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Holocausto Nunca Mais —PsyCity II (Romance Neo-Pós-Moderno)
Movido por dissoluta libido, lança os lábios em direção aos grandes lábios. Após puxar para os pés da jovem a calcinha branca com motivos florais desenhados na superfície transparente, a camisola decai solta sob o corpo. Começa a lamber a parte externa adentrando aos poucos a vulva semi-aberta da jovem. A razão nega a se interpor ao desejo irracional.

Leo “tomou a nuvem por Juno”. Na insensatez dos sentidos, confunde os sussurros plangentes que se fazem ouvir no quarto, provenientes de um murmurar cavernoso, como se originado de cânticos coletivos, monacais, um incentivo à volúpia. Para ele não passavam de murmúrios de prazer.

Se os sentidos estivessem isentos de excitação, poderia reconhecer nessas tonalidades melancólicas e longínquas, o mugir fanhoso de um rebanho de ruminantes, tendo por leitmotiv os badalos de um pêndulo gótico, a marcar, lânguido, a passagem da meia-noite numa remota igrejinha alpina. Como se um coro de anjos houvesse resolvido ampará-la, sentiu a presença de uma energia amorosa e fluida, vinda, não sabe como, de uma grande distância, para, de alguma forma impedir ou castigar o responsável pelo delito torpe. Mas Leo não tinha atinado para as advertências. Tudo que desejava: usufruir a beleza da juventude de Sabrina, e sair incólume do incesto.

No melhor do bem-bom, sente a pressão inexorável, austera, o implacável fechar de coxas ao redor do pescoço. Começa a debater-se como um bailarino tresloucado a tentar em vão equilibrar-se na ponta dos pés para não perder contato com o chão. A ponta dos dedos dentro do sapato distancia-se aos poucos do piso do quarto. Já não consegue contato com ele, as pernas se debatem no vazio.

A cabeça roça a luminosidade do lustre no teto. Agarra-se em desespero de causa às coxas da filha, mas o diáfano tecido da camisola não permite a aderência dos dedos. As mãos escorregam. Ele tenta falar, gritar, se desculpar, argumentar, pedir socorro. A força estranha não quer saber de diálogo. O corpo de Sabrina levita em direção ao pequeno terraço do quarto, no nono andar do edifício.

Nos olhos esbugalhados de Leandro, uma esperança: as janelas de vidro, acesso ao terraço, estão fechadas. Dura pouca a expectativa de permanecer, ainda que incômodamente, no interior do ambiente. As janelas da sacada correm através dos trilhos para os lados, como se alguém as estivesse abrindo. Escancaram-se à esquerda e à direita. Na sala penetra um vento úmido e frio.

Milhares de pingos da garoa gelada adentram o quarto, umedecem os lindos cabelos castanhos, longos e soltos, da jovem. Suspensos na vertical do couro cabeludo, fazem-se esvoaçar lindamente, como se personagem de uma pintura surrealista de Ernst Fisher, Salvador Dali, De Chirico, ou de um desenho de Peticov ou de André Carneiro.

O rosto de Leo, colado aos pentelhos de Sabrina, começa a ficar afogueado ao roçar as proximidades da xereca. Ele move o pescoço para os lados, quer ver a progressão inusitada do estranho evento. O corpo dela, na horizontal, passa quase atritando com a parte superior da meia-lua da janela de formação convexa, arredondada, que separa o interior côncavo e arqueado do vazio. Os vidros das janelas adjacentes estouram.

Lascas rasgam, em cortes profundos, a coxa direita, a face esquerda, as costas e a testa da garota. Ele olha admirado os ferimentos fecharem-se, a pele dela voltando ao normal. Os cortes superficiais em seus próprios braços e na testa continuam abertos. Atrita as pernas, os pés debatem-se inutilmente. No peitoril do terraço, as pontas dos sapatos tentam em vão prender-se nele e impedir que o corpo fique suspenso no espaço que separa da calçada.

A enfermeira de uma senhora idosa, vizinha ao prédio em frente, distraída, está a olhar para algum lugar à esquerda. O velho puxa insistentemente a manga comprida do avental branco da mulher na altura do braço. A princípio ela ignora e afasta-se. Logo depois, virando o rosto para a direita, não consegue sustar o espasmo de espanto ao deparar-se, pasma, hirta, boquiaberta, com o  espetáculo fantástico:

Os membros de Leandro a debaterem-se desesperadamente dessa altura fatal, na iminência de despencarem. O corpo preso pela cabeça entre as coxas de Sabrina, luta, patético, em extrema aflição, para não desabar da grande altura. As mãos buscam firmarem-se, ora na ilharga esquerda, ora na direita. Mas o baixo-ventre da moça não oferece nenhum ponto de apoio adequado. Dá graças à pressão das coxas dela que o mantém suspenso.

Um senhor idoso e o rapaz próximo, seu neto, provavelmente estão absorvidos pelo inusitado do acontecimento. Do apartamento em frente, observam a cena. O homem velho recua um passo, a testa sobressaltada, os músculos contraíram, os olhos atônitos, pupilas fixas e dilatadas. As mãos do jovem desprendem-se do parapeito, como se temendo a altura até então subestimada, retrocede dois passos. A enfermeira, levando as mãos ao rosto, pasma-se. Inquieta, ajoelha, volta a apoiar as mãos no peitoril.

O paciente da cadeira de rodas mantém os olhos esbugalhados na direção do evento, numa atitude de quem está possuído de uma indizível curiosidade e ao mesmo tempo tentando esconder-se dela. Apavorados, aos poucos, nem sentem que recuam para dentro da sala, apoiando-se nas cortinas. A brisa molhada do entardecer atinge-os, e os torna mais vulneráveis a essas absurdidades surreais, inacreditáveis.

Trêmula, a mulher persigna-se, enquanto tenta balbuciar a fórmula litúrgica: “Pelo sinal da Santa Cruz, livrai-nos Deus, Nosso Senhor, dos nossos inimigos”. A seguir entra na sala onde o paciente havia se estatelado. Tenta ajudá-lo a erguer-se, mas não pode fazer nada, exceto ligar para os paramédicos da UTI do plano de saúde. Está em curso um ataque cardíaco.

Hesitante ela faz um chamado de urgência, mas as palavras mal conseguem ser pronunciadas. Ao desligar o vídeofone, olha para fora, certifica-se de que, realmente, a imagem surreal continua lá, onde não deveria estar. Sim, essa coisa fere o bom senso, as regras básicas da lógica e da razão: prenuncia algum outro acontecimento estranho e trágico.

A enfermeira-chefe do Heart Point liga de volta, após anotar a sequência numérica do vídeofone através de um identificador de chamadas. A mulher, à meia voz, atende o vídeofone e suplica: “Urgente, depressa, por favor”: as palavras não saem corretamente da boca. Ela gagueja outra vez os apelos de maneira teimosa. Do outro lado da linha uma ambulância especialmente equipada é acionada logo, para atender um chamado tipo “Código Cacau”: urgência máxima. As sirenes são ligadas em direção ao endereço.

Ao sentir as coxas de Sabrina entreabrir-se mais, a superfície molhada do peignoir rasga-se. Ele fica pendente por rápidos momentos. Até as últimas fibras diáfanas da camisola romperem-se por inteiro. Os membros aflitos debatem-se em desespero. Ele berra rumo as pontas afiadas do gradeado de proteção. O baque surdo próximo a um casal de inúteens que estavam sentados num banco a namorar.

