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PATRICINHA GLOBAL (Num Dia De Outono)
Há mulheres que nascem com, ou adquirem com a experiência, a palavra vadia estampada na testa. Gostaria de saber porque toda mulher que conheço morre algum tempo depois de eu conhecê-la. A última, vou contar sua história. Talvez o desabafo seja suficiente para sentir minha consciência mais leve, Zen. Falarei um pouco sobre quem sou, como penso e ajo.

Costumo agir com certa ética, ainda que, quem tenha alguma, no capitalismo cro-magnon, esteja condenado ao mais infame ostracismo. Tenho a mania de poetar. Sou utópico, talvez. Do contrário, como encontrar uma motivação pertinente para viver??? Viver, presumo, exige uma certa lógica moral, uma mínima coerência factual, um, ainda que ínfimo, decoro. Próprio, de uso íntimo. Internalizado.

Olho para os lados e vejo apenas pessoas que, para sobreviver, mergulham fundo nas mais abjetas dependências. Ela era funcionária pública, trabalhava no Tribunal Regional Eleitoral. Depois de conhecê-la uma semana, seu discurso pessoal tornou-se mais previsível que fala de papagaio de pirata. Apesar de ter cursado uma faculdade de Direito e estar cursando outra de Administração, seu discurso pessoal era o de uma adolescente que, com certeza, leu alguns livros, mas não aprendeu nenhum princípio pertinente que valha à pena aplicar em sua vida diária. Em seu discurso arbitrário.

Seus sentimentos e emoções eram obscuros como um lago turvo, no qual se olha da superfície e não se pode ver nitidamente o fundo largo, que se dilata ao ser atingido pela ponta de uma vara, e dá a impressão de se abrir para uma penetração desejada, mais profunda. Entre dejetos inúmeros.

Na conversa dela falta um toque de atino, de sensibilidade. Apesar de estar entrada no quarto decênio da vida, suas compulsões não diferem das de uma adolescente com cultura de novela, partícipe de festinhas familiares, às quais comparece sempre muito bem vestidinha, dentro de modelitos copiados das vestimentas das atrizes dos seriados de fantoches novelescos no horário nobre da TV.

Saída de um casamento com um tratante que lhe atormentou a existência de forma maquiavélica e sádica, carregava o carma de uma convivência que a fazia marionete dos desejos de seus chefes de repartição pública, que se alimentavam avidamente de seu corpo, como se fosse uma fossa da qual puxavam varas salpicadas de inclusões fecais.

Talvez seja essa a condição da mulher moderna, que passou num concurso público e precisa rezar a ladainha para os superiores hierárquicos, sem a qual não manteria seus “dê aí” e “dê a esses”. Os salários dos cargos de confiança. Confiança em que sempre estará disponível.

Usufruía de sua condição de fêmea oferecida, ao mesmo tempo causava-me certa angústia vê-la como se fosse uma autômato sem profundidade psicológica, com uma alma tão rasa, como o psiquismo de aparências do qual se nutria socialmente. Sempre com um sorriso de quem quer parecer satisfeita, mas estando profundamente enredada numa teia de atividades atávicas e de conveniência social festeira. Satisfazia-se com sua personagem estagnada no compromisso de bancar sempre a adolescente. Assim a estigmatizaram. Ela aceitava. Sem questionamentos.

Estava adaptada à sinecura pública e a secura dessas condições, de tal forma, que as vivenciava como se fossem as coisas mais naturais do mundo. Afinal, que pode uma mulher fazer contra esse estado de representação??? Sua “alegria”, uma satisfação entre aspas, era mostrada a todos como se fosse verdadeira afirmação do prazer de viver. Em realidade traduzia um profundo vazio. Eu diria mesmo um intenso desespero. Silenciado.

Aceitou as regras do jogo de seu meio ambiental. E o jogo é jogado nos covis onde exerce a profissão de burocrata em “psycho motéis”. Sentia-se parte das taras sociais, as antigas e as novas. O marido a estuprava de forma sistemática. Talvez tenha confundido esses estupros com “fazer amor”. Ter relações sexuais nessas condições de dependência de surtos psicóticos de agressividade por parte do esposo, é sofrer abuso, quer se use ou não um eufemismo para definir as relações íntimas do casal.

