Textos

Holocausto Nunca Mais — PsyCity (Romance Neo-Pós-Moderno)
A BOATE
“BIG APPLE”

Apressada Hallma entra no camarim de “star” da boate “Big Apple”. Os frequentadores do bar convivem com a ansiedade por vê-la e espiá-la, através dos efeitos sonoros e visuais nos três shows noturnos de streaptease. Chegou de táxi quinze minutos antes de subir ao palco. Pede desculpas ao cabeleireiro e a manicura que se aproximam. Os frequentadores ignoram: ela é mãe de uma garota de onze, Lilith, e de um menino de dez, Sasha Kadja.

As vinte e cinco primaveras revelam uma adolescente em pleno gozo de uma superlativa vitalidade. Mulata exportação, completa, para turista nenhum botar defeito, nem o Vargentelli. A pele transmite uma intensa embriaguez sedutora. Suprema sensualidade flui para a platéia estupefata com a elasticidade do corpo dançante, seminu.

Quando no palco, a excitação inusitada prolonga-se através da aura, estende-se a todos, dá-se em fluxos, expande-se pelos pêlos e poros da epiderme da platéia. Faz arrepiar. Ninguém precisa saber, nem se pergunta, como ela consegue esses efeitos especiais. As pupilas, duas esferas verde amareladas, insinuam-se na libido dos espectadores, reflexos da íris diamante, desafia, aumenta o desejo extasiado dos admiradores.

Insidioso calor quântico emana das moléculas dos espectadores e infiltra-se nas moléculas da dançarina. Como grãos de pólen que se irradiam de muitas células. Torna-se a fêmea hospedeira, a exercitar a magia da intersensualidade.  Contentam-se com simulação potencial, com sexo virtual. Ela simplesmente os expurga da sensação de, realmente, apesar das aparências, serem fracos e pusilânimes, quase indefinidos. Mesmo os que se acreditam garanhões, poucos poderiam ser páreo para ela.

Enquanto Hallma não chega ao palco, as doses se multiplicam nos copos entornados pela ânsia voyeur dos clientes excitados pela virtualidade de uma cópula sem as condições essenciais para realizar-se. Contentam-se em vê-la e guardar a imagem da fêmea, segundo cada necessidade de idealização.

— Quando dança o Kama-Sutra ao vivo, ninguém se safa de sua sedução. Alguém comenta enquanto admira a stripper, a fazer arder as faces afogueadas:

— Exuberante excitação. Nunca me senti tão estimulado. Outro voyeur, mais idoso: “Com ela dispenso o Viagraw.”

— Por isso pagam ingresso: para desfrutá-la com o olhar:

— “Boa noite Cinderela”.

A imagem da cupidez, a formigar na polpa dos dedos, dos copos e palitinhos, às sinapses e neurônios. A filósofa de balcão, provoca a resposta:  
— Quando chegam à cama privada, com o muito pouco que restar dessa volúpia, uma vez ao lado do corpo muito menos atrativo da cara-metade doméstica, vêem que conseguem, quando muito, uma ereção papai-mamãe, uma ejaculação de três segundos.

— O leito conjugal é quase sempre broxante. Os comentários continuam.

Quanto mais tarda a galgar o palco, mais fatura a gerência da casa noturna. A ansiedade transforma-se em drinques que se renovam e tira-gostos que somem dos pratos.

Raro privilégio vê-la, mais sensual que a stripper Semi Loore. Muito mais naturalmente dotada, Hallma alimenta as chamas da fogueira noturna dos instintos saturnais, 50 reais por vez, três vezes por noite, muito aquém do cachê de 12 milhões de dólares da americana. Embora Hallma seja incomparavelmente mais sensual, não atua em filmes pornôs.

Outra página do livro da volúpia arde aos olhos da platéia, quando ela empina o bumbum bulindo, moreno, atraente como uma grande maçã. Em volta do vinco entrecoxas, a angelical curvatura branca da linha do biquíni, cinturão de sacanagem, tatuado no corpo pelo mais picante dos arquitetos: o espaço solar da praia de Maresias, onde passou um ardente fim de semana.

A lascívia flui quente da música de fundo, em compassos que penetram a imaginação das testemunhas, chamas de uma estação que apenas começa: o verão na capital de São Paulo.

Hallma sobe ao palco pela terceira vez, às três horas e trinta minutos. No balcão frontal, Leandro verte um coquetel de vodka, pinga, suco de abacaxi e cerveja caracu. Psitransporta-se do olhar às coxas da striper para a intimidade familiar. Sente-se traído pela mulher, pela filha Sabrina, pelas atitudes padronizadas da rotina. As finanças em baixa, e a sexualidade. Ele faz justiça ao dito popular noturno: Quem não tem dinheiro nem sexo não consegue pensar em outra coisa.

Os ardentes pentelhos pintados de verde-amarelo do xibiu de Hallma expandem-se em sua direção. A caverna rosachoque da mulher desnuda-se em prazerosos nichos ardentes, como se a apenas alguns centímetros da ponta da língua de Leo.

Ele viaja como se as chicotadas vindas do palco, fossem enlaçá-lo, envolvê-lo, fazê-lo participar de uma sessão de sexualidade sadomasô. A ponta do chicote de pelúcia e couro flamejante, estala a poucos centímetros do rosto. Ele solta a língua nas coxas entreabertas que se recolhem. Passa a ponta dos dedos pelas bordas do vinco oferecido. Repete, a sussurrar: “Sabrina minha filha, papai te ama... muito...”

A magia de Hallma faz vibrar o tesão ambiental. O odor de bebida inflama-se, flameja na alimentação dos salgadinhos e coquetéis. Em derredor da bela da noite, as primeiras labaredas de um fogo azulado flamejam. Elas sobem pelas omoplatas, crescem como asas de um arcanjo ígneo, prestes a fazê-la flutuar.

O garçom observa Leo lamber avidamente o que sobrou da água cristalizada no copo. Está a querer fazer penetrar a carranca dentro do minúsculo aro de vidro. O órgão muscular do paladar, alongado, contorce-se para dentro, para cima e para baixo, como se as estrias finas do que resta das pedras de gelo, pudessem ser penetradas pela língua.

— Mais uma dose, doutor? Aceita.

— Essa xana é demais, penetra em tudo, parece assombração. Comenta um advogado que vê a cena com olhar esgazeado. Como se pego em flagrante, Leo desconfia da intrusão. Olha de lado recompondo-se:

— Ah, sim, certeza. E volta a concentrar-se no conteúdo da nova dose: as minúsculas pedras de gelo tilintam ao movimento rotativo do copo. Fundem-se à vodka. Sem conversa.

