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A MOCHILEIRA (Thundra) III
RUMO
A
PARATI
O fluxo dessas idéias parou quando o coletivo estacionou na rodoviária de Niterói. Um "tx" nos conduziu até à praça com nome indígena, em frente à estação das barcas ("Cantareira"), no centro da cidade, início da avenida Amaral Peixoto. Anoitecia sobre a praça a estátua do índio Araribóia.

No interior da estação das barcas, centenas de pessoas à espera da nau "Icaraí" que as conduzirá até o outro lado da Baía da Guanabara. Nos assentos de madeira da barcaça, sentam-se próximos a alguns hippies com suas mochilas sobre as pernas. A identidade alternativa da aparência sem mimos. Os cabelos longos de quem estão com o pé na Estrada, facilitou o lero.

Disseram estar vindo da região sul da Bahia, do Parque Nacional de Monte Pascoal, a 150 km de Porto Seguro.

—  Santa Cruz, Cabrália Porto Seguro e Prado, precisas vê, bicho, no dizer de Arnaldo. Se existiu paraíso esse lugar é o que restou dele.

— 15 mil ha do pouco mais que sobrou da mata atlântica do nordeste, disse Beto, reserva ambiental dos índios Pataxós. Só vendo cara, vale conferir.

—  Os guias do lugar chamam de "trakking", caminhar pelos pontos mais belezas do pedaço, confirma Eliana. Paisagens incríveis ao longo dos passeios de barco.

—  Vocês estão seguindo pra onde?, pergunto.

—   Na trilha de Camburi, responde Rita.

—   O camping não é em Boiçucanga?, indaga Rogê.

—  Nem Camburi nem Boiçucanga, Eliana arredonda, é na "Ponta da Baleia", pra lá de Boiçucanga e Camburi.

—  Beleza pura, argumento. A carne dura, o grande oceano...

—  A Serra do Mar, Ilhabela, tudo à mão, quer mais mano? disse Rita,  abrindo-se num sorriso.

—   O camping melhor do lugar é o dela, Eliana sorri, olhando para Rita.

—  Fosse só meu, explica ela, com sotaque de descendente de italianos. O espólio das terras é pra dividir entre quatro "fratellos".

—  Lugar ideal para marcar encontros com a lua, poetisa Amô: fauna, flora, sol, mar, natureza.

Pelo lero ameno, essa turma vai estabelecer uma base de vida natural. Ouvir, nas manhãs, tardes, noites e madrugadas, livres da rotina da metrópole cansada, a mais afinada orquestra sinfônica universal: as ondas modulando as marés na areia das praias. O vento regendo o movimento das folhas nas árvores. O ritmo do canto dos pássaros plasmando inusitadas harmonias sob a batuta da natureza. A riqueza de timbre dos insetos. Uma fruta madura a despencar no chão.

O cão ladra. As estrelas brilham. A chuva chove, o sol bronzeia e aquece. A gata no cio mia de prazer. Um pássaro diurno cisma em cantar noturno. Peixe fresco de manhã. Mariscos na Vila Caiçara. Na sombra farta das amendoeiras escondem-se casas atrás das cercas de bambu. O luar.

Aparentes amenidades. Que censura pode haver para quem simplesmente deseja harmonizar-se com esses ritmos? Trocamos este tipo de figurinhas nos vinte minutos do percurso desse trecho da Baía da Guanabara. Chegamos à Praça Quinze, o contato virou lembrança, despedida.

—   Até mais vê, gente.

—   Dá notícias.

—   Apareçam por lá, vocês vão gostar do espaço.

—   Você, hein, vejo vocês breve.

—   Telefona.

—   Chega mais.

—   Vamos ver.

—   Tchau-tchau.

A seqüência agora está em rumar direção ao Recreio dos Bandeirantes. Na Barra da Tijuca, perto da Pedra da Gávea, existe uma área de camping. Seguimos de "bus" até o Leme. Vamos dormir num apartamento de hotel modelo "tira-bota", cama e colchão comuns. Despertamos ao entardecer do dia seguinte. Fomos comer uns pratos feitos de comida árabe num lugar chamado "Beco da Fome".

Como diria Shakespeare, "o melhor tempero é a fome". Maior parte dos freqüentadores das lanchonetes do "Beco da Fome", tinham fome mesmo, ou "larica". Daí o nome "Beco da Fome". Próximo a ele há o Cinema 1, na av. Prado Jr. que exibe filmes de autor. Pagamos ingresso para assistir "Fahrenheit 451", dirigido pelo cineasta francês François Truffaut, baseado num romance de ficção científica de Ray Bradbury. Valeu.

O filme narra a história de uma época "futura", em que a maior parte do aparato tecnológico repressivo da sociedade, está empenhado em perseguir e eliminar as pessoas que lêem e as que escrevem livros. Nessa sociedade não há crime mais hediondo do que obter conhecimentos através de livros.

Há nela um corpo de bombeiros às avessas. Sua função social é queimá-los. Um dos bombeiros começa a escondê-los na roupa. Leva alguns livros para casa e começa a ler. Transforma-se num criminoso porque, ao contrário de incinerá-los, adquire conhecimentos "subversivos", reforçando com eles a individualidade.

A crítica à sociedade atual é evidente. Há repressão política e econômica à leitura de livros. Quantas pessoas das que viram o filme leram o romance de Bradbury? A edição brasileira de "Fahrenheit 451" chegou a vender três mil exemplares? O encalhe da edição corresponde a quantos livros?

Estas são perguntas que todo espectador que compreende os questionamentos do filme se faz. A conclusão óbvia é que há uma política editorial contra a sociedade brasileira. Num país de 170 milhões de habitantes, as tiragens médias de livros que não são meramente didáticos, chega, quando muito, a dois mil exemplares.

Compramos os ingressos, o filme estava mais para o fim do que para o começo. Na sala de espera ficamos conhecendo Ana e Ciro. Disseram estar vindo de Niterói, seguindo em direção a Parati. Viajavam de Kombi. O casal ficaria mais dois dias na cidade do RJ, até descolar uma coisinha que um conhecido vapor (“tamborim-man”) ficou de vender para ele.

Falei de minhas, agora trinta gramas, da "real". Uma "cannabis" tipo manga-rosa. Posso fazer-lhes uma presença.

—  Tudo bem, anima-se Ciro. Depois de amanhã, na "madruga", a gente vai seguir em direção a Parati.
Ana indaga:

—   Vocês conhecem Parati? Vamos chegar até lá. É isso aí.
Amô gostou da idéia, roçando-se em meu braço murmurou: "As emoções da Gávea podem ficar para depois, amor".

—   Sim, claro, digo meio sem convicção: depois de amanhã de madrugada.

Pela descrição de Ana, o hotel em que se hospedaram é o mesmo em que me alojei ao chegar no RJ há noventa dias.

—   Se houver quarto vago a gente se muda para lá ainda hoje, a afirmação é minha.

—  Tinham uns turistas chilenos que iam sair hoje, confirma Ana, se saíram mesmo, a gente telefona depois de reservar um quarto pra vocês.

—   Sairemos todos do mesmo lugar, pondera Ciro, facilita as coisas. Está valendo.

