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CONTINUUM
CONTINUUM

Maíra, descalça, caminha sobre a areia úmida em direção à pousada. São três quilômetros. Sem pressa, em menos de uma hora chegará. Nove e trinta da manhã de um dia nublado.

Muitas coisas passam pela cabeça. O raciocínio ligeiro, como se quisesse sair das mandalas da subconsciência. A situação inusitada. Poderá solucionar essa coisa?

Trazê-la à paisagem visual da praia, decifrar o enigma. Certamente não é grave estar grávida. Por que se sente culpada. Tensa. Pressionada. Como Lucas aceitará isso??? Vai assumir??? Sair fora???

Dizer que deve abortar???? Esse negócio de parir é tão antigo como Eva. Muito mais arcaico ainda. Recusa fazer drama. Querendo ele ou não, a criança vai nascer. Após três meses de gestação, nem morta vai tirar.

Existe, vive, vai nascer e fazer nascer: essa a lei da vida. A praia deserta exceto pela conversa consigo mesma.

Só está na paisagem, até onde alcança olhar. A curiosidade de estar prenha. Ir até os nove meses. E depois saber como vai ficar. Se tiver de ficar sozinha sem apoio de ninguém...

Ainda assim. Mãe solteira é dose. Deixa estar. Sangrar. Criança não é brinquedo, desde cedo as exigências: chora, come, sorrir, conquista, suja fraldas, pode adoecer, gripar, sentir dor, vacinar no posto médico. Precisa de teto, educação, carinho, recursos para crescer. Vicejar. Ter força.

Ser mãe, quer, tem direito, faz parte da natureza, está curiosa. Quer saber como rola. Coisa incrível embarrigar. Ter na intimidade do corpo alguém estranho com quem vai conviver. Que espírito na criança vai-se aconchegar??? Um ser desconhecido, imprevisível. Vai desenvolver, ficar maior que ela. Sim, depois, por que antecipar??? Depois é depois. Medo da solidão.  Alguém para lhe acompanhar.

Ter com quem ficar, para quem mover as mãos num gesto de carinho. Aceitar-se melhor. Sentir-se menos só. Ter a quem se dá. Ceder. Doar-se. Pegar no pé. Aborrecer-se.

Fazer cafuné. Passar café. O depois sempre há de chegar. Amanhã, ninguém controla como as coisas ao certo vão ficar. Alguém para fazer companhia nessa viagem pelo mundo.  Estar ao lado, chamar-se, ou  não, Raimundo.

Estar dentro da vida. Quer alguém pra cuidar. Ligar-se. Amparar. Sente-se demasiada. Mente Sozinha. Coração solitário. A realidade da criança é tão mais forte que chega a se imaginar pegando em sua mão. Uma companhia, como vai ser??? Vai saber. Fazendo este mesmo percurso daqui a sete anos. Olha para ela, a filha, ao lado. Sorrir.

As nuvens apostam corrida. Os raios de sol surgem na memória daquele dia. Longínquo. Recordações. Fazendo cumprir a lei do eterno retorno das idas e vindas da memória. Não esquecidas. As coisas partem não se sabe ao certo para onde.

Quais lembranças ficarão enquanto existir esse memorial de imagens, esse sal. Olha a maresia. O branco das ondas. Os bancos de areia. A fermentação agitada da espuma.

As bolhas de sal pipocam na margem do grande oceano. Os passos aquecem os pensamentos. Balbucia lembranças sem achar ritmo na fala. A cadência do pensar é mais rápida. A boca quer falar mas não acompanha a cachoeira das metáforas na tela consciente da mente.

Maíra, essa extensão ao alcance da mão. Mãos dadas, no tempo da praia. Esses passos. Como se fosse ontem.

(At.: A ideia deste conto surgiu ao me lembrar dos tempos de estrada, quando me deparei com uma adolescente grávida. Ela caminhava entre dois lugares na região de São Pedro da Aldeia, interior fluminense. Segurava duas sacolas de pano pelas alças. Pareciam pesadas. Sugeri acompanhá-la, dividir o peso do fardo. Aceitou. O lugar ermo. Na conversa o volume não mais pesava. Caminhávamos na areia fina, de repente surge da vegetação, uma garota, sua filha, apesar da idade pouca da mãe. Seguimos a canção das ondas. A maresia em movimento. Envolvimento. A surpresa do desvendar a paisagem do lugar interno e externo. Descobrir o desconhecido descobrindo o desejo na paisagem. Na idade, acontecimento inusitado).
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 03/04/2010
Alterado em 30/10/2023
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