Tal convivência gerou nela um medo cada vez mais acentuado de morrer num desses surtos psicóticos que empatizava do cônjuge. Vivia, no dia a dia da intimidade, a "síndrome de Estocolmo". Sob a ameaça de um crescente pavor de ficar sozinha, caso ele resolvesse fugir com a filha de sua proximidade. Ao mesmo tempo, ameaça abandoná-lo se não concedesse o divórcio. A síndrome de pânico foi-se afirmando como uma arma afiada, a ameaçar cortar o único elo com a vida que ainda valia o esforço de preservar: a filha. A filha que lhe dava a segurança de haver feito algo louvável.

Dedicando-se a ela sentia-se protegida, protegendo, amando e sendo amada. Útil a alguém, não apenas vivendo unicamente para manter o status quo de suas perversões. Quem as defenderia nessas condições de domínio do cônjuge desequilibrado, delinquente, polarizado pelo consumo contumaz de coca.

Como uma mulher em luta desesperada pela sobrevivência poderia conseguir sair fora do curral familiar, onde era tratada como uma vaca, e ao mesmo tempo ter uma vida intelectual, uma compreensão de valores mais altos da existência??? Como poderia preservar-se do assédio predador dos chefetes burocráticos, dependências mórbidas do emprego público??? Afeita a condicionamentos que a faziam nivelar-se a uma subordinação cultural de empregada doméstica. Uma subserviência de marafona ao dono da bagaceira.

Apesar de ganhar 10 vezes mais que uma criada, como poderia defender a educação da filha em condições de classe média brasileira, se não terminasse por entregar-se às pressões políticas e econômicas do emprego, rodar a bolsinha conforme a disposição de burocratas. Ceder-se a eles conforme o pacto tácito de estar sempre disponível quando precisamente solicitada. Afinal, ela era apenas uma droga a mais no consumo de drogas das gerais.

Bancar a Carmen Miranda, com o fruteiro na cabeça realçando todo tipo tropical de bananas. Tudo pela filhinha. Afinal, seu compromisso era com o sustento da casa. Algum tipo de delírio mental recorrente a fazia acreditar que seus hábitos libidinais poderiam ser diferentes dos de uma simples prostituta???

Uma mulher é uma mulher e precisa saber defender-se. Mesmo porque há a responsabilidade suplementar de estar criando outra, que também, numa sociedade machista, terá, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar os mesmos tipos de pressão, e talvez passar pelas mesmas situações de constrangimento profissional pelos quais ela passou. A filha também será mãe. E com certeza, as probabilidades de reproduzir o comportamento profissional e social da mãe não é menor do que  99,09%.

Do fundo do poço raso e cristalino de suas ilhargas, como um lobo colhido numa armadilha, sou prisioneiro de uma certa moral pessoal que o mundo dela acha que não vale nada. Mas que eu acredito ser parte importante do que vale preservar nessa vida. Ela, o túmulo de qualquer ideal mais alto, que valha o esforço pessoal de defender. Como cobrar dela um imaginário mais dotado de valores, se sua convivência como a sobrevivência mostrou, ao longo da vida, que tais valores não têm valor, no sentido de que não a ajudam em nada a sobreviver melhor. A pagar as contas.

Valores éticos não pagam as prestações do apartamento, nem as frutas do supermercado. Nem a mesada da filha, nem a educação, o shopping, a alimentação, as roupas, o entretenimento. Seu divertimento, em alguns fins de semana, era ir ao baile da música da moda, como qualquer doméstica de subúrbio dançarina de forró. A diferença era o salário de classe média alta. A mentalidade, a mesma da empregada doméstica, nivelada por baixo por uma cultura que sempre exigiu dela que alimentasse o perfil de meias verdades:

O sorriso aberto, surpreso consigo mesmo por ser capaz de sorrir. Uma angústia anímica imensa transparecia desses sorrisos sem querer sorrir. Carente, alto, afetado sorriso, de quem grita ao mundo que existe, está viva, produto do pânico anímico que se instalou no fundo do coração. Sorriso simulacro. Fantasia de uma alegria ausente.