Ciro conhece a estrada antiga, de terra, que liga a cidade do Rio de janeiro a Parati. Estamos próximos ao solstício de verão. Ele começa dia 21. Chuvas recentes podem ter provocado queda de barrancos, deslizamentos de terra. Opinião geral: Parati vale os riscos da trilha, as dificuldades do caminho. A viagem não foi exatamente sem transtornos. Simplificando: estamos aqui.

A presença da manga-rosa pode ter motivado Ana e Ciro a nos convidar e fornecer carona. Como todo paulista, estou sempre a buscar um interesse comercial por trás de gestos de amizade. Ao chegar em Parati ficamos na rua da Capela, próximos a uma pensão.

Eles seguiram em direção à praia do Jabaquara, onde há um camping caseiro. Optamos pelo abrigo da pensão, dormir em leito comum. Alimentação de comida “feita em casa”.  

Eu ansioso por escalar a Pedra da Gávea, subir até a "caverna do Viking". Na estrada, difícil se agendar compromissos. O tempo está por conta do acaso. O centro do mundo é aqui e agora. No momento e no lugar onde estou presente.

Parati é um raro prazer. Uma província que em fins do século XVI prosperou com o comércio aurífero com as Minas Gerais. Centenas de engenhos produziam açúcar e uma aguardente de cana difícil de igualar. Casas grandes com símbolos maçônicos. Sobrados, igrejas e teatros foram construídos no período de vacas gordas dessa região privilegiada do Brasil colônia.

Na paisagem suavemente selvagem, modorrentas ondas quebram cansadas à beira da praia desse pedaço de tranqüilidade tropical sem par da baía. Destaques da arquitetura colonial: as igrejas da Matriz de N. S. dos Remédios, o Museu-Igreja de Santa Rita, e o Forte do Perpétuo Defensor.

Após o declínio da monocultura açucareira, passou a viver dos humildes recursos da pesca, da aguardente e do turismo. Chegamos a esse recanto em dias de muita agitação. Duas equipes de produção de filmes marcavam presença, simultaneamente. Uma das quais, estrangeira.

Mesmo quando ondas de turistas invadem suas ruas de paralelepípedos, a Cidade Patrimônio Histórico preserva um clima de antigüidade. Outra dimensão. Outro tempo.

Amô, de seu baú de artesanatos e de mercadorias surpresas, sempre consegue tirar algum "coelho". A longa estola, apesar das vendas, consegue sempre renovar as ofertas. Da bolsa maior saem bolsas menores com atraentes objetos de transação. Sua facilidade em comercializar bugigangas se deve, presumo, a um raro talento de prestidigitação. Ilusionismo.

As mãos, por mais aptidão e competência tenham, não podem criar conchas, cavalos marinhos, e alguns "buttons" em oferta. Um casal de turistas, pelo sotaque e aparência alemão, após adquirir um exemplar de certa concha marinha, volta pouco tempo depois, querendo saber "aonde encontrarrr outrass dessasss concharrr?". Respondi a pergunta ingênua mas sinceramente. O alemão contestou minha resposta dizendo:

—   Beirarr da praiarr? Imporssívell, contesta ele. Isso ser estranharr, non poderr.

Ficaram hesitando entre prosseguir um "diálogo sem réplica" (Amô estava ausente nesse momento), ou ir embora. As mercadorias expostas sobre um pano na calçada ficaram sob minha guarda. O casal alemão ficou algum tempo trocando idéias entre si. Certo momento chegaram a discutir, chegando às vias de fatos. O alemão volta agora à carga, pressionando-me verbalmente:

—  Senhorr terr mais dessar?, io comprarrr todars que senhorrr tiverr. Todars. Pagar duplar, triplarr do preço de conchar igual essar.
Chateado com a pentelhação do casal, afirmei não haver mais moluscos, nem outros tipos de concha, exceto aqueles que estavam sobre a estola. Volta a conversar comigo, dessa vez só a mulher.

Achei estranha tanta insistência. Vontade de exclamar "haus hier" para ambos. Ainda hesitantes, afinal, deram o fora.

Talvez fossem geólogos ou biólogos marinhos. Ou mergulhadores, oceanógrafos. Precisei de duas décadas para juntar as peças desse "puzzle" . Vinte anos depois, compreendi, afinal, porque motivo aquele casal de turistas ficou tão superlativamente ansioso por saber como aquela concha poderia estar à venda numa feira de calçada.

Essa é matéria para outro capítulo. Nele o leitor terá condições de melhor avaliar uma maior quantidade de informações. E estabelecer as correspondências entre motivo e conseqüência, pertinentes à compreensão de um complexo de eventos interdependentes. Afinal, o casal alemão tinha realmente motivos fortes o suficiente para mostrar tanta perplexidade.

Permanecemos seis dias na pensão e nove no acampamento residencial da praia do Jabaquara, de água mansa e lama medicinal, aonde Ana e Ciro prosseguiam arranchados. O Natal comercial passou. Mas nas páginas de um livro de poesias, li as frases de uma esperança que não passa:

Quando/Além das praias e dos montes/Iremos saldar o nascimento/Do trabalho novo/Da sabedoria nova/A fuga dos tiranos/E dos demônios/O fim da superstição/Saudar os Primeiros/Os Primeiros/O Natal sobre a Terra.


WINWEN
E
OS
ÍNDIOS
COLONIALISTAS

Ana e Ciro vão permanecer mais uma semana no camping. Amô ganhou a simpatia de um diretor de filmes documentários a serviço da Rádio e Tvvisão Francesa, François Winwen. Está em Parati dirigindo um documentário, para uma série, sobre as cidades históricas brasileiras, e as regiões litorâneas que podem vir a ser transformadas em Área de Proteção Ambiental (APA).

—   Parte do pessoal segue hoje para o hotel Nacional no RJ, em coletivo da produção, disse ela. Winwen ofereceu carona, vamos com eles?

—   Beleza Amo, exclamo. Que horas vão sair, de que lugar? A Gávea nos espera.

—  É verdade, responde enigmática. Entre dezesseis e dezesseis e trinta. Esse horário é incerto. O "bus" sai daquele bar, mesas cobertas com guarda-sóis de palha. Lembra?

—  Sei, there will be an answer. Pronuncio as palavras como se parte de um código sonoro ainda a decifrar. A decifrar muito tempo depois.
O ônibus da produção cinematográfica francesa parte em direção ao RJ às dezoito horas. Isso prova que nem só brasileiros são imprevisíveis em questão de horário. O motorista segue pela BR-101, beirando o litoral. Winwen se comunica melhor em francês. Amô, fluente no idioma natal do cineasta, mantém diálogo com ele por uns quinze minutos.

Pouco depois do lero com Winwen, trocamos idéias a propósito das opiniões de François.

—   Sobre cinema brasileiro, indago, malhou? é fã de "monsieur" Rochá, por certo.

—  Isso aí, responde ela imitando o sotaque do diretor francês. Ele curte o cinemá de Glaubér Rochá. Pra ele o cinemá "brésillien" é muito cerebral, distante do espectador que paga ingresso para ficar a "ver navios" depois de assistir o filme.

—   Cinema Novo é pra europeu aplaudir, ironizo. Sem chance de ser popular no Brasil, é isso?