O corpo cai a poucos centímetros do casal. Assustados, interrompem um chupão de língua. A agitação dos músculos, as contrações involuntárias do corpo não cessam logo. Súbito, parece, por momentos, imobilizar-se no piso do pátio. O zelador liga para a “justa”. Os tremores continuam até uma ambulância chegar, estacionar em frente. Em poucos minutos Leo é conduzido ao necrotério.

“INIMIGOS
INVISÍVEIS”

Ao caminhar do escritório ao estacionamento, Hélio sente que já não pertence por inteiro a esse mundo. Deve estar realmente infectado pelo H3V ou, pior, por uma de suas malditas variantes. Um dos pés pisa na calçada da rua e o outro no barro turvo da cova. Os transeuntes passam ao redor, mais longe que próximos dele. A sensação esquisita: nem aqui nem além. Como será do outro lado? Haverá mesmo outra dimensão? Sente o corpo a meio caminho dos vermes.

A alma, se existe, vai estar aonde, como? As percepções reduzidas a quê? Se um vírus tem esse poder, Deus também é um vírus? Depois de passar dessa para a melhor, serei também um microrganismo invisível? Ou servirei, apenas e suficientemente, à mesa farta do corpo inerte, banquete dos tapurus?

As indagações do advogado multiplicam-se num contraditório de sensações. Pode ser que não seja hospedeiro, mas, se não, por que os médicos solicitariam outro exame não fosse para confirmar o resultado positivo do anterior? Uma simples macromolécula, invisível a olho nu, tem poder para despachar milhares de seres humanos para nenhures, milhões.

Hélio especula de si para consigo sobre a gênese do H3V e as temíveis variantes. Acredita ser o vírus extraterreno. Como pode ser terrestre, se causa tamanho estrago, engana e aniquila as defesas normais do corpo humano? Se alguém ou um grupo político realmente zelasse pelo futuro da humanidade, o antídoto deveria ter sido pesquisado e descoberto, logo no primeiro ano da manifestação viral. Hélio balbucia frases, numa tentativa para manter-se atualizado na vigília à saúde:

Da primeira vítima identificada na década de cinquenta, muito tempo passou. O registro mais antigo de um caso de Aids, de 1959: um homem de etnia banto, em Leopoldville, atual Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, ex-Zaire.

Mas os cientistas, os políticos, os militares, estão ocupados com verbas para pousar em Marte. Com sondas em direção a Saturno. No momento, toda a água potável da Terra não chega a 1% da água doce disponível...Mas os cientistas e os políticos estão querendo colonizar outros planetas. Se os EUA são mesmo uma democracia, aonde está o plebiscito que autorizou o uso dessas verbas? Ele permanece a especular com seu Eu interior, subjetivamente:

Talvez a Aids tenha sido plantada por inteligências de fora, com a finalidade de diminuir a quantidade de habitantes, para que a Terra possa prosseguir habitável no 3ª Milênio. Hélio segue nessa mórbida autopersuasão: Alguém está sabendo que precisa fazer alguma coisa, ou este planetinha estará, se administrado por terrestres, em vias de se transformar num pasto de moscas.

Está nítido, ele é hospedeiro do H3V. E do ponto de vista do vírus ? Essa coisa a ganhar espaço em suas entranhas, a contaminar e multiplicar-se no sangue, nas células, a infestar corpo e mente, um pouco mais, a todo inevitável instante de medo, angústia em cada palavra, ação, pensamento:

Está aqui comigo, vivendo de minhas células, de meus fluidos, compartilha minhas percepções. Existe comigo. Talvez seja melhor assim. A velhice é uma humilhação das células. Há males que vêm para bem.

Divide comigo o ar que respiro, os alimentos que ingiro. Não é animal, vegetal ou mineral. Talvez seja uma maneira, dentre outras, de algum ser superior, sem conflito, ir retirando aos poucos a raça humana da Terra para que uma outra espécie venha habitá-la. Talvez insetos... Vai saber. As especulações terminam ao avistar a filha.

Carla o espera. Na entrada da garagem, cumprimenta:

— Tudo bem, filha?

— Sim, você está bem, pai? Entram no carro, posicionam a fivela na extremidade fixa dos cintos de segurança. O trânsito está “normal”, ou seja: em transe. Os carros avançam aos poucos, como se aprendendo a fazer rodar os pneus. Os motoristas demoram meia hora para vencer um único meio quilômetro em direção às residências. O de Carla e os outros 10,9 milhões de carros nas ruas e avenidas de Sampa.

Nada está bem, por que perguntar? Hipocrisia: Perguntar se tudo está bem quando tudo está obviamente mal. Esses pensamentos outra vez. Serão influências do vírus ? O farol aberto no verde, mas os carros permanecem parados. Um e outro buzinam nos ouvidos saturados de poluição sonora. O celular contribui com uma sonoridade a princípio tímida, que logo se torna insuportável pela repetição. É desligado.

Em poucos minutos a quantidade de queixas sonoras aumenta. Até que, gradativamente, a poluição auditiva ganha de vez o ar. Os ouvidos doem, as cabeças fervem, os palavrões fluem, a princípio, apenas para dentro, numa implosão do protesto coletivo. Das entranhas dos ressentimentos, as agressões pipocam guturais. Uma aqui, outra ali, garganta abaixo, garganta afora, somatiza-se a inquietação coletiva.

Lábios silenciosos, as buzinas ferem os tímpanos. Na tela colorida da telepublish multimídia, da esquina, o grande painel luminoso mostra as figuras risonhas, supostamente simpáticas, de um banqueiro. Elas se sucedem, a prometer todas as benesses do paraíso perdido para quem abrir uma conta no “Banco que realiza os sonhos. Os sonhos de felicidade de todos os seus correntistas”.

Pai e filha, outros milhares de leitores de jornais, sabem, via reportagens da imprensa escrita, que o banqueiro da propaganda está investindo na imagem institucional, arranhada com o novo escândalo da venda irregular de títulos públicos. A CPI não puniu uma única pessoa física dentre os mandantes. Ao contrário, o “chefe dos chefes” do escândalo ficou mais forte, candidatou-se ao desgoverno do Estado, com a conivência do Legislativo benevolente, do Judiciário complacente e do Executivo incompetente.

Carla e o pai leram os jornais do dia. Eles noticiaram: “O  Presidente recebeu, por solicitação pessoal, o candidato mais sub-judice que São Paulo já teve”. Noticiaram também a opinião do deputado Inocêncio Pefelia: “O Congresso está cheio de esqueletos nos armários”. Não se sabe ao certo se estava referindo-se aos desafetos assassinados da bancada de parlamentares ruralistas do Congresso.

Enquanto o trânsito permanece inerte, Carla pensa: Esse sujeito devia estar na cadeia, mas está aí, ampliado, confiante, colorido. Zombando das instituições, em centenas de outdoors e painéis, na Paulista, na Consolação, na Henrique Schaumann, na Av. Brasil, nos shoppings centeres, nas revistas, nos jornais, nos cinemas, nas emissoras de rádio e na tvvisão.

Carla desperta destas conjeturas, assustando-se com sucessivas trombadas no espelho retrovisor. Ele fica avariado pelas batidas dos guidons de motos yuppies e de boys motorizados. As motocicletas continuam colidindo nas laterais dos carros. Os motoqueiros apressam-se em seguir adiante, como se nada tivesse acontecido. A estridente sirene de uma ambulância força passagem entreveículos, outra, a do corpo de bombeiros, em um minuto a substitui.