Rossi, um jornalista que está mais à esquerda do balcão, sorri. Há na cena algo de patético. Não sabe o quê. Acha engraçado. A mulher ao lado também sorri. Hallma, de branco, está a se despir, exceto do véu e da tiara: O corpo a se contorcer ao som mais intenso dos acordes da Rai Orquestra interpretando o Bolero de Ravel sob a regência de Molinari-Prandelli.

Leandro fixa os olhos na dançarina, embasbacado com a beleza da singularidade dos fenômenos luminosos. Chamas azuladas, mais parecem asas angélicas, se destacam dos ombros da stripper. Tremeluzem como se ela fosse um magnífico Serafim, empenhado numa mágica operação de alçar vôo sob a influência e a inspiração transcendental das chamas da música.

Os espectadores, surpresos, embasbacados, reclamam a interferência de um segurança que envolve a dançarina numa toalha úmida e a retira do palco com a ajuda de um garçom e de outra stripper. As testemunhas, estupefatas, presenciam o extravagante espetáculo. Afinal compreendem: o fogo blue, com chamas amareladas, não fazia parte da iluminação do show.

Ela estava ardendo mesmo, na sutileza das chamas. Literalmente. Hallma foi substituída por outra dançarina. Pouco depois, deitada numa maca e embarcada numa ambulância, segue rumo ao pronto-socorro do Hospital das Clínicas.

“Corpo ardente no palco da boate inflama-se em faíscas de paixão”. Dia seguinte Leandro viaja sob a influência surrealista da manchete e do texto do jornal: “Corpo em chamas arde no tablado giratório do teatro...”  



CINZAS
PARLAMENTARES

O Jornal Nacional noticia outro caso de combustão humana espontânea (CHE). Aconteceu com o deputado federal Tasso Dwarf, em plena sessão vespertina da Câmara Baixa em Brasília. A notícia desperta a curiosidade de Rossi. Estranha que o diretor da estação de tv da Câmara dos Deputados haja alegado não ter filmado o flagrante incandescente do parlamentar. Dos poucos membros do Parlamento, presentes à Câmara quase vazia, nenhum soube falar à reportagem com precisão.

Apenas vagas opiniões, tipo:

— Essa coisa de autocombustão ameaça transformar-se em epidemia?

O deputado Gondim Neto, do FLP, saiu-se com uma gracinha de mal gosto:

— Sua excelência! O vi ser fulminado por algumas chispas de chamas azuladas. Em poucos segundos transformou-se em cinzas. Que mais posso dizer? Ou é terrorismo dos sem-terra ou uma nova arma do PT.
Outra excelência, o deputado Inocêncio Useful, peremptório:

— Eu vi tudo, estava bem próximo, mas não sabia o que fazer. Levei um susto, uma coisa horrível, uma assombração. Quando aproximaram o facho do extintor de incêndio, o corpo não existia mais. Dissolveu-se sob o primeiro jato.

Os jornais escritos e tvvisivos, assim como as revistas semanais começaram a editar resenhas, artigos, ensaios, opiniões, promover debates sobre os enigmas do fogo. Num artigo da Folha, o articulista dizia que a Física moderna considera o fogo uma manifestação do quarto estado da matéria: o plasma. Não confundir com o plasma biológico. “O fogo é um plasma em baixa temperatura”.

A imprensa explora o sensacionalismo implícito nos casos de CHE, denominando-os de “casos malditos”. O “British Medical Journal” republicava a conclusão de uma pesquisa antiga, de 11 de janeiro de 1936, quando um grupo de cientistas chegou a conclusão de que a CHE era uma força natural desconhecida. Algumas tempestades de fogo surgiram em vários pontos do globo. Alguns articulistas lembraram que a cidade de Chicago havia sido destruída nos dias 8 e 9 de 1871. A destruição foi acompanhada de catástrofes a exemplo da destruição da pequena cidade de Peshtigo. Em Chicago, quase  dezoito mil imóveis foram destruídos, morreram 250 pessoas. As pedras mais refratárias queimaram. Segundo artigo de Jacques Bergier na revista Planète, criada por ele e Pauwels, na França em 1960:

“O fogo tinha uma cor ora normal ora vermelha ou verde. Não se encontrou jamais nem causa nem sombra de uma explicação. Qualquer coisa no ar alimentava esse fogo que não era como os outros fogos. Se o pó de alumínio e de magnésio já existisse no tempo do incêndio de Chicago, se poderia crer que um estoque tivesse pegado fogo, mas esses pós ainda não existiam.”

O artigo de Bergier estava documentado com o testemunho do piloto de um avião experimental norte-americano, X-15, que havia observado uma tempestade de fogo a uma altitude de quase 246 700 pés. O piloto Joe Walker mostrou as fotos, mas não formulou nenhuma hipótese. A conferência dele foi amplamente noticiada pela “Asssociated Press”, em 11 de maio de 1962.

O astronauta John Glenn declarou que o problema merece um estudo sério e que há concentrações de energia radiante também na estratosfera (há 12 000 metros, onde há, principalmente nitrogênio) e em outras áreas no espaço além aeropausa. Tais concentrações não poderiam atravessar milhares de quilômetros de ar denso para incendiar, cidades nos Estados Unidos, Inglaterra, Espanha ou Portugal. No País de Gales, o jornal “Eco de Liverpool” noticiou, em 18 de janeiro de 1905, que “toda a região estava em mãos de forças sobrenaturais”. O “Times” de 7 de abril de 1947, citou o caso de Woodstock. O inquérito policial mostrou os incêndios que os bombeiros não conseguiram debelar, não tinham sido criminosos e sim naturais.

As reportagens a propósito da CHE causavam estranheza no mundo científico, desde que o corpo humano é composto, sobretudo, de água. Ele não é naturalmente combustível, mas os casos de Combustão Humana Espontânea eram tantos, no segundo quartel do século XIX, que mereceram pesquisa e relatório da Academia de Ciências da França, em 1833. Em 1885, em seu “Tratado de Medicina Legal”, o doutor Dixon Mann descreve com minúcias, a partir de rigorosa pesquisa científica, o caso que horrorizou os vizinhos, os repórteres dos meios de comunicação e toda a comunidade rural dos Estados Unidos. A história, até hoje inexplicável, de um fazendeiro norte-americano que, simultaneamente à sua mulher, incendiou-se. Considerou-se que os corpos haviam atingido a temperatura de 1 800 (mil e oitocentos) graus centígrados. O mais estranho é que nenhum dos objetos próximos aos corpos foi atingido pelo fogo.

As mídias escritas, e as outras citavam casos passados e hipóteses. Dentre estas, a de que o hidrogênio era liberado da água que contém o corpo humano, e dessa forma, os tecidos que se concentravam nas cavidades do corpo pegavam fogo. O absurdo dessa teoria estava em que é preciso uma energia inacreditável para liberar o hidrogênio. Este, uma vez liberado, não há porque ficar concentrado num mesmo local (o corpo), desde que é mais leve que o ar.