Disse ter visto o copião de um filme do Nelsón Pereirá. Até ele, que se considera um "citoyen" informado, achou de difícil compreensão.

—   "Como era gostoso meu francês" digo, do Nelson Pereira dos Santos.

—   Esse mesmo, confirma Amô. Falou que só após Ter visto o filme, leu uma sinopse e algumas críticas sobre ele. Descobriu que contava uma história sobre índios colonialistas, sacou?

—  Verdade, confirmo. Pior seria se contasse história sobre aves que falam: pavão, tucanos, passarinhos e papagaios colonialistas.

Depois de um longo cochilo, a condução estaciona no pátio de entrada do hotel Nacional. François, com a gentileza característica do turista europeu despede-se de maneira amigável. Após trocarmos algumas figurinhas de despedida com membros da equipe da mini-série, seguimos de "tx" até as proximidades de um camping no Recreio dos Bandeirantes.


ERAM
OS
"GUIAS"
ESTRANGEIROS?
"A filosofia da história partirá
das fronteiras últimas da historiografia
para especular livremente sobre
problemas e inquietações que não cabem
nos domínios da história científica."
Fidelino de Figueiredo
(Entre Dois Universos)

São 22 horas. Neste momento um grupo de mochileiros acampa nas proximidades de uma das portas de entrada, em direção ao alto da Pedra da Gávea. João José visualiza a silhueta da namorada, Helena, aproximando-se a uns cem metros, silhueta iluminada pelo néon da parte asfaltada da rua.

—   A malandrinha chegou cedo, comenta. Leva o maior jeito pra essa coisa. Está aperfeiçoando o charme, os truques, vivendo e aprendendo a transar.

—   Não é à-toa que o nome dela é o mesmo da santa padroeira das taras mais antigas do mundo, rumina Luís Carlos

—   Morde a grana dos trouxas e vem dividir comigo, gaba-se JJ. É seu jeito de se defender.

—  Perua é pra essas extravagâncias mesmo, endossa Daniel. Ouriça o rabo de pavão, e atrai como ímã os instintos dos "bundão".

—  Romântico pra caralho, apoia JJ, enquanto cospe de lado. O céu que protege é o mesmo que dana todo mundo.

—  A mãe de vocês é a única mulher do mundo que andou na linha e o trem não passou por cima, protesta Regina, indo ao encontro de Helena.

Morena, cabelos pretos, bela, cansada de guerra, Helena acha que não merece nada melhor. Gosta da vã punição imposta pela companhia chauvinista de JJ. Não percebe por que, mas sente-se culpada, muito culpada. Acredita: ruim com ele, pior sem ele. Ignora estar vivendo uma relação sado-mazoquista, pelo fato de não saber o que significa sado-mazoquismo. Nela, ela é a parte explorada.

João José, Luís Carlos e Daniel vendem maconha e LSD entre as ruas Miguel Lemos e Djalma Ulrich, em Copacabana, a uma quadra do calçadão frente a praia. Grana líquida e certa nos fins de semana, principalmente. Sobram consumidores. Sem proteção policial, limitam as vendas à quantidade das drogas que conseguem entocar por perto do ponto de tráfico, sem muita bandeira.

Aventureiros pequenos burgueses da sobrevivência evitam responsabilidades outras, por não estarem preparados para exercê-las. Meio que inconscientes, não sabem ao certo definir o que buscam, ou do que realmente estão fugindo. Ignoram para onde se dirigem. Vidas sem rumo. Cada um deles é um outsider.

A tarefa de cada dia consiste em ir driblando os perigos. Equilibrando-se na corda bamba estendida sobre o abismo de um determinismo social sem destino. Perverso, sádico, com o qual mais e mais se identificam.

Entrassem em cana por tráfico de entorpecentes ou alucinógenos, a seqüência do negativo do filme da vida deles poderia queimar mais cedo do que imaginavam. Dani bobeou. Não sabe se lhe ganharam "na cara dura"  ou se perdeu os babilaques. Dormisse de touca, perigava vê o sol quadrado.

O grupo pretende permanecer na duvidosa segurança provisória do acampamento. Confiante na promessa de uma garota, a Puppy, ex- namorada de Luís Carlos. Ela combinou encontrar-se com ele ao entardecer da próxima sexta-feira. Garantiu guiá-los até a "cabeça do Viking", no alto da Pedra da Gávea.

Puppy namora atualmente um músico da MPB que faria sucesso com uma única canção. Ela e o namorado conhecem a trilha que facilita o acesso rumo ao alto da Pedra. São oitocentos e quarenta metros acima do nível do asfalto, ou do mar. Para que o leitor tenha uma idéia mais precisa do que significa tal altitude, o "Empire States", segundo edifício mais alto do mundo, possui cento e dois andares e trezentos e oitenta e um metros de altura.

"Fears Tower", o mais alto, conta com quatrocentos e quarenta e três metros e cento e dez andares. A queda de uma altitude dessa, significa transformar-se em mingau. Daí, a necessidade de um guia que saiba contornar a situação circunstancial de ter de se deparar, a poucos metros do Planalto da Gávea, com o desafio que separa o turista andarilho, da segurança do outro lado da trilha.

Oitocentos e quarenta metros é a altitude do Planalto da Pedra da Gávea, pouco acima da "caverna do Viking". A vereda, Pedra acima, se bifurca algumas vezes. Para quem desconhece a exata progressão do caminho mais seguro, pode vir a se deparar com a trilha pontilhada no topo de uma rocha muito inclinada sobre o vão do abismo. Puppy marcou touca. Não apareceu ao encontro marcado com Luís Carlos. Resta ao grupo, encarar os riscos de uma escalada sem guia.
Nesse momento eles comentam as dificuldades de subir a íngreme montanha:

—   Chegando lá não dá pra voltar, diz Daniel, é zica para o resto da vida.

—   Superstição, cara, protesta Helena. Você acredita mesmo nessa lenda?

—   É só folclore, é a vez de  Regina opinar.

—  Folclore ou não, sustenta Luís Carlos, não vou facilitar. Se pintar a trilha pontilhada, é por ela que vou passar.

—   Voltar é se azarar, reforça Daniel. Vai voltar em tudo o mais para o resto da vida.

—  Tenho pavor de altura, entrega-se  Helena. Mais garantido seguir na pista de alguém que conhece o caminho mais fácil, garante. Segurança nunca é demais.

—   Logo ela que tem uma vida super insegura diz isso, sussurra Daniel.

—  Sem guia não vou, garante Regina. Mês passado despencaram duas pessoas, li no jornal. A notícia saiu também em jornais tvvisivos. Vocês não viram?
JJ, com banca de líder do grupo opina:

—   Quem não quiser ir não vai, com ou sem guia, esse final de semana vou ver a cidade lá de cima, acampar dentro da "caverna do Viking".

A Pedra da Gávea possui um "status" mágico. Uma mística. Existem nela caracteres fenícios gravados há séculos, talvez milênios, ao longo do corpo da esfinge, e em muitos posicionamentos da rocha. Não poucos cientistas, estudiosos de arqueologia, investigadores dos movimentos orogênicos da litosfera, e das formações rochosas das montanhas, acreditam que os contornos da esfinge de Pedra, são produtos de intervenção alienígena.