Outros dois carros do corpo de bombeiros descem a pista do lado oposto da Avenida Paulista, abrindo passagem em direção ao bairro do Paraíso. As diferentes vibrações sonoras das sirenas policiais se misturam à poluição das buzinas, irritam ainda mais a membrana interna dos ouvidos. Os motoristas comprimem os carros para os lados, obtêm espaço para a ambulância, as viaturas, e os bombeiros passarem.

A poucos metros de Carla e Hélio, um carro bate no pára-choque traseiro de outro. O motorista da frente, irritado, começa a praguejar, enquanto o outro responde as agressões aos berros. Um deles saca a arma e atira seguidas vezes na direção do pára-brisa adversário. Os tiros estilhaçam o vidro, ouve-se o grito de uma pessoa atingida por um balaço. Outro motorista, próximo, liga, no celular, para a polícia.

Em quatro minutos uma viatura abre caminho em meio ao engarrafamento. Alarma estridente, aberrações sonoras em direção ao sinistro. A sirena de outra ambulância reforça os ruídos da poluição auditiva. Os tímpanos sobrecarregados, ouvem os berrantes das viaturas pedindo passagem para outro paciente cardíaco com urgência de chegar a UTI mais próxima. Carla sente os ouvidos sangrarem enquanto olha o motorista agressor, ainda empunhando uma pistola calibre 45, tentar fugir para não ser preso em flagrante.

As crianças nos carros estão por demais quietas, concentradas. A mocidade de Carla, ao lado do pai, está em transe. Olhos fechados, rosto inexpressivo. Talvez esteja a acontecer um contato inconsciente entre mentes infantis e juvenis, ou entre todas as mentes afeitas a uma certa onda de vibração psi. O certo é que, pela primeira vez na vida, muitos desses jovens não estão sentindo-se escravizados e inúteens.

Um contato psi coletivo, secreto, inusitado, está em andamento. Alguns adultos praguejam e buscam acalmarem-se ouvindo os Cds e as fitas, os vidros dos carros levantados, o ar refrigerado ligado.

Os mais jovens, como que indiferentes à inadequada realidade perceptiva dos que atingiram a idade vigorosa e, presume-se, o privilégio do uso da razão, estão em outro nível de vibração, adentrados num universo mental paralelo. Uma sonoridade inusitada permeia os níveis mais profundos das mentes. Um timbre de acústica imperceptível, suave e harmonioso, possivelmente acessível apenas às crianças e aos inúteens, se faz presente. A intensidade da ressonância influi no sistema nervoso central de algumas pessoas de idade intermediária.

Carla, de olhos fechados, fixa o olhar interior no atirador fugitivo. Para ela é como se o criminoso estivesse num campo de força dentro do qual ela tem condições de fazer valer a vontade. O asfalto falta sob os pés do criminoso. Outra vez ele tenta equilibrar-se e sair correndo, mas os sapatos não aderem ao solo. O corpo curva-se em direção ao chão, ele protege-se da queda frontal com as mãos, para logo descobrir, estupefato, que está flutuando a poucos centímetros do asfalto. É um acontecimento tão fantástico, que outras pessoas que estão a observá-lo nem notam.

O cara não sabe ao certo o que está acontecendo. Mesmo achando muito estranho, supersticioso, indaga-se: Talvez algum tipo de energia da pessoa que acertei com os tiros esteja a impedir-me a fuga. A tentativa repete-se outras vezes com o mesmo resultado inútil, até que um policial pega a arma e o conduz ao calçadão onde é revistado. Pernas abertas e mãos estendidas na vertical da parede. O prisioneiro é algemado e conduzido à viatura estacionada sobre a calçada. Carla sente a incrível sensação de ver tudo sem precisar abrir os olhos.

Dentro de um carro Ford ultraracing, uma senhora reclama do trânsito cada vez pior. Olha para o menino ao lado, superconcentrado, olhos fechados como se em transe. Ela apenas intui, sem admitir racionalmente, que ele está somando forças, provocando os eventos, de alguma forma fazendo parte deles. A mulher começa a sacudir o braço do garoto e a chamá-lo:

— Laércio, queridinho, fale comigo, vai, pára de fingir que está dormindo. Fica esperto que eu te levo ao McDonald's.

Neste momento o capô do carro começa a vibrar, ameaçando desprender-se da parte frontal, a partir de uma força que ameaça se transformar em violência generalizada. Uma espécie de névoa impede a visualização através do vidro do pára-brisa. A mulher grita, berra, entra em pânico.

Em seu histriônico desassossego, imagina estar num pesadelo. O traseiro do filho flutua a quinze centímetros acima do banco de passageiro. Ela pressiona os joelhos da criança para baixo na tentativa de fazê-lo voltar à posição normal. Não consegue. Fica ainda mais histérica e, rápida, abre a porta, sai do veículo aos brados, no momento em que o capô faz ranger as dobradiças, impulsionando-se para o alto com vigor extraordinário, a desafiar a força da gravidade.

O capuz de outro carro, impelido por uma energia física semelhante e sobre-humana, voa sobre sua cabeça, forçando-a a voltar para a proteção "uterina" dessa sua extensão, desse deus globalizado, o automóvel. Ela acompanha a trajetória de outro capô que também escapuliu da estrutura mecânica de outro carro, entortando-se com estardalhaço frente ao pára-brisa de um veículo próximo. Alguns estilhaços do vidro frontal a atingem. Ela está a apenas cinco metros. Apressada, apavorada, volta, abre a porta, e senta-se outra vez no banco do motorista.

— Está possessa. Esta avenida está endemoninhada. Esta cidade está enfurecida. Acorde Laercinho, filhinho. Pelo amor de Deus, acorde. Fale com a mãe. A mamãe te ama filhinho, fale comigo, agora, prometo que te compro aquele nike novo.

Em outro carro, outra mãezinha promete à filha: “Meu bem, pare com isso e mamãe te dá aquele conjunto recém lançado da Nikeplus.” Lançamento novo. Aquele que você viu na tv.

Logo após ganhar outro absurdo e inexplicável impulso para o alto, como se fosse levantar vôo e levar o carro na vertical consigo, a parte anterior de uma camioneta Cherokee 2035, cabine dupla, é suspensa. Os faróis acesos do veículo apontados em direção às nuvens. Parece querer acelerar ruma a elas, o capô projetando-se para o alto.

Quando o capuz do carro, de volta ao chão, impacta no asfalto da avenida, a água transborda do radiador em jatos quentes que se projetam à distância, provocando reações extravagantes e barulhentas do motor. Ao voltar à posição original, as rodas mais se pareciam as superfícies elásticas de um iô-iô gigante. A visão é absolutamente impressionante. Por fim pára, ao bater as rodas do lado direito no teto de outro automóvel e virar, ficando com as quatro rodas para cima, capô com capô, sobre o Vectros 8 ao lado.

Pessoas que apenas observam ficam cada vez mais assustadas. A coisa acontece com outros automóveis, em breve poderá acontecer também com elas. Um motoqueiro surpreende-se ao cair da moto sobre o teto de uma banca de revistas, enquanto a motocicleta projeta-se para dentro de um basculante semi-aberto de vidro fumê, no segundo andar de um prédio de escritórios.

O cantor e apresentador João Grow, ao lado da Lila Couto, estão num carro da MTVex. Enquanto o Grow sorri inquieto, ela olha para os lados como quem delira, a querer acreditar, mas sem conseguir, nos muitos efeitos especiais que se desdobram ao redor. Parecem estar divertindo-se, pelo menos enquanto não são atingidos por nenhum estilhaço.