O escritor inglês Eric Russel, colecionador de fatos estranhos, no livro “Mistérios Inexplicáveis”, narrou que no dia 7 de abril de 1938, um marinheiro do navio inglês “Ulrich” estava calcinado na cabine de pilotagem. Ele se chamava John Greeley. Não era alcoólatra nem fumava. Os instrumentos da carlinga estavam todos intactos. O soalho encerado e os sapatos da vítima estavam ilesos. No mesmo dia, um caminhoneiro foi encontrado calcinado nos destroços de seu caminhão capotado. Nada mais no veículo havia se incendiado. Ao lado do motorista, uma larga mancha de óleo que não havia se inflamado.

Um dos articulistas do Estadão escrevia uma série de artigos intitulados “Os arcanos da CHE”, que de todos os espantosos testemunhos, um se destacava dos demais. E citava o americano Peter Vesey, que, em 1930, promovia um estudo sistemático da Combustão Humana Espontânea. Um dia ele pediu que a mulher e o filho se ausentassem do apartamento por algumas horas, durante as quais ele tentaria uma experiência. Quando a família voltou à residência encontrou-o calcinado. Os papéis dele que estavam a menos de quarenta centímetros do corpo parmaneceram intactos. Ele havia encontrado e reproduzido a causa das combustões humanas?

No dia 1° de julho de 1951, a senhora Mary Hardy Reeser inflamou-se em São Petersbourg, na Flórida. Restou delas um punhado de cinzas e a perna esquerda intacta até o joelho. Um dos agentes do FBI que investigou o evento disse: “Tudo se passou como se a senhora Reeser tivesse engolido uma pílula que liberou energia atômica”. Não existe esse tipo de pílula, nem de napalm, fósforo ou magnésio. Há quarenta centímetros do cadáver uma pilha de jornais estava a salvo.

As hipóteses, muitas, nenhuma delas conclusiva. Um corpo humano não pode liberar energia elétrica suficiente para se consumir ele mesmo. Seria preciso que o corpo humano, nesses eventos, exalasse energias totalmente desconhecidas pelos estudos experimentais. Uma revista semanal publicou que o doutor Gustaf Stromberg, astrônomo de Monte Wilson, publicou uma tese científica no gênero no “Newspaper of the Franklin Institute”, que se encontra arquivado no volume 239 do mesmo, páginas 27 a 40. Einstein, na época, se interessou por vários desses trabalhos publicados em 1950, apesar de serem teóricos, sem configuração experimental.


JUSSARA  E  VOLTAIRE

Rossi lembra-se, há dois meses, quando Jussara, a filha de 25 anos, chegou apavorada da faculdade de Química, após ser informada por amigas, que Juan Joseph Voltaire, um aluno de pós-graduação do curso de Geopolítica da USP, havia sido reduzido a cinzas num salão de exposição da faculdade de História. Ele apreciava instantâneos fotográficos de ruínas de uma cidade pré-colombiana. As fotos em preto e branco eram flagrantes ampliados da viagem de um fotógrafo argentino.

Jussara namorou JJ Voltaire, a vítima, daí ter ficado mais chocada. Rossi acha curioso que esses acontecimentos ainda não tenham merecido uma série de reportagens. Ele acredita que os leitores precisam saber mais sobre as causas desses sinistros. Quem sabe explicar ao certo, por que pessoas, supostamente saudáveis, viram cinzas em poucos segundos? Convence-se de que é preciso, urgente, desvendar esse mistério. Em salvando-se o corpo, mesmo que de uma maneira provisória, se salva também a alma dos sobreviventes do atual surto de CHE ?


SÍNDROME
DE  PÂNICO

Hélio, sócio de um escritório de consultoria jurídica, mantém a filha de 21 anos, estudante do segundo semestre do 3º ano do curso de Direito na PUC, como secretária. Após ter presenciado Hallma incendiar-se, sabedor de outros casos de combustão espontânea, passa a frequentar a Igreja do Salvador dos Últimos Dias. Por trás desse motivo aparente, se oculta outra motivação: pertence ao grupo das relações de risco, transa com garotas de programa.

Uma hora após fazer doação de sangue no hemocentro do Hospital das Clínicas, em vez de receber o cartão de doador, chega um e-mail solicitando que se dirija a um banco de sangue na Av. Angélica para confirmar o resultado da análise sanguínea. Precisa fazer outra colheita e esperar mais dois dias pelo novo resultado.

Imagina estar soropositivo. Não poucas vezes as camisinhas usadas nas transas de motéis, rompem. Quando isso acontece não há como reverter a situação de risco de contaminação pelo H3V e derivações inusitadas do vírus.

Logo agora! Falta menos de um ano para a aposentadoria. Passa a usar a Igreja para disciplinar a sexualidade e os excessos alcoólicos e de outras drogas. Quer reaproximar-se do Criador, pedir perdão pelos exageros, força moral para frear as taras em noites de lua cheia. A igreja segura os piques do pânico.



RASTEANDO
CINZAS

Rossi telefona da redação do jornal para a filha Jussara. Indaga se conhece os pais de JJ Voltaire.

— Você o frequentou? Sabe onde mora? Quero saber: namorou ele? Transou? Fica ligada, essa coisa pode ser contagiosa, quem vai saber ao certo? Rossi cala as indagações que possam violentar a intimidade da filha.

Acha ridículo insinuar que combustão espontânea possa ser transmitida por contágio, como se fosse vírus. Paciência, poderia ter improvisado melhor argumento.

— Sim, responde Jussara, namoramos por dois meses. A família dele  mudou de endereço. Que é isso, pai, todo mundo sabe que combustão espontânea não contagia.

— A exposição de fotografia mantém um livro para registro do nome e endereço dos frequentadores? Posso ver se ele preencheu esses dados, se tem um vídeofone?

— Vejo isso hoje mesmo para você, pai. Calma, mais tarde a gente conversa. A idéia é boa, ele pode ter subscrito o novo endereço.

— Certo, vou chegar tarde...

— Se não cruzar com você, fica um bilhete na mesinha do vídeofone. Escrevo o que tiver anotado no livro de presença da exposição, certo?

— Tudo bem, até.

— Beijim, tchau-tchau.



VÊ SE
DESENCANA

Lisabeth chama Sabrina, 21, que está há mais de duas horas conversando no vídeofone com o namorado:

— Dá um tempo, mãe, estou falando com o Jamil.

— Não vai parar, Sá? Teu pai está chegando, ele não gosta de esperar. Você sabe, está ficando cada vez mais irritado por pouca coisa. Mais de duas horas de masturbação verbal. Amenidades. Não ouvi uma palavra que pudesse interpretar como conversa de bom senso. A conta do vídeofone vai estourar outra vez. Nossa! Não ensinam nadinha nos colégios? As fofocas de minha filha parecem as candinhagens avançadinhas de minha avó. A distância entre as idades e a cultura, em nada melhorou a cabeça dela.