O professor americano Cyrus Gordon mantém esta opinião. Não poucos hippies passaram pela experiência de atravessar a trilha. Resumindo a opinião dos que venceram esse desafio, um deles revelou num lero de acampamento: "Basta não se fixar obstinadamente nas dimensões do perigo. Nem subestimá-lo".

A trilha de pontos gravados no alto da lisura da pedra inclinada, é ínfima. Permite apenas uma precária força de atrito entre o corpo móvel e a inclinação da rocha que dá acesso à segurança do outro lado da trilha. Por esse caminho é um desafio chegar-se em segurança à "caverna do Viking". O peregrino pode e deve aceitá-lo.

Uma vez ultrapassada a dificuldade da trilha, o andarilho se conduz a um estágio mais avançado de conhecimento e de desenvolvimento interior. É preciso vencer o medo de prosseguir, apesar dos perigos, e alcançar o objetivo da escalada. Não retroceder significa fortalecer o ego, a força de vontade.

Encarar o desafio do perigo como sendo uma chance, a oportunidade de chegar a um objetivo mais elevado. A princípio esse objetivo é apenas a segurança de estar pisando o chão do outro lado da rocha inclinada. A sensação de poder vencer o estorvo.

Saber ser possível acreditar, não obstante a gravidade do risco de despencar da altura de 840 metros, na possibilidade de trabalhar a própria segurança, após se expor ao perigo. Superar uma situação difícil significa conseguir ampliar um patrimônio existencial.

Amô e eu chegamos ao sopé da montanha de Pedra na Gávea. Desta forma ficamos conhecendo a "turma" de JJ. À vista, duas barracas armadas na vegetação local, próximas de uma das residências de uma cantora baiana de projeção nacional.

JJ cantarolava, parodiando a letra e a música de um compositor baiano, Dorival Caymmi. Regina, Helena e Daniel faziam compras num supermercado da Barra da Tijuca. Ele canta, como quem a seus males espanta.

“Nada como ter nota na vida/Nota mesmo, ou mesmo um cheque sequer/Todos querem muito bem a nota/Quero eu, todo mundo também quer/Um amigo meu diz que com notas/Canta-se melhor flor e mulher/Eu que tenho notas como tema/Canto a gatinha que quiser..."
Luís Carlos gostava de Helena que gostava de JJ, que gostava de ser idiota. Helena sentia-se bem quando desejada. Carente, quanto mais orgasmos faturava com seus programas, mais gostaria de obter, compulsivamente, prazer, de suas possibilidades instintivas inconscientes. Luís Carlos mal continha os ciúmes. Irritou-se com a cantoria de JJ, e começou a ruminar:

—  Morena cabeça de bagre, não consegue segurar ninguém melhor do que este panaca filho da puta.

Luís Carlos ruminou as frases talvez um pouco alto demais.

—   Como é essa história aí, ô cara, reage JJ, como quem parte, agressivo, pra uma decisão na base da porrada.

—   "Take it easy", responde LC, pensando em voz alta. Só isso.
JJ reagindo à resposta provoca o parceiro um pouco mais.

—   Ahh, isso aí malandro, tornando a cantarolar provocativo uma canção com letra e música de sua chula autoria, em ritmo de samba:
“Sonhei que estavas me enganando/Dizendo que eras malandro/(Bis)/Tenho um pasto verde pra você pastar/Tenho uma corda grande pra te amarrar/Ahh, como é triste o desengano/O ditado diz/Quem nasce cavalo/Só morre pastando.”

Irritado, LC afasta-se em direção à praia. O sangue lhe subiu à cabeça, deseja curtir a raiva sozinho. A resposta de JJ às provocações balbuciadas por Luís Carlos, não ficou barata. Empatizando a cólera do rival, começou a cantar, com redobrado gosto, outro plágio sonoro de outra composição da autoria de Caymmi.
“Helena, morena Helena/Você se pintou/Helena, você faça tudo/Mas faça um favor/Não pinte esse rosto/Que eu gosto/Que não é só meu/Helena você é vadia/Com o que Deus lhe deu..."

Chegando ao local indago, interrompendo a cantoria de JJ:

—   Carinha, vocês vão subir, ou desceram a Pedra?
Ele olha para Amô e para mim, avaliando se dá ou não uma resposta simpática.

—  Amanhã a gente pretende subir, quem responde é Daniel que está a chegar das compras com Helena e Regina.

—   Estamos dando um tempo para um casal conhecido nosso, ele vem amanhã, completa Helena, passando as sacolas de compra às mãos de JJ. Ele vai servir de guia.

—  Vocês sabem o caminho, a voz esperançosa de Regina se faz ouvir, ou estão escalando pela primeira vez?

—   Isso aí, comtemporiza Amô, pela primeira vez.

—   Vamos dá um tempo neles até amanhã, fala JJ com certa afetação na voz, até o entardecer. se é que vem mesmo.

—   É por aí, confirma Helena com certa ansiedade. Se é que virá.

—   A Puppy não é de pisar na bola, defende-se LC, se me disse que vem é que vem mesmo.

—   É carinha, reage Regina, mas há sempre uma primeira vez pra pisar na bola.

—  Ninguém dá essa certeza, garante JJ, quem falou que ela vai pintar foi o Luís Carlos. Não boto a mão no fogo pela palavra de ninguém.

—   Se não vier, diz Daniel, a gente escala a Pedra do mesmo jeito. Sem crise.

—  Imprevistos sempre acontecem, garante Amô, pode acontecer desse casal não vir. Tudo  é possível.

—   Querendo podem chegar, convida Helena, enquanto olha para o namorado como quem pede a permissão de JJ. Venham com a gente, provoca. O espaço é pequeno mas há lugar para mais uma barraca aqui.

— Tá limpo, concilia João José, após o olhar interrogativo de Helena, ainda buscando a aprovação do parceiro.

Depois de armada a tenda, caminho nas proximidades do sopé da Pedra. Sigo em direção à Barra da Tijuca. Praia é sempre um colírio. Após duas horas caminhando pelo litoral, volto à barraca.

Amô está terminando de lê o segundo volume da obra Le Deuxième Sexe (Editions Gallimard) da autora francesa Simone de Beauvoir, mulher do escritor Jean-Paul Sartre.

Fico na dúvida se leu mesmo ou está só fazendo charme. Lembro-me que os dois volumes somavam umas oitocentas páginas. Ela os comprou na madrugada de hoje, numa banca de revistas/livraria, aberta 24 horas, nas proximidades da rua Duvivier, em Copacabana.
Entro na barraca, a chama do pequeno candeeiro azul acesa. Em minha mente desenha-se com nitidez a frase: amor à estrangeira. Vejo Amô sob a transparência de outro de seus vestidos compridos, de motivos florais.

A calcinha penetrando no vinco do bumbum bulindo, contribui para acentuar o clima de volúpia ambiental. Minha sexualidade dominada por fixações machistas projeta-se em direção à sua feminilidade: "Querida, você vai sentir como é gostoso curtir um fuque-fuque bem-bom".