As dobradiças do capuz do utilitário de cabine dupla, próximo à perua da MTVex, não suportam o peso total do veículo e desprendem-se. Uns e outros capôs flanaram sobre outros carros como se fossem leves folhas-de-flandres ao impulso de um forte vento que, paradoxalmente, fazem-nos flutuar em câmera lenta.

Uma delas cai sobre o teto de uma viatura policial e a outra se arrasta na superfície superior e lateral de alguns carros. Após bater forte num porte, atinge o teto e as partes laterais de outros carros, causando arranhões na lataria de meia dúzia de veículos. As pessoas encolhem-se nos bancos, amedrontadas. Os eventos acontecem como se em câmara lenta. A parte dianteira de um carro desloca-se para cima e desaba, a seguir, sobre o porta-malas de outro automóvel. Um policial pede reforços pelo rádio, enquanto observa, atônito, o capuz de um carro girar veloz e ameaçadoramente entre os automóveis.

Algumas luminárias dos postes da Av. Paulista, em forma de flor das almas (malmequeres-negros, trevos de quatro folhas), esfacelam-se em milhares de fragmentos. Suas sombras, à luz vespertina, projetam-se no asfalto da avenida como se fossem condecorações nazistas, em forma de cruz gamada.

As sirenas de ambulâncias fazem-se ouvir, os carros de bombeiros e as viaturas policiais concentram-se no perímetro das quadras onde ocorrem os fenômenos. Barricadas policiais são erguidas, fitas de plástico amarelo estendidas ao redor da área privativa, ligam-se aos vários cavaletes, após traçados os limites impróprios para circulação, entrada e saída de pessoas ou veículos. A área está sendo interditada.

Alguns dos motores de explosão alternada dos automóveis explodem, literalmente, pegam fogo. O combustível e o ar de dentro dos cilindros inflamam-se, as labaredas sobem de debaixo dos capuzes, mesmo dos que se mantêm em vibração ou fechados. Pessoas tentam apagar os focos de fogo com extintores de incêndio dos carros. Sirenes ligadas dos bombeiros fazem-se ouvir. Incêndios foram detectados em vários prédios no perímetro da Paulista. Há grande movimentação de viaturas e ambulâncias.

As luzes, ora apagadas, ora acesas, das luminárias em trevo, continuam pipocando. Os sinais de trânsito piscam do vermelho para o verde, sem interrupção. As cores mudam em cintilações coloridas, fundem-se com as dos vidros estilhaçados. Os cacos, sob a influência de uma luminosidade prismática, caem sobre o asfalto e os veículos, como se fossem partes desprendidas de cristais. Os passageiros saem dos coletivos e dos táxis, refugiam-se sob as marquises dos prédios, lugares supostamente mais seguros onde buscam abrigo.

Os estilhaços das paredes de vidro dos prédios continuam a projetarem-se, ora para dentro, ora para fora dos ambientes fechados. Algumas pessoas estão caídas, com membros a sangrar. Transeuntes tentam protegê-las, conduzindo-as para dentro das portarias dos prédios, à revelia das dificuldades impostas pelas normas de segurança dos condomínios, onde esperam ser socorridas.

Os porta-malas abrem-se subitamente, são puxados para cima, forçados a um movimento surpreendente de verticalização. Os veículos balançam a partir da mesma força ascensional atuante nos capuzes. Como se fossem cavalos bravios recusando-se a serem domados pelos motoristas. Algumas portas e capôs se desprendem dos gonzos. A ruptura acontece quando o peso torna-se demasiado para a resistência dos eixos que prendem as dobradiças. Elas abrem e fecham, entortam, giram nas portas dos porta-bagagens, impelidas para cima, contra a força gravitacional. O espetáculo alucina. As pessoas não sabem como reagir. As que estão dentro desesperam-se com as dificuldades para sair, as que estão fora não ousam aproximarem-se. Alguns carros permanecem como se os eventos estranhos não lhes atingissem.

Alarmes contra roubos começam a soar incômodos. Os estrépitos, os sons patológicos da cidade, parecem reunidos num campus manicomial, popularmente conhecido por avenida Paulista.

Hélio observa com apreensão as nuvens escuras e muito baixas, encobrindo os últimos andares dos prédios, em incansável convulsão cerúlea. A impressão de um cenário excêntrico, pleno de extravagâncias, pronto a engolfar de vez, e fazer desaparecer sem complacência, os carros e seus ocupantes. Hélio percebe que Carla está ausente dos fatos, como se a alienação reinante, deus queira que provisória, não tivesse ganhado seu coração, sua mente, para a estranha natureza paranormal do evento. O carro de Hélio é um dos que permanecem sem alteração. Não sai do veículo porque Carla está em transe e ele não quer que ela fique sozinha. E há também o medo de ser atingido pelos milhares de fragmentos de vidros projetados para todos os lados.

O olhar de Hélio desloca-se para a vidraça inteira que separa a entrada do banco, principal agente do mais recente escândalo financeiro, que se esfacela com grande estardalhaço. Exceto pelas luminárias de teto das viaturas e ambulâncias, e por algumas luzes das janelas dos prédios, o trecho da Paulista entre a rua da Consolação e a ministro Rocha Azevedo, permanece às escuras, iluminado, de quando em vez, pelas faíscas que se projetam dos motores fumegantes e das luminárias em curto circuito.

Dir-se-ia que os enigmáticos incidentes estão sob severa investigação, e que os policiais não foram de todo surpreendidos por eles. Os socorros são providenciados com presteza, e agem dentro de uma estratégia previamente elaborada, como se já tivessem, em outro lugar da capital, enfrentado ocorrência semelhante.

— Improvável! Pensa Hélio, que outro acontecimento análogo tenha ocorrido, sem que a imprensa tivesse noticiado.

Quando os estranhamentos pareciam ter cessado, uma camioneta, impulsionada por uma catapulta invisível, sobe em arco das proximidades do Museu de Arte de São Paulo, e vai cair sobre uma viatura policial estacionada na calçada, frente ao prédio da Justiça Federal.

Dos policiais que ouviram o estrondo e observaram a incrível impulsão do veículo, alguns deitaram na calçada embaixo das viaturas, outros, saíram correndo às pressas das proximidades, distanciando-se do local do impacto. Duas camionetas da PF ficaram esmagadas. A velocidade de atrito foi posteriormente calculada em 150 km/h. Um cineasta amador filmou tudo e negociou o filme com a Rede Globo, que passou a exibi-lo em seus telejornais.

As pessoas que permaneceram dentro dos apartamentos comerciais, mantiveram as expressões faciais apavoradas e apreensivas, devido às ameaças sucessivas: marcas sanguíneas de ferimentos, rasgos nas vestimentas. Os programas normais das emissoras de rádio e tv vão sendo substituídos por flashes do enigmático evento. Os jornais e revistas não falam de outra coisa. As tiragens aumentam em até três vezes. Para a imprensa escrita, falada e tvvisiva, a coisa estava influenciando os espectadores, ampliando os lucros, fazendo crescer o faturamento.

A “TEORIA
DONE”

Jussara atende ao vídeofonema da mãe de JJ Voltaire, solicitando presença numa visita:

— Estou curiosa para conhecê-la. Só agora sei que meu filho tinha grande carinho por você. Até ontem ignorava, quando achei este envelope, entre seus pertences, com um bilhete e um DVD para ser entregue a você, se algo acontecesse. Aconteceu.

