Textos

“O Crime Do Padre Amaro": O Filme
“Em sendo a prostituição uma tirania,
e o casamento uma imoralidade,
melhor abster-se de ambos.”
(A Educação Sentimental
Gustave Flaubert )


No início do filme, um assalto. A cidade de Leria estava entregue à violência e à impunidade. O assalto no ônibus era uma maneira dos marginais darem as “boas vindas” àquelas pessoas que chegavam à Leria. E dizerem que a cidade já tinha dono. Os assaltante não levaram a grana do padre Amaro. E este, ao ver um senhor de idade lamentar a perda de suas economias, pega um maço de notas e oferta-o ao idoso. Algum tempo depois é o mesmo homem que está à porta do hospital ao qual é levada Amélia, amante do padre Amaro, para fazer o aborto. Ele trabalha lá. E aconselha o padre a levar a namorada para outro lugar, desde que aquele não seria o mais adequado para ela. Ao dirigir-se a esse outro hospital, supostamente mais conveniente, Amélia falece da hemorragia.

Fica claro que o padre evitou, em primeira instância, o lugar mais adequado para fazer o aborto, desde que não queria expor-se enquanto o pai do embrião que ia ser abortado. A situação é semelhante àquela que João Gaspar Simões, em seu livro O Mistério da Poesia, verseja: “Uma vez satisfeitas as instâncias da carne, ou o orgulho pessoal, chega-se à saciedade”. Ele havia se fartado de Amélia.

Ela, Amélia, era um estorvo. Quem sabe até tenha facilitado as condições em que ocorreu a hemorragia e a morte dela. Afinal, ela estava sendo muito importuna com suas reivindicações de que continuassem juntos. Amélia morreu, após o que restava de seu amor-próprio, de sua castidade, terem morrido antes de sua morte física. Quanto à indicação do outro hospital pelo idoso que ele havia favorecido no ônibus, este dá a entender que está pagando a dívida ao indicar um hospital melhor, e ficar calado quanto à culpa do padre.

A velha Dionísia é uma beata hipócrita. Vive de disse-me-disses muito pouco cristãos. Rouba freqüentemente da bandeja de doações da Igreja. Enquanto põe uma moeda de mínimo valor, retira uma nota que vale uma quantia mais alta. Ela despoja a Igreja de suas esmolas, no entanto aparece como uma beata dedicada à prática de orações. Rouba as hóstias para dá de comer a seus gatos.

Rubem é o jornalista apaixonado por Amélia. Ele é ateu. A paixão de Rubem por Amélia é um tanto quanto platônica. Ele não consegue realizar o desejo de posse do corpo dela. Apesar de ser ateu, o forte dele não é o controle da matéria. Ele supostamente não crê em Deus, no entanto, não a toma para si. Não se apossa de seus sentidos, não submete seu corpo à sua vontade. Jornalista, ele sabe muito sobre todos, mas não sabe conquistar a posse daquela que é sua namorada. Quem vai viver a afirmação da luxúria dela, é o padre Amaro.


Em certo momento padre Amaro recebe dinheiro para absolver os pecados de uma ilustre personagem da sociedade. A mulher rica, mulher do prefeito, precisava aliviar suas culpas. Tanto no confessionário como na sacristia. O marido, um doador para o hospital da paróquia. A riqueza e o orgulho, disfarçado em caridade da personagem, convivem com a decadência moral dos religiosos. Eles coexistem melhor com o ambiente festivo das festas na casa de um “barão” do narcotráfico, do que com a miséria e a pobreza da gente do lugar.

Ao aceitar as doações supostamente piedosas da mulher, o padre Amaro fica atrelado à outras solicitações do mundo luxurioso, e nada piedoso, dos que promovem o ofertório de donativos em dinheiro para a construção do hospital paroquial.