Ledo engano. O orgulho masculino murcha. Entoca-se igual às representações da sexualidade masculina desenhadas por Jeronymus Bosch, pintor renascentista (1450/1516), precursor do movimento surrealista na tela "Jardim das Delícias".

E agora machão? Para compensar o vexame da "brochura", fixo-me nos "insights" sonoros que ecoam no interior da mente: amor à estranha. A frase esquisita: quem é a estranha? Sim, é isso, convivo com ela há meses, mas com certeza estou longe de conhecê-la. Amô, sim, Amô é realmente uma estranha. Toda mulher é uma estranha.

As frases surgindo de meu subconsciente somavam-se aos estímulos a vulva roçando, sensual, minhas pernas e coxas. A lascívia de uma planta de carne a contrair e a expandir-se sobre mim. Delícia de sexualidade. A libido volta a manifestar-se com grande força.

Estranha mulher Mochileira. Estranha amazona. A vagina, lareira quente a aquecer meu tesão. Intenso calor libera a xota erógena. A gruta contrai a vulva num exercício de gradativa e inexorável excitação. Seu canal parece enlaçar meu membro com mil segmentos de delicados músculos em contração.

Uma massagem alucinante de membranas mucosas com indescritível, exímia mestria, conduz minha excitação a um êxtase libidinal, a um orgasmo que eriça todos os poros de meu corpo com uma explosão de harmoniosa e inefável vitalidade. Amanhã chega cedo em sua companhia. E a tarde.

São quinze horas. Estamos na espreita. A Puppy e o namorado músico, podem chegar a qualquer momento. Não devemos ficar mais tempo nesse lugar. É uma rua larga e asfaltada que sobe em direção ao sopé da montanha. 16, 17, 18, 19, 20, 21 horas. Nada.

Não podemos ficar marcando touca nesse acampamento improvisado. Os hôme podem cismar e querer dá um baculejo no interior das tendas, revistar as mochilas. Opinião geral: não se deve permanecer outro dia aqui.

—   Se a cana cismar e correr em cima? Comenta Luís Carlos.

—   Vão perder tempo, responde JJ. Manera nos grilos que eles estão fazendo outros ganhos.

—  Fins de semana os milicos vão morder noutra freguesia, em outras "jurisdições", afirmo. "Hippie" não dá lucro.

—  Vai nessa não, mano, intervém Regina, tem deles que ficam na fissura. Querem fumar umzinho de qualquer jeito.

—   Ou mostrar serviço, diz Daniel. Facilitar pode ser dançar.

—  Sem chance pra eles, afirma Amô. Nada de vacilo, induz: daqui a pouco vamos acampar perto do cimo.

Enquanto a conversa rendia, dois "hippies" adiantaram-se pelo caminho de asfalto em direção à base da Pedra.

—  Pode ser que estejam indo em direção à caverna no alto do planalto, fustiga Helena, não vamos perder essa "carona".

—   Hei carinhas, chamo, deles me aproximando. Vocês vão subir até a "caverna do Viking?"

—   Estamos a caminho, confirma um deles.

Sua voz terá sido impressão minha? Soou metálica. Viram-se em direção à Pedra e voltam a caminhar, lentamente, como se num convite a seguí-los.

O pessoal apressa-se em desentocar as "coisas", os estoques de "motivação mental" disponíveis. Luar cheio. Firmam nos ombros os objetos de andarilhos, aproximam o passo em direção aos "guias". Pé na Estrada. Eles não tardam a serem seguidos de perto.

Em certos trechos da travessia em direção ao Planalto da Gávea, oitocentos e quarenta metros acima, pode-se visualizar a paisagem marítima das águas fluorescentes do mar. Ninguém "se tocou" de perguntar aos supostos "guias", se a estreita vereda que partilham conosco, segue ou não em direção ao íngreme penhasco, encimado pela "trilha" no encarpado declive da rocha que beira o abismo.

Confiou-se neles simplesmente. Talvez fossem apenas a motivação que faltava para que nos decidíssemos seguir caminho. Sem nenhuma garantia de que saberiam chegar em segurança ao espaço interior da "caverna do Viking", contornando os perigos da "trilha" inclinada sobre o abismo.

Comenta-se, não sem certa apreensão, a possibilidade de estarmos nos dirigindo à passagem sobre o declive abissal, há oitocentos e quarenta metros acima do nível do mar.

—   Agora de olho no que acontece, opina Luís Carlos. Vamos seguir os caras, sem perder eles de vista.

—   Tudo sob controle, "todos os caminhos levam a Roma".

—   Ou ao coma, que pra baixo todo santo ajuda, ironiza Helena, meio ofegante. Pra cima a coisa toda muda.

Os "guias" prosseguiam na frente ganhando distância. Por vezes diminuíam o passo, como se à nossa espera. O trajeto para eles era mais fácil, estavam livres de qualquer peso, exceto o das roupas no corpo. Não conduziam lanternas, mesmo agora, quando a lua está encoberta atrás das nuvens. A tenda deles deve está armada lá em cima.

—  Enxergam no escuro?, os filhos da mãe têm olhos de gato. Afirma JJ. As muitas nuvens encobriram o brilho da abóbada celeste.

Nossas lanternas iluminam a estreita passagem aberta na vegetação do lugar. Regina e Helena, após uns quarenta minutos de pique em direção vertical, reclamam cansaço. Mas não se pretende perder de vista os "guias". Pelo jeito, não haverá parada no caminho Pedra acima. A travessia rumo ao cimo vai ser de um só fôlego. Tudo bem são "apenas" oitocentos e quarenta metros de pista verticalizada. Os últimos cento e cinqüenta são de respiração mais difícil.

À certa altura o pessoal simplesmente parou. A intervalos variados de tempo, os membros do grupo chegam arfando. Tomando fôlego. A transpiração goteja dos poros. Os troncos arquejam. Camisetas empapuçadas de suor. Ainda não é o cimo. Mas ele está próximo.

Os "guias" permanecem distantes, fechados à comunicação. Ignorando a canseira do grupo, um deles dirige-se até o lugar da rocha que, há momentos, me serviu de apoio. Levanta os braços, como quem quer segurar as bordas da superfície superior do rochedo. Num  impulso preciso, projeta-se para cima. Logo depois aterrissou sobre a pedra, de cócoras.

Os braços em tripé, esticados entre os joelhos abertos para as laterais do corpo. Os artelhos dos dedos dos pés pressionando o chão liso da pedra. O olhar, como se fixo na linha do horizonte. A seqüência rápida dos movimentos surpreende a todos os que observaram a façanha.

Sem tomar conhecimento da "trilha" pontilhada na parte superior da rocha (para vê-la é preciso estar sobre ela), aos saltos, alcança a segurança do outro lado. Chegou com facilidade à margem oposta, inclinada sobre o vão do abismo.

O outro "guia", imitando a seqüência de movimentos do primeiro, aos saltos, lembrando as evoluções de um Canguru, reproduz com destreza a seqüência anterior dos ágeis movimentos do antecessor. Quem viu, precisou de algum tempo para crer nos próprios olhos.

—   Esses caras são de circo, afirmo. Há um circo armado na av. Getúlio Vargas.

—   Fugiram da jaula dos Cangurus, apoia Regina.