— O intervideofone está chamando, deve ser ele. E você ainda não está pronta.
— Estou mãe, tô pronta sim. Atendi o celular aqui no quarto. Falar no videofone não me impede de me vestir.

— Estamos descendo, Leo. Lisabeth fala no intervídeofone. Sim, Jamil vai nos encontrar no shopping.

—  O carro está no calçadão da academia de ginástica. Enquanto desliga o vídeofone público, Leandro mentaliza: Sabrina será melhor se desencalhar logo. A faculdade de administração é apenas um pretexto para fisgar um trouxa mais ou menos abonado. Vai torrar a grana dele nos shoppings. Sabrininha, querida, quem te comprar vai pagar caro. Senão a vida toda, que ninguém é de ferro, uma boa parte de seus dotes.



O
PACIENTE
IRLANDÊS

Uma hora e meia depois, no Gran West Plaza Shopping, após comprar quatro ingressos para o filme “O Paciente Irlandês”, Leandro senta-se com a mulher e a filha em volta de uma das mesas da Praça da Alimentação, onde ficam tomando chope, refrigerantes, e consumindo uma pizza fatiada de escarola, à espera de Jamil e da sessão das 21:30 começar. O namorado de Sá se junta ao trio nos comes e bebes e comenta:

— Este filme lembra o nome de outro a que assistimos há alguns meses, “O Paciente Inglês”, numa retrospectiva de filmes da última década do milênio anterior.

— Vi com você, lembro dele.

— Vi esse filme, diz Lisabeth, sem memorizar enredo ou personagens.

— Vimos, o cara era um gato.

— Hun! Rumina Jamil. Esta é a avaliação que ela faz da maioria dos filmes. Contava a história de um marido traído que se vinga da esposa e do amante, forjando um acidente na aterrissagem de um monomotor no deserto do Saara, no final da II Guerra Mundial. O marido morreu no acidente, o casal de amantes sai ileso do impacto. O nome do cara...Um aristocrata... Almasy... Isso mesmo está a serviço da Real Sociedade de Geografia. Ele vai buscar socorro para a mulher acidentada, através do deserto, mas não volta a tempo de resgatá-la com vida. A direção de Anthony Minghella.

— Isso mesmo, aprova Leo. Lembro das pessoas da platéia comovidas com o enredo, choramingando, passando a ponta dos dedos abaixo dos olhos para disfarçar a garoa de lágrimas. Um drama chorôrô para a glória da bilheteria e da conta bancária do produtor.

— Chorei sim, foi um filme muito bom mesmo, diz Sabrina.
— Este também é um drama, passado durante a 3ª Guerra do Golfo, opina Lisa. Internado com queimaduras por todo o corpo, ele conta a história do namoro para a enfermeira. Vamos, a sessão está começando. Você, hein Sá? Chorar não é motivo para se achar um filme bom. Um comentário inteligente não digo, seria exigir demais de você, mas menos tolo, minha filha. Uma vezinha, por favor, seja menos superficial, menos boba.

Aconchegam-se em quatro poltronas da sala de projeção. Após 15 minutos de propaganda e thrillers, o filme começa. Sabrina e Jamil trocam beijinhos, carícias, palavras murmuradas ao ouvido. O filme na tela, o enredo dosado, com suspense, mantém a platéia atenta. Sá sente a pele aquecer-se com a proteção do corpo enamorado. Na tela, uma mulher pálida, apavorada, contempla hipnotizada, a imagem obscurecida por uma feição vinda do outro lado da superfície embaçada do espelho. Quem?

Os olhos da intérprete começam a serem penetrados por uma tênue névoa que, após se adensar por toda a superfície refletora, alonga-se rumo às pupilas. Finos tentáculos penetram a mente indefesa da personagem. Súbito, a persona cinematográfica desperta do sono para o sonho da realidade. Sai do encanto de Morfeu na direção das surpresas do quotidiano. A platéia aprova, num murmúrio coletivo, de momentâneo esvaziamento da tensão.

Sabrina aperta mais os dedos de Jamil, busca proteger-se da concentração intensa, física e mental, dos nervos retesados como cordas de uma guitarra sendo dedilhada como nos antigos tempos de Hendrix ou Clapton. Ela sente uma carga extra de estranha energia, proveniente de uma força vinda de um forte campo tensorial alhures. Sente que os dedos do rapaz correspondem, apertando-se ainda mais aos dela num morno, abandonado e idílico contágio.

No écran, fascínio, possessão e transfiguração da principal personagem feminina, até que, para alívio dos mais tensos na platéia, o surpreendente final é  substituído pelos créditos da produção. As luzes acendem, os espectadores começam a sair da sala de projeção.

Sabrina levanta-se acompanhada dos pais. Chama a mão de Jamil para si, sente certa pressão no braço, volta-se para olhar, emite um incontido “ai meu Deus”. Em seguida abandona-se ao fascínio macabro ao encarar a mão descarnada do namorado frente ao rosto, juntamente com um pedaço do braço queimado de Jamil. Ela oscila por segundos, como se não acreditando. Começa então a balançar, a sacudir desesperadamente o braço. Deseja livrar-se a qualquer custo do adereço macabro, ao sacudi-lo com extrema aflição, para cima e para baixo.

Desespera-se, grita, berra, precisa desfazer-se do apêndice funéreo, fortemente agarrado ao pulso da delicada mãozinha de namorada em estado de choque. A comoção horrível, maior que suas forças, desmaia.  As pessoas observam a garota desacordada que há pouco sacudia histericamente a mão cremada do namorado, no esforço de fazer sair entrededos, as cinzas do que restou dela. O braço de Jamil e o resto do corpo, reduzidos às migalhas, desfazendo-se frente ao olhar estupefato dos espectadores.

O medo real, a flagelação dos sentidos. Eles aterrorizaram-se com o padecimento atroz da garota, com este pavor que poderia estar acontecendo apenas na tela, enquanto obra de ficção. Os espectadores estão confusos com esse espetáculo macabro materializando-se frente aos olhos. Como se a realidade fosse um subproduto do que acontecera na tela. A pressão arterial cai, o colapso circulatório faz com que perca a consciência. Sabrina está em algum lugar muito, muito distante. Talvez sem volta.


O PULSO
DA HALLMA

Rossi, ao chegar ao apartamento, lê o bilhete da filha: “Alguém substituiu o livro de assinaturas por outro. Como a exposição de fotos está nos primeiros dias, não sei ao certo por que, ou quem fez isso. Vou obter o endereço com Isaac Rondon, um estudante de Geopoligrafia que se interessava pela tese de mestrado de JJ Voltaire. Não sei ao certo, acho que sobre cidades pré-colombianas perdidas na selva amazônica. Quem substituiu o livro não queria que soubessem dele. Meio misterioso, não? Beijo. Até.”