Há um conluio, uma dependência, entre a Igreja e o crime organizado do lugar no interior de Portugal, Leiria. O desenvolvimento material, e supostamente espiritual, que a Igreja pretende promover, passa pela aceitação de uma cumplicidade explícita com aqueles que investem no inimigo dos princípios morais da religião. O heroísmo camoniano que caracterizaria o povo português, é refutado, desde que não há nele a coragem nem a disposição para a luta. Os inimigos da religião são exatamente aqueles que financiam a narcoditadura vigente na cidade.

O filme de Carlos Carrera é uma atualização do livro de Eça de Queiroz. A forma literária do romantismo não é mais o padrão utilizado para desenvolver a dramaticidade da história. Não há mais a presença do sentimentalismo, da penitência, do remorso e do “happy end” romântico. A sociedade não mais está submersa em procedimentos facilmente classificados pela afetação simplista, maniqueísta, dos bons contra os maus. Todos estão submersos na mesma patologia social. Todos são igualmente culpados.

O romantismo apregoa as idéias de beleza, de amor, fé, entre outras. A Igreja é tida como instituição religiosa, e a hierarquia deve ser rigorosamente respeitada. No filme destaca-se a figura do padre Natálio. Ele dissipa essa obediência. O padre Natálio é o único dos presbíteros da paróquia que segue os preceitos dos Evangelhos. O bispo, por isso mesmo, quer excomungá-lo. Ele vive com os pobres seus dramas, envolve-se com os problemas deles, tenta solucioná-los na simplicidade da convivência cotidiana. Afirma a fé no trabalho, não aceita donativos das madames da sociedade, nem se permite cooptar pelos cúmplices religiosos da narcoditadura de Leria.

Padre Natálio convida as pessoas a se elevarem, conduzidas pela religião cristã a uma forma superior de humanidade e cultura. Ele não se conduz como os outros sacerdotes, que agem sem respeitar os princípios que fizeram da Igreja católica a representante de Cristo de Terra. Ao se aliarem à narcoditadura do lugar, os outros padres saqueiam e arruínam a esperança social dos paroquianos. Como dizia Simeão, o Novo Teólogo: “Se não conheces a ti mesmo e ao Criador nesta vida, também não o conhecerás na outra”.

A Igreja é mostrada como uma instituição que visa o lucro, como qualquer outra empresa capitalista, com a diferença de que seu fundador original se chamava Jesus Cristo. Acontece que Cristo dizia: “Meu reino não é deste mundo”. E a empresa Igreja, não mais romantizada enquanto fundação que investe na transcendência espiritual, é mostrada como uma firma que é associada aos que investem na prostituição, na dependência aos narcóticos, e na degradação dos costumes.

O padre Natálio, por não submeter-se aos desmando da hierarquia eclesiástica, sofre uma série de ameaças de punição. Por não dobrar-se às pressões das autoridades, estas resolvem puni-lo com uma sentença “ad divinus”, com a excomunhão. Os outros padres usavam a possibilidade de espiritualidade, assim como a própria cultura, para alimentar as águas do moinho de Narciso.

Eles plantavam a semente da intolerância, da violência e do fanatismo social. Aceitavam a malignidade perversa do narcotráfico, minando o exercício das atividades religiosas, expondo a sociedade ao domínio de uma administração política, sócio-econômica, dissimulada numa suposta retidão de intenções: a exemplo da aceitação das doações para a construção do hospital da paróquia.

Em nome da Palavra, das Escrituras, os padres permitiam a cooptação dos interesses da paróquia pelo crime organizado. Ele infiltrava-se através da “caridade” da mulher do prefeito, das doações para construção do hospital. Desta forma a narcoditadura esvaziava a intencionalidade do cristianismo, corrompendo as mentes e os corações daqueles que deveriam falar e fazer em nome de Cristo, não em nome de uma vinculação com assassinos, através da qual ficava a Igreja empenhada moralmente à “caridade”, entre aspas, de seus “doadores”.