—   Incrível, exclama Dani, só vendo pra acreditar.

—  Quem vai ser o próximo? Indaga LC, você Daniel? Ele estica o pescoço por sobre a superfície do rochedo, começa a sorrir.
O sorriso dele é contagiante.

—    Moleza, cara, vai você agora, desafia JJ. Sem disfarçar certa afetação.

JJ apoia as mãos na parte mais baixa do rochedo, impulsiona-se para cima, avalia, por segundos, a periculosidade do trajeto.

—   Nem que a vaca tussa, vitupera convicto. Não sou acrobata.

—   Isso aí, confirma  Helena. De manhã a gente ver.

—   De circo e de louco, Dani repete o dito, toda gente tem um pouco.

—  Tudo bem, afirma Amô, ninguém vai perturbar nessas alturas, depois do sol nascer todos vão passar. Sem crise.

—   Agora, confirma Helena, nem pensar. Nem morta.

As opiniões se multiplicam. Alguém sugere uma "sessão Coruja". O inconsciente excitado do grupo gerou uma variedade de comentários.

Todos de acordo: os "guias" eram uns caras estranhos. Tinham permanecido "na moita" todo tempo.

—   Não trocaram idéia com ninguém, comenta JJ.

—   "Estamos a caminho". A única coisa que disse um deles, lembro, em resposta à pergunta se poderíamos segui-los.

Manhã. 7 hs 30 m. Intrigado com as façanhas de ontem, analiso os eventos. O impulso para subir a rocha de um salto, mesmo na parte mais acessível, e seguir aos pulos em direção à outra margem, exige coragem, desprendimento, e uma força física maior do que a de um atleta olímpico. Ainda assim, este precisaria de uma vara de apoio para saltar do chão para a pedra.

Não estou sozinho em minha ansiedade por respostas racionais. A galera, às nove da matina, ainda hesita em crê na facilidade com que eles superaram o obstáculo rochoso.

—   Só em noite de lua cheia acontece uma coisa incrível dessa, comento. Mesmo se a lua estiver escondida por entre as nuvens.

—   Se me contassem, sei não, confirma LC, ia dizer ser piração.

—  Essa altura, mais o declive do solo, concluo, transforma em inércia qualquer velocidade de impulsão.

—   Não há espaço para impulsão nenhuma, conclui JJ.

A explicação racional que pudesse justificar os saltos, não pintou. De mim para comigo, imagino os eremitas, os peregrinos, os Estrangeiros, que nas antigas comunidades eram tidos por perigosa ameaça. Dois deles subiram esta montanha de Pedra ontem. Saltaram para cima desta rocha como se fossem mamíferos marsupiais, pulando até o outro lado.

Quem não viu, dirá que não pode acontecer. É puro contra-senso. Olhei para Amô. Ela sorria como se fosse uma Monalisa de Picasso, se Picasso houvesse pintado uma Monalisa em sua fase "blue".

Sorriso ambíguo enigma, de quem, como Édipo, decifrou o enigma da Esfinge. Dela emanava uma espécie de magnetismo transpessoal. como se estivesse doando-se. O espaço físico em volta funcionava como se fosse uma "interface". A separar as diferentes propriedades de caráter das pessoas presentes.

Pode ter sido apenas impressão minha, influenciado pela convivência e pela intimidade. Deste momento guardo a nítida sensação de calor. Certa radiação, emanando de seu corpo, atingindo os presentes. Mudando os ânimos.

A estranha sensação de que não ter um rosto é a sua verdadeira face.

Pasmaceira e perplexidade. À supervalorização babaca do "show" dos "guias", os comentários sobre o "salto do Canguru", seguiu-se uma atitude de geral serenidade. Seu olhar, como que simultaneamente, fixou a íris dos olhos de todos. A memória auditiva traz de volta um impertinente zunido. Cada um dos dois glóbulos de meus olhos "explodiu" dentro das órbitas. A fulgente consciência sensorial de estar sendo estimulado por um acontecimento raro. Incomum. Exterior.

Pouco depois, como se nada houvesse acontecido, ganhou-se certa objetividade. Escalei a parte baixa do declive da rocha próxima, na beira do abismo. Pisando forte e pausadamente, o tronco inclinado para frente, buscando manter a força de atrito na lisura da superfície da pedra.

Lembrei da frase do hippie, "não se fixar demasiado no perigo. Nem subestimá-lo". Afastar da mente a possibilidade de uma queda equivalente à de um edifício de trezentos andares, com oitocentos e quarenta metros de altitude. Inverti a polaridade. Meu potencial neurônico concentra-se no objetivo a alcançar.

O vigor físico de meu sistema nervoso energizado pela crença de que, para estar em segurança do outro lado da rocha, basta simplesmente caminhar sobre a lisura do rochedo. Sem crise, simples: a mente esperta, a espinha ereta e o coração tranqüilo. Como nos versos da música do Valter Franco. Caminhei na diagonal da Pedra sem precisar subir até o topo e seguir pela "trilha" pontilhada.

Fácil. Como quebrar o "ovo de Colombo".

Do outro lado, enfim, o salto até a segurança do chão. A sensação de que os perigos e bloqueios existem apenas para serem vencidos. Desta forma se vencem os medos: superando-os. Os medos que me separam de uma atitude mais objetiva em direção a um nível superior de progresso espiritual e material.

Ficar ruminando na inércia é uma atitude que não conduz a nenhum objetivo que valha a pena mentalizar. Se existem ideais a alcançar, eles só podem ser alcançados com objetividade. A Mochileira, após subir na rocha, caminhou naturalmente rumo ao lado oposto. As mãos segurando os flancos do corpo, salta para o chão de terra.

João José antecipou-se à Helena. Chegando do outro lado, deu mostras de seu machismo bronco, instigando: "Vem querida, é mais fácil do que pegar carona na Vieira Souto de madrugada". Sutil, como um elefante dirigindo um fusca. "Que filho da puta", exclamei subjetivamente.

—   Vá se foder caipira filho da puta, a resposta precisa de Helena.

Todos gostamos da surpresa, exceto JJ, é claro. Ela começa a reagir, a defender-se com precisa objetividade à baixaria do namorado. Ela, que sempre se mostrou tão submissa.

Luís Carlos aproveita para "tirar uma casquinha", ajuda Helena a subir na lateral do barranco. Os pés descalços sobre a "trilha" imitando os passos da Mochileira. O vento começa a soprar mais forte. Nervosa, a meio caminho, seu medo de altitude prevalece.

Ela perde o precário equilíbrio, mas não o instinto de sobrevivência. Após agachar-se, seu corpo escorrega em direção à borda do precipício. A força de gravidade parece estar ganhando de seus esforços para manter-se firme na superfície oblíqua da pedra. Desliza um pouco mais para baixo.

Seus joelhos e pés patinam sobre a rocha escorregadia, num desesperado esforço parar manter-se sobre ela. Estendo a mão esquerda em sua direção, o tronco parcialmente inclinado sobre o rochedo, enquanto a outra mão apóia-se na borda da rocha. Consigo fechar meus dedos, segurando os seus que se desprendem. Vejo pânico em seus olhos. Ela não resistirá mais tempo.

