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A Sociologia Da Arte E A "Definição" Do Imaginário
Há um século e meio, a História da Arte teve como escopo fazer o balanço das obras do passado, inventariando-as, de forma descritiva, como se faz numa classificação na Botânica ou na Biologia, indiferente às funções sociais e às significações diversas na obra de diferentes autores.

A história, o historiador, não atribui valor decisivo exceto ao documento escrito, conferindo-lhe um valor absoluto. Ele o utiliza para "ilustrar" uma verdade estabelecida, em função tão somente das fontes escritas que o acaso posicionou em suas pesquisas.

A Sociologia compartilha com a História a desconfiança em relação ao documento não-escrito ou não-verbal, faz de seu campo de investigação um privilégio do presente, a coletar informações funcionais, econômicas e "sociais", as únicas que considera válidas.

A elaboração de uma Sociologia da Arte nos métodos usuais da Sociologia, produziu apenas obras decepcionantes. Para sociólogos e historiadores é conhecimento elementar que em toda sociedade é inerente sua estrutura econômica, política e social. Os escritores, e outros artistas, nada mais fazem do que materializar os valores do meio em que vivem, e questioná-los. A expressão de sua arte, por vezes exclui, a elaboração formal, literal, dos imperativos econômicos, institucionais ou sociais.

O acesso à significação das obras literárias, e a de outras artes, é efetuado pela intuição de uma "Beleza" que escapa às miseráveis contingências da vida. Daí a atenção, mais das vezes superficial, ao estudo das relações que unem a Arte às demais atividades.

Há a vigência de um indisfarçável "desprezo" que os ditos homens de ação, sejam eles técnicos ou eruditos, nutrem pelos escritores e outros artistas: "Gente preguiçosa, não compreendo sua existência, o êxito financeiro deles é questionável, irritante". Não há sensibilidade nem razão nesta opinião. É como se fosse exteriorizada por um bruto primitivo, civilizado apenas na aparência do colarinho branco. Aos não poucos emissores desta opinião, é certo que uma sociedade "séria" deve dispensar esses homens criativos, que trabalham os significados, supostamente supérfluos, da sociedade.

Diz o ditado popular: "A inveja é uma merda". E é mesmo. Aquelas pessoas ao contrário de tentarem compreender as manifestações da Arte (literária e outras), reforçam aquele atributo que Wilhelm Reich (Análise do caráter) afirmava ser comum aos homens organizados por uma rotina excessivamente mecanizada: Eles carecem de razão e sensibilidade porque o conteúdo de suas manifestações costumeiras é ditado por uma vaidade de comportamento que supõem "pragmática", quando é apenas medíocre o conteúdo de suas associações e comunicações estéreis.

As pessoas que têm, e mantêm aquele padrão opinativo, são invejosas das manifestações da Arte dos escritores e de outras. Elas cumprem uma subserviente rotina de repetirem opiniões sem atualidade ("diga uma bobagem ou uma mentira mil vezes e ela se tornará verdade"). Aquelas pessoas são carentes de conteúdo espiritual pertinente, atualizado. A resistência de caráter das mesmas manifesta-se, não em termos de conteúdo, mas formalmente (como que obedientes de uma rigorosa etiqueta), na maneira como cada uma se comporta tipicamente, no falar, no caminhar, no gesticular, no vestir, e em outros hábitos característicos, tipo maneira estereotipada de sorrir, de exteriorizar opiniões vulgares: os diálogos de uma incoerência cheia de questionáveis certezas, maneirismo misto de suposta delicadeza e agressividade.

"Gente preguiçosa, não compreendo sua existência, o êxito financeiro deles é questionável, irritante": Esta opinião é típica de uma mentalidade alegórica ((as palavras por vezes são simulações sem sentido (os discursos dos políticos), nunca se combinam de maneira coerente)). Essas pessoas são produto do que Reich denominava de "couraça de caráter", uma estrutura mental padrão caracterizada pela rigidez, a obstinação, a ambição, a mentira, a petulância. Uma pessoa (são muitas: legiões), incapaz de autocrítica, de aceitar crítica pertinente de terceiros, por manterem a qualquer custo, a empáfia enquanto último recurso de auto-afirmação de um ego fragilizado, temeroso de incorporar novos conceitos e idéias com medo de perder a atual e fátua identidade.