Enquanto isso os pobres e os oprimidos ficavam por conta do trabalho do padre Natálio. Em suas atividades cristãs, legítimas e úteis na administração de uma coletividade pelo exemplo, através do ensino, do trabalho, e não das motivações tipo donativos de criminosos, na deformação dos ensinamentos do Cristo e de seus apóstolos.

Pe. Natálio era um pe. Diferente. Buscava fazer valer os direitos dos pobres estando próximo a eles, ouvir suas queixas, estar vivendo suas necessidades e laborando com eles no sentido de superá-las. Ele se guiava pelo ensinamento dos apóstolos, fiéis à comunhão fraterna, à divisão do pão, às orações e ao bem comum, na alegria e na simplicidade do coração (At 2,42.44.46). A intolerância e o fanatismo era a marca registrada dos que seguiam, às cegas, os desmandos da hierarquia da Igreja. Padre Natálio tinha mesmo de ser expulso pela malignidade perversa e as motivações inconscientes de seus superiores da “ordem”.

Padre Amaro, não é mais o sacerdote romantizado. Ele, enquanto personagem do realismo, em conversa com o padre Natálio, pergunta o que este acha do abortamento.

— Que acha do aborto?

A resposta de Natálio não se faz esperar, não sem uma tonalidade de ironia na voz:

— Em alguns casos é preciso considerar, não?

A distorção dos supostos valores clericais pelo padre Amaro é ampla, total e irrestrita. Ele quebra os votos do celibato, se alia ao narcotráfico, aceita deste as doações em dinheiro, através da vigarista endinheirada, convence a amante a fazer o aborto num lugar sem nenhuma garantia de salubridade, se alia àqueles que roubam da Igreja sua função espiritual e, por isso mesmo, é o “favorito” do bispo, e paparicado pelos sacerdotes da “Santa Madre” do lugar. Ele está destituído de compaixão com os pobres. O motorista, mecânico e sacristão, pai da doente mental Getsêmani, é despedido por ele, quando o padre fica sabendo que ele havia falado dos encontros do padre Amaro com Amélia no quarto vizinho ao da filha, ao padre Benito, amante de Sanjuanera.

O padre Amaro havia criado as condições de se relacionar sexualmente com ela, Amélia, ao inventar uma situação de aproximação, contando a mentira de que Amélia ia ensinar catecismo à Getsêmani. Queria apenas levá-la para o quarto ao lado do da enferma, para submergirem-se numa atmosfera de luxúria.

Ao se livrar de Amélia, ele “mata dois coelhos com uma paulada”. Amélia morre de uma hemorragia ao fazer o aborto, e a criança em formação também morre. Criminoso pensado, ele se livra da evidência de seus crimes ao livrar-se de Amélia e do que seria seu futuro filho.

Já o padre Natálio afirma os ideais dos cristianismo. É um “romântico”. Ao viver segundos os preceitos da doutrina cristã originada nas palavras e no exemplo do Cristo, ele simplesmente expõe a Igreja, e seus asseclas da narcoditadura de Leria, ao ridículo. É considerado réprobo, condenado, maldito: anátema. E expulso da Igreja.

As “mazelas sociais” criticadas por Eça de Queiroz. No livro que originou o filme há uma crítica acerba, definitiva, dessas negociações e do papel do clero na sociedade portuguesa. O final do romance rasga o véu de Maya que encobre as mazelas do Vaticano. Amaro passeia pelas ruas de Lisboa em companhia de outro religioso e de um conde. Este, elogia, num discurso supostamente solene, os procedimentos piedosos dos padres. Os três estão conversando sob a sombra de uma estátua de Camões.


Faço um paralelo entre os finais de alguns romances românticos, comparando-os com o final de “O crime do padre Amaro”. Que final de um romance romântico poderia ser tão avassalador na crítica a suas personagens, tal como o anti-“happy-end” de “O crime do padre Amaro”? Na realidade não é um crime, são vários.

No final de Iracema fica evidenciado o sentimentalismo xarope e a “força do amor”.

