo afora. No Brasil, temos a lenda amazônica do Boto, peixe de índole algo sem-vergonha, que costuma, ainda nos dias de hoje, seduzir e engravidar um sem número de mulheres.

A metáfora se presta a significar uma coisa na palavra e outra no sentido. O Boto representa a carência por ser amada das fêmeas amazônicas, que, por vezes, não perdem a oportunidade de se doarem à intimidade com cavaleiros errantes, tipo os “Lancelotes caboclos”, conquistadores itinerantes de seus corações solitários.

Ora, depois que o pilantra some, algum tempo depois, como explicar o bojo crescente do ventre, até a barriguinha de nove meses? — O Boto, ora bolas. O Boto, quem mais? Na corte de Camelot, Lancelote, quem mais ousaria intimidade com a rainha dentro do aposento privado do rei?

Por que a denominação intertextual de “O Cavaleiro da Triste Figura”? Porque depois de usar e ser usado, de conquistar e ser conquistado, de seduzir e de ser seduzido, restava-lhe apenas sair de fininho, não poucas vezes com o rabo entre as pernas (afinal, onde mais poderia estar o rabo?). E encarar a continuidade de uma vida de sensualidade errática, como se fosse ele um ambulante de prazeres fugazes, uma espécie condenada de judeu errante, que nunca poderá parar e estabilizar seus sentimentos por muito tempo no nicho sensual do corpo de uma companheira.

“O Cavaleiro da Triste Figura” reporta-se ao Quixote, romântico e sonhador sim. Lancelot, ingênuo? Não. Afinal, seu livre-arbítrio estava na escolha do caminho voluptuoso e perigoso da liberdade. E a liberdade quer e ousa vicejar em cada lugar aonde há uma flor pronta a abrir-se para a vida: a seiva entusiasta da sensualidade da juventude batendo ardente em dois corações solitários que se cruzam e se amam. E ganham o orgasmo da vida, apesar de todos os transtornos implícitos no ato impulsivo de insurreição emocional e rebeldia:

Que importa depois? Depois é depois. Um orgasmo é um momento inesquecível. Um átomo de poesia no universo da rotina. Da burocracia. Lancelot, um Quixote vencedor. Todo Quixote possui as Guenevéres que merece.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 12/04/2010
Alterado em 12/04/2010


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