Ela, o coração incapaz de pulsar segundo vigor moral mais consistente, com o qual não condiz a sociedade que frequenta. Apesar de aparentemente abastada, de mediana para média baixa, possuía as mesmas rotinas mentais das classes niveladas pela cultura dos sem educação. Um povo sem educação pertinente à criação de uma cultura sem consciência de cidadania. Um povo politicamente devastado.

Gostava dela, compreendia sua contradições, mas como justificá-la??? Ela vivia no mundo real, eu, em parte, sem querer abandonar a utopia, reivindicava de mim mesmo uma "Mínima Moralia". Não apenas uma moral de adorno. Ela, sempre submersa em vaidade, em bugigangas cosméticas, numa política pessoal de aparências. Eu, alimento-me persistentemente, de uma espiritualidade que rejeita entregar-se ao deboche de uma subcultura imposta por uma “elite”, entre aspas.

Ela, buscando doutorado na cultura nacional das aparências, que não mais consegue guardar um certo recato, decoro, decência. Num país governado por um presidente analfabeto. Ela se enfeitava tanto, parecia tão artificial como uma sala de baile decorada para uma festa, onde as pessoas vão se descontrair de suas mazelas, mas que, logo mais, terá a aparência e o desencanto de um ambiente desolado, desordenado, sujo, com o odor típico, saído da porta do banheiro entreaberta.

Talvez fosse exigir muito dela dedicar-se a algo mais que não fosse uma aposentadoria que permitisse afagar o rosto no travesseiro das rugas, com um sorriso cínico, satírico, amanhecido. Um sorriso despido da necessidade de transcender as verdades de uma sobrevivência (malograda), dedicada ao ideal do salário e da aposentadoria a qualquer preço. Uma existência sem a mínima inteligência emocional, sem a mais remota educação intelectual. Uma existência regida pelo medo. Muitos medos. Sem sequer a leitura de um livro a cada 365 dias.

Como poderia uma vida abnegada às mentiras rituais, saber fazer valer uma certa e insubstituível transcendência, essencial e invisível para os olhos??? A minha mulher não há de querer mostrar-se tão feliz da vida, tão banalizada por uma configuração artificial de mera exterioridade. Um pouco de espiritualidade, querida, na sua idade, em todas as idades, não vai mal. Ao contrário, dignifica.

Quem sabe seja muito tarde para plantar nela, em seu terreno mental transitório, nos invisíveis neurônios, sinapses e neurotransmissores de um cérebro simplório, vadio, uma semente consciente de si mesma. Uma planta plugada em algo mais que festividades semanais tipo rala-bojo, cujo adubo é a interdependência de humores muito fáceis , mas que poderiam ser uma ponte entre esse viver terrenal festivo e algum valor que ela pudesse afirmar para depois, para além, numa habitação alhures. Para ela inacreditável.

Quem sabe ela venha a intuir: se me perder, restará uma idosa infantilizada, usada e abusada, como sempre foi, por qualquer palerma da terceira, ou segunda idade que dela se aproxime. Sua sombra e a própria voz argêntea lhe tirará o sono. Não haverá Domingo para ela. Apenas a "Triste Bahia" de terreiro carnavalesco. Poderá ou não se  sentir a menos amada e solitária das criaturas. A mais gasta e sem serventia das crias de sua geração sem pai nem mãe. Descobrir-se tão vazia de sentido, a própria voz irritará os ouvidos. Será aquela que para ela mesma, confundiu conquistas femininas vitais com promiscuidade. E vadiagem.

Descobrirá que tudo nela era esmerado apenas na aparência. Que seu consumismo de patricinha, depois perua de butique de shopping, não deixou nenhuma marca, exceto nas caixas registradoras dos corações desafinados. E o ouro dos sentimentos que a faria a mais querida das mulheres, não passará de uma nuvem cuja forma se desfaz na memória, tão rapidamente, que, talvez, nem uma lágrima se permitirá descer pelas faces desprotegidas, onde a memória do tempo terá depositado a erosão de uma saudade e de um vazio impossível de preencher com a lembrança das vivências. Mórbidas.