Ao preparar uma dose de JB com bastante gelo, Rossi conclui que o dia não foi promissor, com um calor de 40º que em nada ajuda. No Hospital das Clínicas, um muro de silêncio: nenhum médico ou enfermeira informou sobre a internação de Hallma. Nenhum soube dizer em que apartamento ou enfermaria está, ou esteve, internada. Se as queimaduras foram graves, se já obteve alta. Nada. É como se Hallma nunca houvesse existido.

O diretor-secretário do Conselho Editorial do jornal de Rossi, marca uma entrevista com o Superintendente do HC, dr. Albertinotti Karamurinja. Está na agenda para amanhã as 10:45. Às 11:45 do dia seguinte, o jornalista adentra a sala do médico.

— Desculpas por tê-lo feito esperar. A princípio mostra-se reticente, aos poucos vai se familiarizando com as perguntas.

Karamurinja afirma ao jornalista que esses casos de combustão humana espontânea não são normalmente divulgados, simplesmente não fazem parte do ensinamento acadêmico:

— Há poucas semanas, nem se sabia ao certo se existiam realmente, se não passavam de especulações de lunáticos.

Alega inexistir uma teoria coerente para analisá-los. O médico justifica o silêncio em torno dos casos de CHE:

— Não pretendo emitir opiniões precipitadas, nem espalhar pânico com explicações pouco ou nada científicas.

Uma hora depois do início da entrevista, o jornalista pergunta sobre o estado de saúde da stripper que havia sido trazida na madrugada de sexta para sábado, passada já uma semana:

— A stripper Hallma, ninguém parece saber nada sobre ela. No entanto, eu estava na boate quando aconteceu o sinistro.

Karamurinja vacila, como se fosse dizer uma tolice, mas acaba por falar que a stripper, quando chegou ao HC estava reduzida a pó:

— O médico de plantão atormentou-se ao sentir o pulso da mulher desfazer-se sob a pequena pressão dos dedos. O protocolo de entrada e internação da paciente, nem chegou a ser preenchido. Ela era apenas um amontoado de cinzas.


DO ANTIGO AO
NOVÍSSIMO TESTAMENTO

Domingo, às 8 horas num dos templos da Igreja do Salvador dos Últimos Dias, Sheila, a mãe; Carla, a filha; Eduardo, o filho caçula, e Hélio dirigem-se às respectivas salas de doutrinação. Sheila sente-se à vontade no papel de mulher eventual: da outra, da mãe  e da dona de casa.

Ela aceita passivamente ter nascido para domesticar os filhos. Apesar de saber que não vai conseguir, fará todo o possível nesse sentido, ao transferir para esse objetivo toda a sexualidade reprimida que ficou a meio caminho de desenvolver-se. A intensidade dos desejos irrealizados, canalizada para a “educação” das crianças e a administração do lar. O fanatismo doméstico da mulher impeliu o marido aos contatos frequentes com a prostituição feminina bem remunerada.

Em Hélio, o apetite sexual não domesticado, ferve, quando longe do ambiente íntimo ascético, das roupas, toalhas e panos de prato super limpinhos e arrumadinhos. Ele cisma com as vestimentas impecáveis dentro das gavetas dos armários, cômodas e guarda-roupas. Limpeza e esmero são partes da decência e da honradez familiar, mas irrita-se com as demonstrações de excesso. Uma certa intensidade instintiva requer mais que esse ambiente de excessivo zelo.

Ah ! Agora esses pensamentos. Estar soropositivo é um castigo por ter me afastado dos limites impostos pelas leis da vida familiar. A lei é dura mas é lei. Mulher e filhos para manter. Senhor, permite que não esteja com a peste. Hélio faz novos testes de sangue, em trinta horas saberá o resultado. Pensa que deve se conformar à idéia de estar contaminado.

Apavorado, não pode evitar o fluxo de pensamentos de autocensura. Teme, não a Aids apenas, mas os perigos de uma das variantes fatais, em curto prazo, contra as quais não há coquetel de medicamentos que possa conter a progressão rápida e deletéria dos sintomas:

Não teriam solicitado outro exame para confirmar os resultados. Os Princípios dos Evangelhos ensinam o arrependimento, mas como me arrepender dos melhores momentos de prazer, fora da assepsia do ambiente domesticado do  larbirinto?

A alegria desapareceu, como por um milagre às avessas, das festas de aniversário e comemorações do calendário. As dez horas começa o culto público da Igreja. O ritual litúrgico, os depoimentos de fé dos irmãos, os supostos acontecimentos milagrosos narrados em voz embargada pela emoção, a leitura de versículos, os discursos pastorais, as orações.

Antunes, o Bispo, conhece a Bíblia como só os doutos rabinos ortodoxos de Israel. Ou os aiatolás as Suratas do Alcorão. Raros são os pastores pentecostais e evangélicos que possuem graduações, em Teologia (mestrado e doutorado), e outra em Administração de Empresas.

No discurso dominical, Antunes enfatiza a “chegada da hora dos filhos atenderem o chamado do Pai”. Os filhos da raça humana, segundo ele, estão prestes a abandonar esta morada:

— São muitas as moradas do Pai. A Terra está superpovoada de dor, ressentimentos, negação dos ensinamentos dos profetas. Antunes magnetiza a platéia:

— O Filho do Homem pregou, sofreu, morreu para nos doar a chance de ter uma alma íntegra e sã, para migrar em direção às outras moradas, numa outra dimensão de existência. Que aconteceu com nossa alma pessoal? Com nossa alma coletiva? A morte é uma porta que se abre. Desta vida nada se leva, exceto transcendência espiritual. Quando a temos, o espírito encontra forças para sair da atração magnética deste planeta.

Perguntas dramáticas ecoam no silêncio interno da arca do templo. Apenas a persistente tosse de uma criança se faz ouvir. O discurso de Antunes prossegue veemente:

— A raça sapiens/demens degenerou-se, e ao meio ambiente, de forma irreversível. Mas para a generosidade de Deus não há limites. Perguntem-se: Quem danou minha alma e fez meu corpo a morada de interesses que nada têm com minha vontade nem com os desígnios do Pai?

O pastor silencia, ouve a expectativa calada dos fiéis:

— Perguntem-se: Quem perdeu minha geração e a geração de meus filhos? Quem lançou sobre eles a maldição do querer ter sempre mais, como se esta fosse a finalidade única, maior, definitiva, da vida? Quem transformou cada um de vocês em mercadores do Templo Terra? Que acham vocês que a conquista de Lua fez pelo homem, pelo mundo, pela raça humana? Na realidade, pouca coisa a mais do que dar pulinhos e fincar nela, pela primeira vez, a bandeira americana.