No final de Senhora, evidencia-se uma crítica social rara, até então, na obra de José de Alencar: há a presença de elementos estranhos à relação amorosa convencional. O dinheiro é visto como o veículo motor do relacionamento. Há uma crítica social ao casamento por obrigação. A presença do orgulho e da vaidade permeando a relação dos cônjuges.

Em Memórias de um sargento de milícias a figura do protagonista é igualmente afirmada como a de um “anti-herói”. Apesar de ser uma obra de veia literária cômica, esacrita numa tonalidade bem humorada, o romance nega a idealização romantizada de suas personagens. Poupa-se de refugiar-se no maniquísmo, ao embaralhar as ações sem classificá-las em boas ou más, relativizando qualquer código de ética que regulamentaria as ações das pessoas em pauta. Há, entretanto, a presença do sentimentalismo, do final feliz, da vitória do amor, características das narrativas românticas.

Em A Moreninha, Augusto fica extasiado com sua Carolina. Passam a impressão de que sentir-se-iam felizes ao cederem logo ao impulso para ser domesticados pelas convenções sociais do casamento, como se fossem cãezinhos de estimação das convenções vigentes. Não podem suportar sua própria dor, sozinhos, e mergulham de cabeça na possibilidade romantizada do matrimônio, como crianças ansiosas por brincar de médico com uma mesma paciente. Ela, com o mesmo doutor.

Na peça O Demônio Familiar (dramaturgia), o criado Pedro realiza seu sonho de ser cocheiro, e não é punido, muito pelo contrário, por suas audaciosas intervenções na vida de seus patrões. Todos eles muito bonzinhos e compreensivos com as “aprontações” do escravo.

Em Lucíola, há uma espécie de “realismo romântico” na narrativa. José de Alencar expõe, não tão romanticamente, as agruras de uma mulher sexualmente explorada em suas necessidades básicas de sobrevivência, por uma quadrilha de amigos. O final não é tão romântico como outros romances dessa escola. Lucíola prenunciava o Realismo.


Eça de Queiroz define o clero astucioso, venal, covarde, subserviente, cínico e canalha. Os padres não hesitam em transgredir todos as regras que regulamentam o direito eclesiástico, quando estas se contrapõem ao interesse particular. Exceção, para confirmar a regra, o padre Natálio. Ele professa os princípios da “Teologia da Libertarção”, de uma Igreja que age visando afirmar as relações de promoção do ser humano, considerando ele, ser humano, ter sido gerado à imagem e semelhança do Criador.

Das críticas feitas ao casamento, destacam-se: O casamento enclausura. As pessoas tementes de viverem sozinhas, de não serem consideradas em sua sã individualidade, buscam o matrimônio para fugir de um compromisso mais responsável com seu desenvolvimento pessoal. E se prendem à convenção matrimonial por oportunismo, para usufruírem supostas vantagens, e viverem da exploração das fraquezas do outro.

Conhecemos a “canção da Amélia”, a que era mulher de verdade. Podemos apontar alguma relação, mesmo às avessas, com a personagem do livro? A Amélia do livro visa apenas o seu lado nas relações de conveniência. Apaixona-se pelo padre Amaro, e não hesita em abandonar o namorado para viver a satisfação, com o sacerdote, de seu fogo uterino. Para ficar com ele, ela não hesitaria em afirmar-se a Amélia da canção popular. Não ficam juntos porque o padre rejeita a possibilidade, em nome da promoção pessoal dentro da hierarquia da Igreja. Como “a mulher do padre”, ela não seria, socialmente, nem mais nem menos, do que uma Amélia à moda da música popular.

Que contrastes podemos apontar entre as personagens românticas e a figura da doente mental no livro (filme)? As personagens romantizadas tendem a ser a representação da beleza, da inteligência, da força, da pureza, do sentimento, dotadas de emoções altruístas. Getsêmani não se encaixa em nenhuma atribuição ou prerrogativa das personagens romantizadas, em nenhum dos estereótipos (clichês), da escola do Romantismo.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 03/04/2010
Alterado em 03/04/2010


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