Memória dos incidentes de uma vida que julgava, talvez ser, de alguma forma, boa de viver. Mas que, na realidade, tudo tão fútil e transitório, não terá passado de chuva de verão. E toda sua vida poderá ser resumida numa frase vã, tumular, de mausoléu. E só então ela saberá que teve a mais preciosa das dádivas em mãos, e em vão tentará criar uma fantasia, uma memória, para justificar essa insuportável e radical futilidade. Essa perda inominável e irreversível de um valor essencial. Que para ela permanecerá desconhecido.

E o sorriso sorrirá mais uma vez sem sentido toda vez que queira parecer simpática, e justificar a aparência dos gestos, a inteireza dos dentes. Vai por certo querer tirar de algum lugar, por alguma mágica do lembrar, alguma sensação de prazer que possa faze-la sentir-me melhor. Saberá que somente a morte poderá liberta-la dessa angústia supostamente incompreensível. E verá sem emoção pertinente, com tristeza nos olhos grandes (de uma mínima lágrima carente), o crepúsculo chegar e ir embora, sem intensidade, real ou aparente.

E sentirá, na espinha, um arrepio mortal, a companhia da aziaga. E a desejará, mas ela não virá tão cedo. Seus mais miseráveis segredos, sua mais guardada intimidade, ela saberá, afinal, que eram tão fugazes como enredos de telenovelas, ou as pantomimas do samba enredo da romaria dos mutilados em desfile numa escola de samba dançando sob o simulacro da alegria. Ela, que poderia ser, toda vida, todas as vidas, a estrela da vida inteira, terá escolhido a transitoriedade da fantasia, dos bastidores, a fútil imaterialidade do nada. Um sorvete que se dissolveu no pires de um dia para outro.

E o próprio brilho do astro será ofuscado pela aura negra da banalidade. E suas próprias confidências, dela para com ela, terão o sentido mesmo da diferença entre um amor escrito nas estrelas, e a intimidade de uma plêiade de burocratas barrigudos e sodomitas. Mas uma ninfa é uma ninfa, é uma ninfa, é uma ninfa.

Como uma personagem da literatura realista-naturalista, se verá finalmente como sempre terá sido: uma pequena burguesinha, com valores de aparência, tão decadentes como uma personagem de ficção, a fazer trottoir do tempo ferido pela revolução francesa. Pouco ciente de si, interagindo conforme as solicitações mais instintivas do meio ambiente, ela continuará a patinar no palco social para as mesmas plateias de teteias fúteis, rasas, vaporosas. E ninguém pôde ou poderá fazer nada por ela. Não haverá um gesto de carinho que a fará sentir-se melhor. Nem uma palavra. De afeto. De carinho.

Seu consolo será a empatia com as imagens da TV. Sua atenção, seu carinho reprimido, virá do mundo do faz-de-conta das personagens ilusórias, artificiais. Consolar-se-á olhando a paisagem desolada do interior vazio de seus melhores sentimentos inexistentes. Seu sorriso estridente e tão sem graça fará entristecer até seus mais distantes parentes.

Num torvelinho do vento outonal, ela se  açoitará ao ver as folhas das árvores no asfalto sob o carro estacionado na rua lá embaixo. Restará para ela dirigir a leviana e pueril massa corporal, aleatoriamente, pelas ruas e avenidas nuas da cidade deserta. E a paisagem será sempre indigesta. Do banco de seu carro buscará inutilmente mais uma vítima para sua sedução senil, há muito decadente. E o sorriso nunca mais mostrará os dentes. Após cair a ficha de sua condição existencial. Há muito exposta e evidente. Agora também para ela.

E será apenas uma extensão a mais do pânico geral da metrópole em crescimento vertical. As ruas e avenidas da cidade serão extensões de uma solitude interminável. A sensação de uma terra devastada, como na poesia de Eliot, ou o algum sentimento aleatório de delícia que confina com o pesadelo, como em Chesterton. E sentirá sempre presente em seu colo como um novelo de estimação, o frio de freezer da falta desesperada de um coração amável. Que não seja de máquina. Uma mente e um coração sem ternura.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 04/04/2010
Alterado em 13/12/2023
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