Jussa ignorava ser tão especial. O namoro com o sinistrado pela CHE foi inconsequente. Não para ele. Atração sexual à primeira vista. Um fogo de palha, noventa dias, não sessenta (como havia dito para o pai), sem prejuízo da amizade, das afinidades intelectuais.

Achou estranho que ele estivesse sob pressão.  Apressa-se em fazer uma visita à mãe de Voltaire. No dia seguinte, ao chegar ao apartamento dela, sente-se pouco à vontade para confidências, com essa mulher que, nesse momento, parece desolada e sozinha.

Trocam impressões sobre os acontecimentos. Jussara interessada em saber: Voltaire deixou para ela um DVD, por quê? Contém a curiosidade. Conversam, mostrando-se mutuamente impressionadas com os desdobramentos dos fatos.

— O Jornal Nacional está se transformando num evento noticioso mais fantástico do que o Fantástico dominical.  Lígia provoca-se: As pessoas estão se dando conta de estranhamentos incomuns. As autoridades não conseguem explicá-los.

— Não há padrão de explicação convincente, exceto a teoria de um escritor brasileiro. Ele concluiu que a mente está revoltando-se contra forças sociais minoritárias muito fortes, que fazem questão de manter as forças sociais majoritárias deformadas e desinformadas.

— Sei! A “teoria Done”. Segundo esse escritor, o império da mídia tvvisiva, através da propaganda subliminar, transforma a mente das crianças dos países pós-neopsicolonizados, em fanáticas ruminantes de hambúrgueres e programas de infantilização mental irreversível.

— Cultura trash, lixo informacional em todos os lugares, a mente coletiva revolta-se, forças virtuais ganham realidade. Eventos parapsicológicos substituem a falta de participação e a política de exclusão social.

—  Reação  inconsciente, coletiva e subliminar, às pressões que anulam os esforços diários das pessoas por crescer, impedindo-as de desenvolver e progredir, mental, intelectual, espiritualmente.

— Há uma revolta calada contra as impossibilidades. Vêem frustrados seus esforços por melhor qualidade de vida e sobrevivência. Pressões inconscientes chegaram a um tal limite... Tensor das tensões... Ao tentarem se libertar das pressões, criaram um  Horizonte Maligno de Eventos.

A resposta de Lígia surpreende a visitante. Ela não é apenas uma mulher de meia idade, mas uma senhora atenta, com uma percepção em estado de vigília, bem mais jovem e informada do que a média dos tvespectadores que se informam via programas de domingo.

Jussara percebe: Voltaire tinha uma mãe cabeça.

Talvez não precise de contato mais íntimo com a realidade. Jussara muda de tom. Cria-se uma atmosfera de respeito mútuo e não de mútua pusilanimidade. A realidade das pessoas é mais que uma mandala neo-pós-new-age, como querem alguns.

— Quem diria, hein! O que é “bom” repete: todo pilantra político quer se reeleger.

— Os políticos continuam deliberadamente ignorando o significado da palavra Ética. Sem Ética, está como sempre esteve. Sem Ética qualquer edifício da cultura e da civilização, desaba, os pilares da argamassa política dos conchavos entre os três poderes da “Lei de Jérseyton”.  

A conversa aos poucos se desdobra rumo aos interesses pessoais de Jussara e Lígia:

— O que me surpreendeu mais é que JJ estava prevendo algo estranho. Algum acontecimento nefasto. Por que se sentia ameaçado? Jussa pensava nas frases: “Se algo me acontecer, entregue este DVD a Jussara”.

— Não tenho a menor idéia do que poderia fazê-lo sentir-se ameaçado. Ele não era de falar muito. Andava cismado, apreensivo, inquieto, após ter voltado da última das viagens à Amazônia, onde efetuou as pesquisas sobre as cidades desaparecidas. Nessa viagem conheceu Agassiz.

— Agassiz, esse nome não me é estranho...

— Espere um momento, por favor. Dizendo isto Lígia sai da sala. Ao voltar traz uma foto de uma dúzia de pessoas numa hospedaria no meio da selva.  

— É esse, à direita dessa senhora.

— Lembro-me. Era um cara muito “na dele”. Fazia mestrado em Engenharia Florestal na Universidade de Manaus. Espanhol, se não me engano. Antes de vir estudar no Brasil, concluiu um curso... Não sei bem... De Topogeografia, na Argentina. Vidrado nos mistérios da floresta.

—  Voltaire sabia convencer, comenta Jussa. De início achei as pesquisas sobre cidades perdidas, veleidades, quimeras. Estava sendo mais realista que o rei. Agora acredito que essas cidades existam mesmo. Uma intuição me diz que elas têm muito com esses eventos fantásticos.

— Por que a mudança de opinião?

— Ele sabia defender as idéias nas quais acreditava. Quando leio sobre Manoa, das evidências que havia colhido nas pesquisas sobre ela, fico achando que existe mesmo. Onde há fumaça há fogo.

— Os índios na Amazônia acreditam que os que buscam por ela sempre desaparecem. É fato que muitos membros de expedições não puderam ser encontrados, apesar das buscas.

— Umas poucas pessoas mais afoitas não despertariam suspeitas, mas dezenas delas sumirem, não é um pouco demais? Pode parecer realismo fantástico, mas a realidade por vezes sabe ser mais surpreendente que a imaginação.

— Perdoe Jussara, se mudo de norte bruscamente. Você se importa em me dizer o que sabe sobre combustão humana espontânea? As condições nas quais pereceu Voltaire são como as das outras vítimas? Essa coisa ameaça tornar-se epidêmica?

— O pouco que sei, talvez a senhora saiba. Um odor forte, adocicado e pegajoso, como se da queima de incenso produzido com resina natural, no local em que as pessoas são reduzidas a pó. Por algum tempo, nele permanece uma espécie de neblina azulada.

Jussara não se sente bem em falar do ocorrido. A senhora parece ter superado o trauma da perda de Voltaire mais rapidamente do que eu. Lígia empatiza o incômodo de Jussara:

— Desculpe minha filha, tudo que sei sobre isso é o que publicam os jornais. Meu marido não fala, nem lê, parece isolar-se, querer esquecer. Você é jovem, está quase todo dia próxima ao local onde aconteceu. Deve saber mais. Se não quiser falar... Compreendo.

— Tudo bem, essa coisa é ainda muito estranha para ser aceita. Há uma teoria estúpida sobre alcoolismo. Pessoas que bebem demais estariam mais sujeitas à CHE, nada científico. Voltaire bebia pouco, não faz sentido. Nas cinzas, finíssimas, há sempre a presença de um líquido arroxeado.

Para Jussara a conversa está mesmo incômoda, pensa em sair o mais breve possível da presença de Lígia. Quer estar sozinha, precisa olhar o que contém o DVD, mas não deseja mostrar-se ansiosa. Afinal, não fosse ela, não teria esta última ligação com a memória de JJ Voltaire. Prossegue como se estivesse à vontade:

— Por vezes sobra algo das extremidades do corpo. Um pé ligado a um pedaço de perna, uma mão, ou o crânio não é de todo queimado. Aconteceu sobrar uma mão, um pé de Voltaire? Gostaria de perguntar. Pelo amor de Deus, que pergunta mais macabra. Não, não vou fazê-la.