Parte dos discursos de Antunes normalmente permanece incompreensível para as pessoas mais simples da Igreja e até para as mais cultas. Interroga:

— Que têm as promessas do Pai com a degradação da natureza e da natureza humana? Quantas horas você passa em frente à tv, a degradar a condição espiritual? A alugar os sentidos para o ibope mais favorável? Quantas horas os filhos passam frente à telinha do computador, interessados unicamente em servir a um deus ex-máquina?

Após explicar que um deus ex-machina, no antigo teatro gregoromano, era personificado por um ator trazido à cena por meio de artifícios, que este ator agora é personificado por computadores de uma tecnologia cada vez mais avançada, de última geração, prossegue:

— As gerações passam, mas a Terra continua. O Amor infinito do Criador trouxe o homem para este planeta. Mas a criação está destruindo cada vez mais e de maneira mais selvagem, os reinos deste Templo Terra. Milhares de espécies de aves, animais e plantas, terrestres e aquáticas, foram ou estão em fase de extinção. Estas espécies também são criação do Pai. Os homens não conseguem conviver pacificamente entre si, nem preservá-las. A cada dia a ação predadora do animal sapiens/demens faz desaparecer, criminosamente, 300 espécies de animais e vegetais.

Antunes baixa a tonalidade, recomeçando outra vez a preleção, cita o antigo professor de biologia, geologia e história da ciência na "Harvard University", Stephen Jay Gould, em meio a argumentos de verdade religiosa:

— Acreditamos em Cristo, mas sabemos que seus ensinamentos foram esquecidos, ridicularizados, principalmente por aqueles que se dizem seus representantes, bispos e pastores de diversas igrejas. O homem parece seguindo uma espécie de inteligência, um intelecto que não tem nenhum compromisso com a sobrevivência de sua espécie, das outras espécies que com ele convivem. O que chamam de progresso é um atalho para a sua própria extinção.

— Deus ama o homem sim, mas não a compulsão que destrói a vida natural e suas possibilidades. Não a compulsão que cria doenças e sofrimentos que a ciência médica não cura. As leis que garantem a permanência do homem sobre a Terra são mais antigas que o Sol e a Via Láctea, mas estão cada vez mais intensamente desprezadas. Todos os dias os homens dizem não a essas leis, como se tivessem sido feitas para não serem seguidas.

— Se a percepção do homem é falha em tantas e inumeráveis coisas, por que não haveria de ser na compreensão do que está reservado para o final da civilização neste planeta? Vocês estarão se perguntando: “De que maneira o Salvador vai agir para acabar com os sofismas que têm destruído a sua e as outras espécies”?

— Não, não será nada espetacular, sem sensacionalismo religioso. De modo que, rabinos, aiatolás, monges, padres, pastores e outras lideranças religiosas, não possam aumentar de maneira oportunista seus faturamentos em dinheiro, com o aumento do medo, das tensões, da dor, das agressões subreptícias ao bolso e às economias dos fiéis. Quem sabe, Ele possa fazer o milagre de unir os seres humanos, em seus últimos dias, numa solidariedade sem demagogias.

— Vocês estão aqui pelos mais diversos motivos, não por serem puros e humildes de coração, pensamentos e ações. No tempo do Êxodo, em ocasiões remotas, o Pai tinha por intermediário os patriarcas, os profetas, os homens de fé: Abraão, Isaac, Jacó, Moisés, Josué, Davi, Isaías, Ezequiel, Daniel, Salomão, Jó, Oséias, Jonas, Naum, e tantos outros mencionados no Antigo Testamento.

— No Novo Testemunho, João Batista, Mateus, Marcos, Lucas, João, Tito, Tiago, Pedro. No Novíssimo, profetas e homens de Deus, Néfi, Jarom, Mosias, Helamã, Moroni e Joseph Smith, clamam à alma do homem, e a seu corpo, a volta ao Caminho.

— Mas quem poderá ouvi-los e seguir a Senda, se na vida moderna não há tempo para a meditação e a prática dos ensinamentos sagrados, senão para o esgotamento das energias do corpo e da alma na faina impetuosa, nas lidas diárias pelo aumento selvagem dos lucros, pela conquista de espaço para produtos industrializados, granjear o mercado, da pipoca importada à tecnologia bélica de domínio dos satélites.

— Qual o templo do homem moderno, de seus descendentes? Para onde são conduzidas as ambições, o melhor dos esforços, das metas, senão para os shoppings, as casas noturnas de diversões, a tv de 91 polegadas, as disneylândias, os comerciais de tênis, a glorificação da tecnologia, a robotização da vontade.

— Onde está a alma do homem moderno e a de sua descendência, senão na propaganda de bancos, de imóveis, seguros para carros e planos de saúde? Planos que  excluem atendimento a doenças que não têm cura. As que mais precisam de tratamento. Vocês acreditam que a alma e o coração do homem podem ser salvos por uma equipe médica num helicóptero?

— A alma do homem moderno é uma caixa de Pandora, uma sucessão infindável de males, injustiças e infortúnios.

O efeito das palavras do Profeta Antunes se faz sentir, a atenção é total. O discurso continua, as dúvidas dos fiéis se transformam em perguntas não verbalizadas.

— Vocês estão aqui porque, de alguma forma, fazem parte dos escolhidos, dos privilegiados pelas promessas e profecias. Há aqui algum covarde com medo de renascer para a vida em outra morada do Pai? Sim, porque a velha Terra não mais serve a Seus desígnios. A velha Terra está perdida, satanizada. Satã e suas legiões dominam a alma coletiva do homem transformada em mercado. Os mercadores do Templo Terra ganharam você, você, você e você. Ganharam todos, até a mim, homem que vive segundo a palavra dos Evangelhos. Não há inocentes. O justo paga pelos pecadores.

— Há nesta Igreja alguma alma tão vazia de sentido e digna de piedade, que ame estar a serviço da avassaladora lavagem cerebral da propaganda, que atrai seus filhos, com todos os adereços dos bezerros de ouro neo-pós-liberais da atualidade globalizada?

— Por que suas vidas perderam o sentido? Por que seus filhos se afundam nas drogas? Porque as mídias mostram todos os dias que os pilotos que fazem rodar os carros a mais de 350 km/ph nos traçados dos autódromos para justificar os anúncios da cultura globalizada.

— Há alguém aqui tão alienado que não seja capaz de sentir-se o que realmente é? E o que você é, senão uma mercadoria que consome outras mercadorias? Quem está por trás da mercantilização de sua alma? O culto aos megaatletas, aos megaempresários, aos megasalários, aos mega-shows-off, aos iletrados cantores caipiras e de rock.