Amô se posiciona de cócoras próxima à cabeça de Helena, apóia a mão no vão de suas axilas, e recua. Suas mãos, como se fossem garras, puxam o peso de Helena, distanciando-a da borda do precipício, enquanto seus pés retrocedem, ainda de cócoras, até a lateral da declividade do rochedo, onde estamos agora, em segurança.

Coragem, força, desprendimento: as mesmas qualidades dos "guias" de ontem a noite. A atitude de Amô serviu para criar um clima de grande suspense. Não houve quem, a princípio não pensasse que ela também despencaria no abismo. Para surpresa geral não aconteceu.

Como uma garota de aparência frágil, na realidade oculta uma energia física e um altruísmo ímpar? Quem mais seria capaz de seu gesto? Ninguém. Mesmo por que Helena deve pesar uns sessenta quilins no mínimo.

Passadas a ansiedade e a geral apreensão, após esse incidente quase fatal, acampamos no espaço lateral externo à "câmara do Viking". O interior da caverna é precário. Mas o jeitinho funciona melhor em situação de aperto. Algumas pessoas, talvez achando o ambiente muito congestionado, resolvem descer Pedra abaixo.

Próximo à caverna uma mulher branca, magra, cabelos castanhos encaracolados, faz par com Faustinho, um gorducho de bochechas sangüíneas. Há outro casal, de pele negra, cabelos longos trançados finos, estilo "black-power".

—  Hei "brother", diz o negro estendendo a mão. Eu sou o Jonas. Vai rolar um “fino”, marca uma presença para encorpar o chá. Vamos barrufar um baseado da pesada, de leve.

O "irmão", está por conta dos cabelos longos, da barba por fazer. Sua companheira aproxima-se, dentes brancos à mostra, reforçando a argumentação da presença de cannabis. Hortência. Traz em mãos uma seda de palha, longa, uns vinte centímetros. Ao longo do vinco vejo uma substância escura e finamente granulada: haxixe.

Ela vem cheia de certeza e acerta. Ainda restam umas quinze gramas de marijuana. Pelos indícios (pele bronzeada, "hair" longo, tênis e "jeans" gastos pelo excessivo uso), sabe-se avaliar as cabeças. Na Estrada a prática da telepatia é comum, não com a nitidez com que a Mochileira pratica. As ideoplasmas das pessoas migram com mais facilidade de mente para mente.

Pela conversa que se desenvolveu na seqüência, e apesar da aparência maciça de Jonas, Hortência é como uma baleia, a manter Jonas no ventre.

—  Essa manga-rosa agita as idéias numa boa, beleza, afirmo, ao voltar com a presença da barraca.

—   Só fumando, "brother", "vê pra crer". Desafia ele. “Jóia rara”.

—   Quem sabe vê, aprende a aprender, diz Amô, chegando-se mais.

—  Hihihihi, olha só as milongas da figura, ironiza Jonas, enquanto aponta em direção a Mochileira, afirma: essa mulher é da política.

—   Quem menos corre vôa, sugere Hortência.

—  Aquele casal ali, Jonas faz um gesto de cabeça na direção do gordo e de sua companheira magricela, está tentando fugir da escola.
Familiarizado com as entrelinhas dos leros de Estrada, intuo a conjuntura ambiental, através da percepção de eventos emocionais muito discretos, quânticos, imperceptíveis aos menos neófitos irmãos de Estrada. A presença da cannabis causa impressão. A princípio apenas pela quantidade. Começo a deschavar o cocô de cabra entre as mãos.

—   Este é o "manjar dos Pajés", a orientação espiritual das tribos, afirmo.

—   Isso   aí, carinha, Hortência  saca: pajé, sacerdote, médico, profeta, sara a dor. Sara a dor de Sara e de outras mulheres, antigas, e novas madalenas bíblicas. As que não viraram estátuas de sal.
—  Pajé, benzedor da aldeia, confirmo. O que invoca os espíritos de natureza mágica, para a proteção de um planeta entregue à entropia da corrupção coletiva.

O lero girou sobre as propriedades mágicas e medicinais  da maconha. Quem deschava e acende o baseado ganha certo "status". Não no mundo físico, apenas. Na dimensão astral das entidades que observam os seres humanos de um universo paralelo ao nosso. Este é outro "evento quântico", nunca verbalizado, apenas sugerido.

—   Dá só um tempinho mais, um maior trato nela.

Dizendo isto, passo às mãos de Hortência a presença da cannabis. Pego a seda de palha de suas mãos, trazendo-a para as minhas. Completo a frase anterior sugerindo:

—  Deschava mais um pouco, dividindo ao meio a seda, digo: assim rola mais igual pra todo mundo.

—   Você, hein, carinha?, Hortência sorrir, está sabendo dos lances.
Jonas sente-se perdendo o controle sobre a situação de manuseio do baseado. Passa da postura PSI de simpatia, para outra, indagativa, quase agressiva. Ela deposita a marijuana nas duas metades da seda que seguro entrededos. Pega uma das metades levando-a à boca, (faço o mesmo), passando a língua ao longo da margem superior da mesma, enquanto justifica a seqüência, apaziguando os ânimos:

—   "Tá limpo", cara, fala entredentes, como se para uma persona subconsciente de Jonas, desse jeito rola mais solto. A moçada faz a cabeça na "paulistinha".

Acendo uma das partes do mingote que rola de mão em mão.

—   Alguém já disse, Amô, "os poetas se inspiram inalando fumaça e traduzindo as mensagens do vento".

—   Essa é de Angola, admira-se Jonas: cabeça boa não rola. Aspira pelo nariz a seda do cigarro em toda sua extensão.

—   No geral da situação, comenta Daniel, os hôme vão prosseguir ferrando todo mundo?

—   "Tá maus", confirma Hortência, quem não aplaude os milico é tido e havido por erva daninha.

—   Quem se nega a ser macaca de auditório, reforça Luís Carlos, é detido como elemento ativo, feroz e nocivo ao mal-estar comum.
Uma vez no ar a maresia, quem estava por perto foi chegando.

—   O gordão é um estorvo, indica Jonas. Pra chegar aqui passou maus momentos. E olha que não fuma nada.

—   É enjôo de altura, cara, o diagnóstico é da  Hortência, você também. Pára de implicar com ele.

—  Se a cabeça não segura os baratos, torna Jonas, fica entocado, não sai de casa. Vomitou, reclamou, escambau.

—   Por isso vai ficar em casa?, qualé Jô. Solta do pé do cara, ela torna a criticá-lo.

— Um baixinho de nome Rock, conta ele, desceu antes de vocês chegarem, receitou uma "cibalena" para o "escocês". O gordo aceitou na maior das inocências.

—   Há mais de três horas Faustinho está "viajando", confirma Hortência.

Hortência disse que Paula, a mulher do "escocês" Faustinho, induziu o companheiro a ingerir a "pedra", levando a ele um pouco de água na tampa de uma garrafa térmica.

—  Que "baratos" o cara deve estar curtindo há horas, ironiza Dani. Queria estar fazendo essa "viagem".

Faustinho, o gordo de bochechas coradas (daí o apelido "escocês"), está em plena viagem neurônica de expansão da consciência. Paula, sua mulher, nesse momento aproxima-se dele e indaga.