— De meu filho só me devolveram cinzas, balbucia Lígia, como se tivesse captado a interrogação da moça. Sim, agora lembra, a cor arroxeada impregnada numa parte das cinzas. A princípio supôs que fosse do colorido do piso, ou de algum objeto que tivesse se dissolvido próximo à combustão. Sombria, essa conversa, por mais amigável e íntima que seja, termina parecendo uma fofoca medonha. Ela, a princípio tão curiosa, sugere:

—  Se você não se importa, não vamos falar mais nisso, por favor.

Lígia, agora sim, parece ser uma mãe ainda traumatizada com o desaparecimento do filho. Que preconceituosa, por que deveria ela comportar-se como uma mãe padrão, com sentimentos e reações triviais? Na realidade, tudo que fiz até agora foi impregnar de preconceitos esta conversa.

As duas mulheres ficaram emocionadas ao memorizar o evento. Toda ausência é atrevida, como disse o poeta. Menos quando se trata de uma pessoa morta, exceto em casos extremos, tende naturalmente a ser positiva. Ao se despedir de Lígia, fica a impressão de confiança e amizade.

Ao sair da casa da mãe de Voltaire, Jussara, ansiosa lê a mensagem dirigida a ela em DVD por Voltaire, adia outros compromissos. A ansiedade a conduz para o quarto no apartamento onde se encontra o micro MMX/Live//BG.
JJ costumava trabalhar no programa NEW/2035. Se os arquivos gravados em DVD tiverem nele, ela não terá dificuldade em acessá-lo.

Ligou o micro, encaixou o DVD no drive, a telinha solicitou uma senha. Senha? Como vou saber qual? Tentou uma, duas, várias vezes. Uma crescente ansiedade dela se apodera à proporção que digita nomes que não permitem acesso. Até que, como não pensou nisso? Simples, mais simples do que poderia imaginar. Voltaire a chamava de JU. Após digitar a primeira sílaba do próprio nome, o “Arquivo Jângal” abre-se, afinal. A ansiedade dilui-se. Esses breves momentos pareceram anos-luz.


O “ARQUIVO
JÂNGAL”

Após digitar a senha Jussara vê aparecer na tela do monitor um bilhete: JU, alguma coisa definitiva aconteceu comigo para que Lígia tenha entregado este arquivo em mãos. Por que você? Porque pessoa de minha confiança. Seu pai jornalista, quem sabe possa se interessar pela história. Os fatos podem parecer fantásticos, mas pertencem ao mundo real.

Muitas pistas sobre Manoa (cidade perdida da Amazônia) consegui ainda em São Paulo, em contatos aleatórios dentro da USP. Informações foram investigadas pessoalmente, quando estive em Manaus e Santarém, nas bibliotecas de universidades do norte, através de pesquisas de campo. Outras chegaram às minhas mãos por meio de pessoas que não perderiam tempo com leviandades.

Relatos verbais indígenas confirmam a existência da cidade perdida, mas as tribos estão determinadas a calar. Não fornecem informações mais precisas sobre a localização dessas e de outras cidades. Os índios mencionam vagamente um sítio hostil, na zona leste da Serra do Roncador, no Mato Grosso, próximo aos leitos dos rios Xingu e Verde (também conhecido por Teles Pires ou São Manuel), vizinhos do Rio das Mortes, numa localidade onde pouca gente se aventura a penetrar. Faz justiça ao nome.

O lugar está defendido por membros guerreiros das tribos Xavantes e Morcegos. Eles protegem o lugar de invasores. Lançam flechas com pontas embebidas em substância resinosa vermelho-escura, solúvel em água e extraída da casca de certos cipós (Strychnos) que contêm curarina, alcalóide venenoso de ação paralisante e mortal.

Neste lugar lendário, falam da existência de ofídios com 25 metros, da ferocidade de cãeslobos que perseguem os intrusos, por vezes os estraçalham. Pouca gente ousa dele se aproximar. É difícil falar um pouco mais deste sítio tabu. Os nativos têm medo, muito medo. Em suas proximidades ocorrem coisas que “até Deus duvida”. No dizer popular do folclore regional.

— Já conversamos isso, “aqueles que buscam Manoa desaparecem para sempre...” Ju interessa-se mais pela narrativa.

Manoa, dizem alguns temerários aventureiros que conseguiram sair com vida das proximidades de seu “campo de força”, é habitada por uma raça muito estranha (“Eles”) que, exceto raras exceções, não deseja contato com civilizados, nem com os demais povos da floresta.

Expedições de americanos e europeus, pesquisadores científicos, antropólogos, geólogos, caçadores do tesouro Inca, perderam a vida na tentativa de chegar até ela. As evidências de que uma força estranha atua nessa região são muitas e incontestáveis.

Há indícios de que Manoa permite acesso à entrada de túneis que ligam a América do Sul à capital Tule, da Cidade dos “Muito Antigos” na Antártida. Acreditam alguns historiadores: através dessas passagens subterrâneas, os Incas conseguiram escapar dos colonizadores espanhóis levando um fabuloso tesouro sobre onze mil lhamas.

Uma das entradas desses túneis está na Serra do Roncador. Através dela foram acolhidos pela raça subterrânea, tanto os Incas em fuga dos colonizadores espanhóis, quanto soldados nazis, no período anterior à 2ª Grande Guerra, e no final da mesma. Nazis fugitivos dos exércitos aliados encontraram refúgio nos subterrâneos da selva amazônica. Segundo orientação dos “Muito Antigos”, o “Reich dos Mil Anos” começou pra valer com o fim da II Grande Guerra.

Das histórias noticiadas pela imprensa, esta se destaca por constar dos registros da polícia do Rio de Janeiro: Em janeiro de 1984, o jornalista alemão Karl Albert Brugger passeava no calçadão da praia de Ipanema na companhia de outro jornalista também alemão, quando foi fuzilado à queima-roupa por um suposto assaltante que nada roubou, usando uma arma sofisticada de grosso calibre. O tal amigo saiu ileso, e em depoimentos posteriores se contradisse, como se na tentativa de confundir os investigadores.

Estranha “coincidência”: Karl Brugger estava a escrever reportagens sobre a existência de colônias nazistas fortificadas na floresta amazônica. Milhares de dirigentes e subalternos da Gestapo dirigiram-se para aquela região, tanto no início do conflito, como após a derrota para os aliados, no vôo denominado “O Último Pássaro do Terceiro Reich”.

A trágica saga de Brugger começa em 1971, em Manaus, quando o comandante piloto da Swissair, Ferdinand Schmidt, acompanhado de outros membros da equipe de vôo, ouviu um mendigo aproximar-se do grupo e pedir, numa perfeita pronúncia da língua germânica, uma esmola para uma refeição.

O pedinte poliglota chamou a atenção da tripulação. Enquanto devorava um repasto, disse ter nascido de mãe indígena, da tribo dos Ugha Mugulala (até então desconhecida). O suposto pai era soldado alemão.

Ficou patente, de suas informações, que entre 1937 (pouco antes do inicio do II Conflito Mundial) e 1941, dois mil soldados nazistas se instalaram em locais inacessíveis da floresta amazônica, levando consigo armas e sofisticados equipamentos tecnológicos. Os historiadores sabem que os cientistas nazistas obtiveram auxílios técnicos, ignorava-se de quem, para seus experimentos bélicos, muito avançados para a época.

De volta a Alemanha, o comandante Schmidt conheceu o mencionado jornalista, Karl Brugger, a quem contou o estranho contato. Em 1972 Brugger chega ao Brasil interessado na investigação da história para a revista Der Spiegel.