— O homem transformado num animal doméstico, a cultuar músicas de roça, para deleite de mentalidades colonizadas pelas rotinas da sala de jantar: beber, comer, arrotar, ir ao banheiro, fazer amor. As rotinas todas da tv que fazem as pessoas vazias e tolerantes.

— Sim, porque cada um de vocês, de seus vizinhos, seus professores nas escolas, seus pais profissionais liberais...Cada um de vocês não é mais que um idiota, por não conseguir ganhar os salários dos Billgathes, Spihellbergs, Steinbruches, Schumatchers, Kuerthens, das Xurxux e Ronalditos. Por não conseguirem as contas bancárias dos Lalaus, Gracciolas, dos Ejotas, verdadeiros ídolos dos costumes políticos domésticos sem espiritualidade. Vontades passivas às ingerências dos tchans, da dança da garrafa. Seus olhos estão fixados não em  interesses, enquanto pessoas, enquanto coletividade, mas na ração diária dos noticiários das desgraças, da criminalidade, de uma cultura da quantidade, gerida pelo mercado, sem transcendência, sem alma, sem Deus.

— Alguém nesta Igreja acredita que o caminho ensinado por Cristo e pelas Escrituras é o consumismo desvairado, as perversões humanas? O que faz, o animal homem, do livre arbítrio? É certo que a opção pelo mal não terá um futuro em longo prazo. É chegado o momento do Salvador intervir.

— Chegou a hora do ser humano desabitar este planeta dominado por forças luciferinas, pelos excessos de horrores, de sofrimentos, de derramamento de sangue. Está próxima do “dia D”, a data terminal, o fim do exercício do megaegoísmo, da ultraganância, da globalização satanizada, do vampirismo político-econômico internacional.

— Os sinais estão presentes, o fruto está maduro, o tempo é chegado. Mais simples e surpreendente do que a mais inusitada ficção. No Gênese lemos que Deus criou o homem e a mulher. Hoje, na Gênese do fim, lê-se nos sinais que, em breve, não haverá mais nascimentos, a esterilidade da fêmea humana não propiciará descendentes. À reprodução dos modelos de degradação da realidade do homem e do meio ambiente gera consequências imprevisíveis.

— A realidade ganhou o direito de ser mais inverossímil do que as invenções mais avançadas da tecnologia. A Lei da Causa e Efeito está começando a se cumprir. O tempo do Homo sapiens/demens esgotou-se neste Templo Terra. O atalho agenciado pelos progressos do “Reich dos Mil Anos” terá fim.

Do resumo deste discurso, os fiéis compreendem: a Terra é apenas uma das muitíssimas moradas do Pai. As profecias e promessas do Criador vão se cumprir sem traumas, catástrofes espetaculares e admiráveis. Deus simplesmente fará com que as ilusões luciferinas de consumo sejam extintas, por falta de continuidade genética da espécie. A raça humana será substituída por outra raça neste planeta? De que forma? Sobre essas coisas o pastor Antunes nada disse.

A família de Hélio sai da Igreja com a sensação de que não absorveu adequadamente as mensagens, de que alguma coisa está por ser dita e acontecer. Algo importante e decisivo foi afirmado apenas nas entrelinhas. As palavras do pastor são como um puzzle sem todas as peças. Há uma promessa de redenção, mas ela permanece vaga para a compreensão dos membros da Igreja do Salvador dos Últimos Dias.


COMBUSTÃO
HUMANA
ESPONTÂNEA

Jussara telefona para Rossi no Jornal. Diz ter conseguido o endereço dos pais de JJ Voltaire com Sérgio Russo, mestrado na área de Geopoligrafia. Rossi dirige-se ao endereço. Encontra um casal sexagenário simpático e receptivo, apesar da recente perda do filho em circunstâncias estranhas.

A dor dos pais do estudante vítima da CHE, está presente nos olhos, nas estrias das faces, na contida e penosa comoção da voz. Convidam-no a entrar no apartamento, em edifício localizado numa rua intranquila no bairro do Alto de Pinheiros. Após aceitar um chá verde, pela gentileza do oferecimento, Rossi entra na intenção da visita, tornando-a menos velada:

— Minha filha Jussara estuda Química na USP, ela e seu filho namoraram-se, tinham afinidades, apesar dos currículos com diferentes orientações disciplinares.

— Sim? Lígia, a mãe, mostra-se surpresa, o marido, Heitor, comenta:

— Ora, não será incômodo se ela vier fazer-nos uma visita. Quando o sr. telefonou, pareceu-me que estava marcando uma entrevista, investigando circunstâncias...

— Faltam respostas. Preciso tranquilizar-me. Acalmar os ânimos. O sinistro que vitimou JJ Voltaire...Tenho me perguntado, “como aconteceu?”, de que forma outras pessoas estão sujeitas a ele?

— De que maneira podemos ajudar? Indaga Lígia.

— Seu filho disse à Jussara está preparando uma tese sobre cidades perdidas na Amazônia...

— Como pode isso se encaixar com o que aconteceu? — Surpreende-se Heitor.

— Não sei ao certo, talvez não. Muitas pessoas estão cercadas por estranhas expectativas. Histórias de ameaças, preconceitos, violências. Essa coisa de combustão humana espontânea, que não tem nada de espontânea, um mistério. Ninguém parece ter uma pista. Nem a investigação policial e científica.

— Ora, ora, quer dizer, o sr. acredita mesmo nisso ou... O homem calou-se. Um reticente e incômodo silêncio seguiram-se à interrupção da fala do idoso. Este jornalista está pensando que sou trouxa? Que está querendo, afinal?

— Ele quer dizer, senhor Rossi. Lígia contemporiza, seu jornal não vai fazer sensacionalismo com a morte de nosso filho. Não é isso, Heitor?

Rossi retoma a palavra para dizer que de modo algum usaria de semelhante e mesquinho oportunismo.

— Que quer dizer o senhor com isto, a tese dele e a morte por, por... Olhando a mulher indaga: como é mesmo? Ela também se engasga nas palavras, como se recusando a acreditar nelas, ou talvez, por elas traumatizada.

— Combustão humana espontânea, pronuncia Rossi. Como podem esquecer dessas palavras carregadas de tantas conotações intensas e presentes?

— Pode uma coisa dessa ter ligação com uma tese de Geopoligrafia? Com cidades perdidas na Amazônia?

— Como vou saber, sr. Heitor? Tenho razões para estar preocupado, poderia ter acontecido, com minha filha, ela também esteve na exposição. Esses incêndios espontâneos, têm sido mais frequentes do que se poderia esperar de um fenômeno, até outro dia, raro. Precisa-se investigar o que pode haver por trás desses eventos funestos.

— Não saberia dizer nada, responde ele, gostaria de ajudar, não vejo como.

— Sobre a tese, há arquivo dela em dvd?

— Sim.