—  Você está bem, Faustinho?

—   Sorrisos.

—   Você não está normal, carinha.

—   Mais sorrisos.

—   Tá de bobeira ô meu?, irrita-se Paula.

—   Sorrisos mais largos.

Segundo Paula, há horas que a resposta é sempre a mesma: sorrisos. As palavras não se articulam. Agora sei por que afirmam que o ácido lisérgico é uma espécie de "Zen instantâneo". Fausto, o gordo, sorria amável como um Buda. Não era sorriso cínico, mas compreensivo, inteligente, amável. Pernas dobradas em posição de Lótus.

—  A coisa mais importante para uma pessoa,  Amô comenta, é seu fluxo PSI interior. As "viagens" reais, que traduzem os signos do autoconhecimento.

Hortência chega até Paula e explica que dois mais dois são igual a cinco: a "cibalena" que Fausto ingeriu era, na real, um potente alucinógeno de nome yellow-sunshine.

—   Que amiga é você, reage Paula, agora que vem dizer?

—  Só fiquei sabendo quando o Rock estava descendo, argumenta Hortência, foi quando ele me disse. Faustinho já tinha ingerido.

—  "Take it easy", garota, opina Jonas, ele está curtindo legal a transa. Esse tipo de "pedra" não tem anfetamina, quisera estar no lugar dele.

—  Não esquenta, prossegue ele, já-já ele volta a ser o porralouca de costume: Faustinho, o vomitador.

Hortência, Paula, Jonas e Faustinho conheceram-se na "Juventude Independente Católica". Disseram que o trabalho de assistência social que prestavam nos bairros da periferia do Rio de Janeiro passou a ser gradativamente boicotado.

—  O pessoal da "Opus Dei" se infiltrou de cima para baixo, afirma Paula, nos grupos de trabalho. Ficou barra cumprir a seqüência dos compromissos. De repente tudo ficou difícil. É como se tivessem trancado as portas de acesso das comunidades: suas solicitações não mais chegavam até as lideranças de nosso grupo nem mais tínhamos acesso às pessoas.

—  A Juventude Agrária, Estudantil, Operária e Universitária, grupos de jovens cristãos da Ação Católica, confirma Jonas, sofreram todo tipo de pressão da hierarquia. "Eles" minaram nosso trabalho.

—  Também acho isso, confirma Hortência, "eles" estavam articulados no comando. Parte da igreja ainda são domínio e feudo deles, opina: não é a igreja dos Evangelhos.

—   Mas por que, indago. Vocês faziam política ?

—  Que nada, cara, protesta Paula. A gente só queria mesmo prestar serviços. Ser útil. O “establishmente” nos quer inúteis. Drogados. “Pacificados”, ou então coelhos, fazendo filhos adoidados para povoar as guelras dos Tubarões do consumo.

—   Ninguém nos grupos de trabalho mostrou interesse em sair candidato, reage Jonas. Muito pelo contrário.

—   O pessoal acreditava, segue Hortência, que entrar no jogo da política é cair numa ratoeira.

—  Político é ladravaz de colarinho branco, insiste Paula. Quem se candidatasse não teria apoio de ninguém dos grupos.

— O medo maior era da gente poder tirar votos dos candidatos deles, comprova Hortência, ligados à oligarquia oficial de torrar o dinheiro público via conchavos entrirmãos. . Entre aqueles “irmãos” que são mais “irmãos” do que os outros.

—  Enquanto "eles" dominarem a política, e tudo indica que vão continuar dominando, os eleitores vão seguir chupando o dedo. Ironiza Jonas.

—  A estratégia da "Opus Dei", é que é melhor prevenir do que remediar, dessa forma "eles" se garantem, complementa Paula.

—  Com “eles” na política, confirma Hortência, fica mais fácil subir a Pedra da Gávea pedalando, num pique só, do que as verbas públicas chegarem até a periferia das metrópoles. Ou nas zonas de seca do nordeste.

—  Então o bom Deus está contra tudo e contra todos todo tempo?, pergunta Jonas: nunca ninguém vai poder fazer nada? Eu desconfiava.

—   Eu, certeza.

—   O bom Deus, com certeza, não está a favor, nem contra, nem muito pelo contrário, digo com certo sarcasmo. Até onde eu sei, quem dirige a história, e embolsa as verbas sociais, é o "rei dos animais".

Depois desse lero, ficou evidente que o discurso e a insatisfação popular sobre política, faz parte da vida na estrada. Algumas pessoas, antes de se marginalizarem conscientemente, buscaram uma atuação útil na vivência da comunidade. Foram sistematicamente boicotadas por instituições de patrulhamento social e religioso sub-reptícias e subliminares, modelo "Opus Dei". Herdeiros atuais do "Santo Ofício", força política dominante em parte substancial da igreja católica. Como afirmou frei Leonardo Boff, "o cristianismo oficial tem compromisso com a dominação, por isso, esperemos pouco dele".

Os outros leros do dia giraram em torno do desenho da  enorme Ibis no Morro Pão de Açúcar, na enseada da Urca. Ela fica cada vez mais nítida à proporção que se ergue o sol no céu. A Ibis é um símbolo antigo. Representava, no Egito, a sabedoria esotérica. Vêem-se também as figuras de um ganso, uma Ankh (chave da vida, do conhecimento e da imortalidade), e Peixes.

Uma hippie argentina falou que estes lugares fazem parte de campos de intensidade de forças chamados leys. Eu tinha visto na Pedra Bonita, próxima à Gávea, numa das faces laterais da muralha, um dragão alado numa encosta de um perigoso e quase inacessível precipício, considerado maldito pelos alpinistas, devido à grande quantidade de acidentes. Dragão alado quer dizer aeronave estilizada.

O papo mais carregado de emoção. O desaparecimento de dois rapazes, filhos de militares de alta patente do Exército, ainda está sendo muito comentado nos jornais. As reportagens citam as três ilhas que daqui do alto podem ser vistas: Alfavaca, com formato de peixe, Do Meio, forma de Cone, e Pontuda, parece um homem deitado. Os jornais relatam que eles alugaram um barco pesqueiro no sábado passado, para uma exploração na ilha Do Meio.

No domingo à tarde, quando o dono do barco foi buscá-los, eles haviam sumido. Uma operação de busca pente fino, promovida pelas famílias dos militares, com a participação de barcos patrulha da Marinha e de helicópteros da FAB foi promovida sem resultados positivos.

A hipótese de afogamento descartada, a larga faixa da plataforma continental submersa que envolve e cerca as ilhas, quebra o impacto das ondas, sendo praticamente impossível a morte por afogamento.

Mergulhadores amadores e profissionais que exploraram as ilhas, disseram em entrevistas, que há escadas que conduzem a áreas mais profundas. Um mergulhador mencionou a entrada de uma imensa caverna submarina, mostrada numa suposta foto do local. O folclore afirma ser possível chegar à “caverna do Viking” por um caminho subterrâneo, à partir de uma das ilhas.

Estou crescendo intelectual e espiritualmente, devo isto a estar com o pé na Estrada.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 21/02/2011
Alterado em 21/02/2011


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