Após uma semana de buscas em Manaus, consegue localizar o mendigo descrito por Schmidt, conquista sua confiança e fica sabendo da cidade das três pirâmides com nomes indígenas de Akahim, Akakor e Akanis, que designariam três diferentes cidades, mas que na realidade são três sítios de uma mesma localidade.

Em seus subterrâneos teriam sido abrigados os remanescentes do III Reich, acolhidos por seres de uma época muito remota, denominados “guardiães silenciosos do destino final da humanidade”: os lemurianos. Este povo “subway” teria desencadeado o movimento nazi enquanto ponto de partida do “Reich dos Mil Anos”.

Disposto a obter mais evidências, Karl Brugger começa a investigar por conta própria. Acessa documentos da II Guerra catalogados na Biblioteca do Congresso e no Departamento de Defesa dos EUA. Entrevista militares aliados que participaram do desembarque na Normandia, território francês, e da Invasão da Berlim devastada em 1945. Consegue contactar ex-membros do exército Aliado. Compara informações obtidas de várias fontes em diversos países.

Há quase unanimidade na confirmação de que uma esquadrilha de caças da Lufwaffe decolou em vôo de escolta a uma grande aeronave no mesmo dia em que as tropas aliadas invadiam Berlim. Os passageiros que nela embarcaram, eram nada menos que os mais destacados membros do partido nazista, incluindo Hitler e a amante Eva Braun. A essa viagem aérea os Aliados denominaram, repito, “O Último Pássaro do Terceiro Reich”.

Esse vôo bizarro conseguiu burlar os bloqueios Aliados e seguir na suposta direção do Tibet, onde os mais graduados membros da ordem negra da organização militar e paramilitar SS, em cerimônias com rituais geridos pelos “superiores desconhecidos”, tinham acesso a graus mais elevados de conhecimentos tecnológicos muito avançados para a época.

Brugger reuniu depoimentos que confirmam ter “O Último Pássaro do Terceiro Reich” pousado num aeroporto secreto, nas proximidades de um local até então impenetrável da selva amazônica, construído pelos oficiais e soldados nazis que aportaram no norte do Brasil entre 1937/1941.

A localização de Manoa, de muito difícil acesso, estava sendo precisada pelo jornalista alemão. Nesse local, onde a natureza ramificou tanto a vegetação das copas das árvores, é impossível, mesmo aos raios solares, penetrarem no emaranhado de folhas da gigantesca flora florestal. Em suas proximidades, a presença de OVNIs e de outros objetos estranhos em locais próximos à Serra do Roncador, são vistos como se saídos, supõe-se, de bases espaciais não identificadas através das tecnologias fotográficas dos satélites.

Hitler e o estado-maior nazi teriam se deslocado para Manoa ? No mesmo dia à Invasão da Berlim devastada pelos bombardeiros Aliados, em 30 de abril de 1945, num bunker subterrâneo do alto comando nazista, recentemente descoberto, um oficial SS disparou dois tiros com uma pistola modelo Walker: um na têmpora do suposto fuhrer e outro na da fiel Eva Braun. A seguir queimou os corpos com o “fogo renovador”, morte para iniciado nenhum botar defeito.

A encenação não passou de uma farsa: os corpos carbonizados eram de um casal de atores sósias do ditador e de sua amante, cujas arcadas dentárias tinham sido tratadas de modo a fazer crer que eram originárias de ambos. Em verdade Hitler bateu as botas na região norte do Brasil. O casal de atores que se prestou à farsa no bunker subterrâneo, no dia da tomada de Berlim, morreu confiante no futuro do “Reich dos Mil Anos”.

Nos primórdios do Partido Nazista, em 1923, o mago negro fundador da hierarquia da sociedade secreta Tule (!) Dietrich Eckardt, afirmara que Hitler conhecia as técnicas de contato com “ELES”, e que ele, Eckardt, teria influenciado o futuro da história mais que qualquer outro humano.

Parece-me evidente que hoje, o “Reich dos Mil Anos” está em pleno andamento. Em todas as partes do planeta há a presença de uma forte inquietude e de uma intensa tendência para o mal. Os seres humanos estão como que submergidos na inversão de valores, no consumismo desvairado, nas vibrações de conflito, e numa aviltante involução da dimensão do espírito. O mago negro Eckardt, aonde quer que esteja, deve sentir-se vitorioso na profecia de “influenciar o futuro da história do planeta mais do que qualquer outro humano”.

Dez anos depois da fundação da sociedade secreta Tule, a 30 de janeiro de 1933, a hierarquia da ordem negra treinara e iniciara os SS da Gestapo, os oficiais comandantes e os fanáticos soldados da morte. Forças satânicas dominavam a Alemanha e se preparavam para expandir esse domínio por toda a Europa, África, Ásia e Américas. A crença de que, direta ou indiretamente, sairiam vitoriosas, persistiu. Confirmou-se.

Por que vieram? Quantos nazis seguiram para a Amazônia ? Dos setenta mil oficiais nazistas, apenas vinte mil foram localizados no pós-guerra. Ninguém substituiu o trabalho de Simon Wisenthal na caça aos boches evadidos do fuhrer? Ou o Mossad teme enfrentar a magia dos “Muito Antigos” nos túneis subterrâneos quilométricos, que supostamente ligariam a Amazônia à cordilheira do Himalaia e à Terra de Mary Byrd na Antártida?

Ao ler este Arquivo, Jussara sente-se inquieta, inflacionada com estas informações sobre os “Muito Antigos”. E sobre o mago negro instrutor do fuhrer nas técnicas de “entrar em contato com “ELES”. Ela certamente precisa de um tempo para pesquisar a presença nazi na Amazônia.

Pensou: A II Guerra configurada como atalho para a satanização globalizada da sociedade.

Associou o mendigo que falava corretamente a língua alemã, ao jornalista assassinado em Ipanema, às supostas trilhas subterrâneas e túneis que ligam a América do Sul à Antártida.

A coisa toda parece fantástica. Um povo que reside no subsolo, uma civilização subterrânea, habitada por uma raça alienígena que mantém contato com OVNIs: É muita areia para meu caminhãozinho mental.
Difícil, para uma mente condicionada a olhar o mundo e a estudar história de modo convencional, aceitar. Não é fácil acreditar nessas informações, mesmo sendo provenientes do estudioso e pesquisador sério e confiável, que foi JJ Voltaire.

Parou a leitura. Carece de um tempo para reordenar estas informações. Desconhece de que forma associar os fatos. Eles, parecem saídos de uma história tipo realismo fantástico. Sim, desconhece onde possam estar as associações aleatórias deste Arquivo, com casos reais, cada vez mais assíduos, de combustão humana espontânea.

O dia foi cansativo, ela não está absorvendo de maneira satisfatória, todas as informações. Elas giram dentro da cabeça, sem encontrarem o nicho propício para se ordenarem de maneira racional, convincente.

Preciso de um sono tranquilo, onde os fios finos dessa teia de Ariadne, de infinitas ramificações, possam vir a tornar-se críveis e coerentes. Posiciona papel na impressora e aciona uma série de rotinas que permitem uma 1ª edição do “Arquivo Jângal”. Antes de ir dormir, posiciona uma pasta azul com a cópia sobre a mesa da sala, e um bilhete dirigido a Rossi:

— Papa, leia e segure a onda. Não se surpreenda se for capaz. Até, Ju.