— Posso ter acesso a anotações, estudo, analisar indícios? Daí, uma pista, talvez, possa surgir algo. Uma esperança no fim do túnel.

— Aquele amigo de Voltaire. Virando-se para a mulher, pergunta, qual mesmo o nome dele ? Ah sei, é esse, Janos... Não é mesmo?  

A memória de Heitor, por vezes falha, a mulher, de pronto, ajuda-o a lembrar de nomes e fatos.

— Agassiz.

— Agassiz, sim, isto, esteve aqui ontem. Ligou o computador, veio buscar coisas, DVDs, acho. Interesses de estudo semelhantes, responde a mulher. Conheceram-se na Amazônia, ficaram amigos, Pesquisavam no sentido de descobrir a exata localização de cidades desaparecidas.

— Por favor, a senhora tem o endereço dele, posso anotá-lo?

— Não sei, acho que ele mora na Vila Madalena. Vou verificar nos arquivos de JJ. Se achar, telefono para o senhor amanhã mesmo.

— Obrigado dona Lígia. Esse rapaz, Janos, também estuda na USP?

— Acho que não, falava portunhol, reservado, monossilábico. Contando com ontem, esteve aqui uma... Duas vezes, não é isso Heitor? Ele balançou a cabeça confirmando.

— Cismas de estudantes! Justificou. Os jovens se iludem facilmente. Sabe como é, por vezes acreditam em miragens, tesouros e arcas perdidas, como se fantasias pudessem ser transformadas em realidades.

— Aventura, concluiu a mulher, como nos filmes dos tempos de nossos avós, tipo Indiana Jones. Esse jornalista não sabe como funciona a cabeça dos rapazes? Esperanças, peripécias, proezas, experiências arriscadas, sonhos. Ele nunca foi jovem na vida?

Rossi nota a disposição do casal em ironizar as pesquisas do filho. Como se ele fosse um tonto, perdendo tempo com “bobagens” ficcionais que ficariam melhores num filme de Spielbergson, ou num roteiro de Tarantinoto, tipo “Um drink com Satã”. A dor de ambos, que notou ao chegar, talvez fosse apenas uma empatia imaginária. Agora não sabe ao certo os sentimentos deles.

Estão comovidos, atenuando a própria mágoa. A  intensidade da mesma, se houve, se esvaiu. Não passava de uma encenação, uma farsa? Despedem-se, fica a promessa de, se encontrarem notas manuscritas, ou arquivos informatizados sobre a tese de Voltaire, telefonam.


INCESTO
MACABRO

Sabrina sobrevive em estado psi de letargia, extática e inédia. O corpo não aceita frutas, legumes, sopa, leite ou água. O prolongado jejum não afeta a juventude e a beleza. Sá prossegue jovem e linda, como se não precisasse de nada mais para manter-se viva, do que prana para respirar. Os médicos tentaram alimentá-la com soro. Mas a agulha sempre desconectava da veia até desistirem de repô-la. Analisaram-se os alimentos vomitados: há ausência de qualquer cheiro ou digestão. Seu peso permanece igual, sem atrofia de nenhum membro.

Leo, ao vê-la disponível, indefesa (uma mulher em todos os sentidos), lembra de quando ficava erotizando-se com a filha pequena, sentada entrecoxas, atraída para ele com um chocolate, um brinquedo. Ele a fazia permanecer no colo por tempo suficiente para ejacular no pijama ou na calça.

Ao perceber a adolescente mais linda e acessível que nunca, a paixão incestuosa aumenta. Ela está supostamente indefesa, o corpo ao longo da cama, os membros viçosos, os bicos dos seios redondos, durinhos, róseos, nacarados, um certo convite aos carinhos da língua. Como vai reagir se acontecer, você não vai fazer escândalo, não é filhinha?

Começa a chegar mais cedo no apartamento. Principalmente nos dois dias da semana nos quais a faxineira sai às 18 horas. Lisabeth, a mulher, dá aulas de inglês num instituto de línguas e em um cursinho pré-vestibular. De segunda a sexta, das 15 às 22 horas, está ausente.

Leo, a princípio, fica a contemplar Sabrina, pensando, “que desperdício”. Rumina entredentes: Talvez ela esteja assim por carência afetiva. Sua sexualidade juvenil precisa desenvolver-se. Sim, é isso, o papai vai te curar, filhinha.

Resmungando sacanagens Leandro chega mais cedo, às dezessete. Em uma hora a empregada vai sair. Banha-se e ouve um DVD World Music, Sons de Planeta. 7:25. Entra num hobby, vai ficar em casa. Veste-se outra vez como se fosse sair. Nádia, a doméstica, despede-se, “até a próxima semana seu Leonardo”.

— Meu nome é Leandro, Nádia. Que mulher estúpida. Mais de um ano aqui e não sabe meu nome.

— Até segunda, seu Leandro, desculpe. Um bom fim de semana. Leandro, Leonardo, pra mim não faz diferença, meu salário não vai aumentar se seu nome for Virgulino. Vê se morre esse fim de semana.

Leo destaca uma colher de chá, um açucareiro e a garrafa de uísque com medidor. Faz café com pó moído na hora. Abre uma lata de creme de leite, coloca um pouco de açúcar num copo quente, põe nele duas doses de Logan's, sobre três doses de café. O espaço superior do copo lambuza com creme de leite, enquanto mexe a mistura bem devagar. Sim, está ok. Leo observa satisfeito o creme flutuar na superfície do coquetel, mas sem nele se misturar. “Delicioso”, diz,  molhando os lábios.

Chega ao quarto da filha, senta-se na cama, começa a envolvê-la com os braços, as mãos, a boca, a língua.

— Você está linda, querida, mais do que antes. Está gostando dos carinhos do papá? Vou curar você filhinha. Sei do que você precisa. Após um instante de silêncio, os músculos da moça parecem vibrar levemente. Leo sente nesse brevíssimo tremelicar da epiderme da filha, como se um incentivo. E continua às apalpadelas.

Ela está gostando, cicia, enquanto ingere outro gole do coquetel. As carícias continuam. Sente-se libidinalmente motivado. Pega outra vez o copo em cima do criado-mudo, entorna o que sobrou com um estalo de língua. Volta-se para o corpo inerte da adolescente. Você vai ficar boa, filhinha, papai promete. Juro. Tenho tudo que você precisa.

A jovem está a flutuar a poucos centímetros acima do colchão. Perplexo, Leo admira-se com o fenômeno da levitação. Ao contrário de sentir-se inibido face à extraordinária manifestação de uma força antinatural. Sente-se atraído pelo vinco juvenil, pelas coxas entreabertas, pela penugem do púbis moreno. Extasiado, observa o corpo de Sabrina flutuar, agora, pouco abaixo do queixo. Incentivo à paixão incestuosa.
L
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 23/04/2011
Alterado em 12/12/2013


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