IBOPE
NEGATIVO

No apartamento da família vizinha ao de Sabrina, crianças assistem a um programa infantil em que a condutora, uma galega bonitinha, sempre sorridente, simpática, feliz, uma Alice no País das Maravilhas da tv, com uma tonalidade de voz propositadamente infantilizada induz a criançada ao consumo de variados produtos comestíveis. Incluso molhos de tomate e mostarda.

A criançada interpreta as diversões do programa como quem não está mais a se divertir com as simpatias da “tia”.

O garoto Ricardo Flores chama a atenção do colega Beto para o monitor da tv. Até para as crianças a programação está intolerável. Os produtores e associados dos conglomerados não estão nem aí para as necessidades de mudar o paradigma da cultura, exigência dos novos tempos, de uma maneira renovada da mente perceber as relações virtuais existentes entre as diversas unidades de significação associativa dos juízos de valores e dos sentimentos que se transmitem no interior do inconsciente coletivo de uma comunidade.

As crianças logo compreendem o que fazer para tentar expressar seu desprazer e descontentamento.

Quando a apresentadora começa a jogar “beijinhos-beijinhos” e a dizer “tchau-tchau” para a garotada, todos aqueles produtos que ela anuncia pessoalmente, e os que são comercializados via comerciais, parecem se acumular dentro do abdome dela. O ventre da mulher começa a crescer mais e mais, até que de tão grande explode.

Os pedaços dos mitos produtos por ela comercializados lambuzam os baixinhos e baixinhas, banhando-os de uma gosma semelhante a vômito. A garotada se limpa com exclamações de repúdio tipo “eca”, arrrhgh, “que sujeira”. Muitos começam a vomitar e arrotar.

A show-woman desperta do pesadelo com uma expressão de alívio. Afinal, aquelas imagens supostamente não passaram de um pesadelo.

O certo é que o Ibope do programa dela caiu assustadoramente em 40 dias, nada menos do que 32%, 33%, 35%. E a tendência continuava. Os ignocratas (burocratas e tecnocratas para os quais as pessoas são apenas números), da emissora em reuniões contínuas com a equipe da “tia”, tentam explicar a queda das avaliações de audiência com argumentos estapafúrdios, enquanto escondem em suas gavetas os resultados das pesquisas, de modo que os patrocinadores não se dêem conta de que, há muito, a galeguinha está abaixo dos índices de audiência das outras emissoras no mesmo horário.

As mães se telefonam e buscam explicações para a mudança de comportamento da molecada.

— Está acontecendo com o Júnior também ? A senhora Astrid parece intrigada.

— Isso pode ser interpretado como um sintoma de que estão mais exigentes?  Aquela festividade fabricada de palco de tv não estava do agrado de ninguém.

— A Verinha não assiste mais o programa dela nem que com a promessa de ganhar uma passagem de aniversário para a Disneylândia.

— Estão mudando, pelo visto para melhor. A Ceci e o Lulu, filhos da Neusinha, estão lendo livros tipo contos de fadas, e trocam impressões sobre as personagens, como se tentassem compreender o que há por trás das histórias.

— A cabeça deles parece que está mudando mesmo. A Prata e a Mary Claire, colegas de classe do Júnior, estão trocando obras clássicas, tipo “O Conde de Monte Cristo”, e lendo volume por volume a coleção de obras infantis de Monteiro Lobato.

— Se as crianças forem esperar que a tvvisão acompanhe o desenvolvimento de suas mentalidades, elas vão ter de esperar pelo menos mais um milênio.

— Minha filha, esses donos de tv querem é ganhar dinheiro. Não estão se importando nem um pouco em fornecer programas que incentivem a infância e a juventude a pensar com mais clareza. A compreender o mundo em que vivem com inteligência.

— E inteligência. Eles têm medo de que os baixinhos aprendam a pensar as próprias necessidades.

— Parecem temer que eles resolvam ser outra coisa que não a imitação desses heróis violentos dos desenhos animados, cheios de superpoderes. Como se as crianças pudessem imitá-los a vida toda, até que um dia, talvez tarde demais, descubram que são apenas pessoas comuns e seus poderes estão no conhecimento de que só poderão “crescer” como espectadores de tv.

— Quando jovens vão descobrir que os donos das tvs criaram seus programas para uma vida de ficção barata. Torcedores de futebol, fanáticos de torcidas organizadas, comerciantes da droga do dia. A realidade dessa educação vai transformá-los em imitadores de traficantes e em garotas de programa.

— As adolescentes estão imitando a Bussunda Surfistinha aos milhares.

— Quem é essa? Bussunda Surfistinha?

— Uma garota de classe média que a mídia promoveu, principalmente a Internet. Ficou famosa por ter se prostituído muito cedo, e por ter ganho por seu programa mais barato a quantia de quarenta reais.

— Parece que os Sympsons, os Flintistones, o Mickey, o Scubidu e o Pato Donald, os irmãos metralha, não estão mais agradando. Eles agora querem doses cada vez mais maciças de violência dos heróis dos enlatados de tv.

— Graças a Deus alguns parecem que vão libertar-se pela única via de acesso à inteligência: os livros. A leitura.

— É minha querida, a esses a tv não incentiva. Exceto em rápidos anúncios da propaganda do “faz-de-conta”.

— É covardia, nivelar por baixo uma geração, para quando crescerem desejarem ser jogadores de futebol e garotas de programa.  

— E ninguém pode fazer nada para mudar essa programação?

— Há poucas mães politizadas, que sabem que seus filhos têm direitos constitucionais à educação e a saúde mental. Seria preciso uma mobilização nacional no sentido de que os “pra lamentares” não se vendessem aos “lobby” dos donos de emissoras de tv.

— Tvvisão é uma concessão pública. E parte dos políticos quer seus eleitores nivelados por baixo, porque, do contrário, como continuariam a votar neles?

— Iniciativa privada é isso. A disseminação da democracia da latrina e do vaso sanitário. A parte de cima da coluna vertebral servindo, maior parte das vezes para separar as orelhas e gastar no cabeleireiro.

— Este tipo de diálogo, felizmente, está ficando cada dia mais fluente. As famílias já se convenceram que são os pais, as associações de classe, as religiões, os eleitores cobrando dos parlamentares uma atitude.  Precisamos preservar nossos filhos dessas influências dos que se tornam cada dia mais milionários às custas da deterioração mental dos tvespectadores de todas as idades.

—Alguma coisa está mudando na mentalidade dessas crianças e adolescentes. Eles sabem que estão sendo usados e não podem fazer nada. Seus familiares, vizinhos, professores, os adultos de modo geral, não estão investindo no futuro diferente do que a tv reserva para eles. E essa revolta do “não poder fazer nada” está criando uma comunicação telepática entre eles.

— Coisas estranhas estão a acontecer. E as crianças e jovens têm participação nisso.

— Muitos nem falam mais com adultos.

— Muitos nem falam mais entre si. Emitem uma espécie de zunido, como se fossem habitantes de uma colméia. Tipos mutantes, semelhantes aos personagens do livro de Arthur C. Clarke. Qual é mesmo o nome? Que memória. Li outro dia.

— “O Fim da Infância”, a Maly Karan me presenteou outro dia. E eu já passei para a Lígia ler.

—  Pelo menos estamos sabendo o que está a acontecer.

— Tchau, as dezoito horas no Teresina Shopping, aquele filme, não vamos perder. Como é mesmo o nome?

— Do livro de Jane Austen, “Orgulho e Preconceito”.

— Até parece que estamos falando da “gente fina” dessa cidade. Até mais tarde.
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DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 23/04/2011
Alterado em 12/12/2013


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