As possibilidades de uma Sociologia da Arte conduz à exposição do problema da situação do escritor, e de outros criadores, na sociedade. Esse problema não concerne apenas à questão de saber como os homens ocuparam seus lazeres. Preciso afirmar que há quinhentos anos os livros (a filosofia, a ficção) tornaram-se, a mais necessária forma de testemunho e de precogitação (precognição), em todas as sociedades civilizadas do planeta.

A "arte literária", e as outras "artes", muitas vezes servem como instrumentos aos senhores da sociedade para divulgar e impor suas crenças e valores. Serve (a Arte Literária e as outras Artes), principalmente, para questionar aquelas crenças e valores. A arte e a técnica da comunicação literária, as condições e efeitos da criação nas artes (Estética), penetram em cada um dos pensamentos e ações daqueles que consomem a produção literária dos escritores, e de outros artistas.

A representação literária não determina a forma de agir das pessoas. Ela serve para fornecer os meios críticos necessários a fazer com que algumas virtualidades dos condicionamentos comportamentais possam ser repensadas. O escritor é um criador não apenas de conceitos e objetos, principalmente de novos esquemas de pensamento.

Existe um pensamento plástico, assim como existe um pensamento matemático, político. O pensar estético ainda agora é precariamente observado, pesquisado. Não é possível confrontar entre si disciplinas como a História, a Sociologia, a História da Arte, reduzir esses estudos numa espécie de herbário, quando não se conseguiu ainda, sequer elucidar a natureza do fato artístico em suas relações com a sociedade.

Igual a todas as outras atividades intelectuais, a arte e a técnica de escrever estão destinadas a evoluir em função dos demais desenvolvimentos da humanidade. Inexiste conhecimento pertinente que busque desenvolver-se em função das aquisições experimentais de outras ciências e artes. O pensamento plástico não somente se limita a reutilizar os materiais elaborados. Ele é uma técnica (uma arte), de informação criativa universal. É apreendido através da elaboração dramatizada de atos particulares, que, por sua vez, não têm autonomia na manifestação de suas "especificidades".

"A arte literária não é mais que uma fonte de conhecimento e informação complementar". Fosse desta forma, a Arte Literária e a Sociologia da Arte, não seriam mais que ilustrações metafóricas de conhecimentos adquiridos. As obras de arte permitem ao historiador, ao sociólogo, pesquisar elementos de informação e instrução que de outro modo não seria possível adquirir.

A Arte Literária e as outras Artes são mais do que um conhecimento específico. Elas fazem parte de um exercício experimental do desenvolvimento do ser enquanto natureza comum e "oceânica" (universal), inerente a cada um e a todos os seres. O físico prêmio Nobel (1945) Wolgang Pauli, como que a confirmar a teorização do inconsciente por Freud, afirmou a descoberta do princípio de exclusão quântico: "O inconsciente expande-se para além da terapêutica, como se fosse um universo em expansão, um complexo sistema cibernético ao modo de uma eletrônica cósmica a nível quântico". As melhores performances da Arte Literária e das outras Artes, suponho, têm grande afinidade interativa com este princípio.

O estudo do desenvolvimento da arte contemporânea testifica que os escritores, e os demais artistas, estão mais do que na vanguarda da arte contemporânea, estão na vanguarda do mundo das gerações futuras. Interpretar as melhores produções das artes atuais em função dos valores vivos, vigentes, é querer afirmar um anacronismo. Os ensaios de sociologia histórica constituem tentativas de apreender realidades estéticas numa perspectiva de reconstituição das mentalidades do passado.

O presente, por mais diferente que possa ser do passado, se ilumina pelo seu conhecimento, com a condição de não se perder de vista esse desvio que existe entre o conhecimento histórico e o conhecimento imediato de uma função como o pensamento plástico. A ordem das gêneses permanece distinta da ordem das estruturas que não mais evoluem.

É um truísmo para os sociólogos, que o objeto de seus estudos seja a apreensão dos fatos independentemente de seu valor em si, unicamente na perspectiva em que a sociedade os considera. Eles se recusam a aceitar outra escala de valores que não seja o julgamento da coletividade. Não sei exatamente se eles lembram que um livro, para ter ou não o aval da coletividade, é necessário que, antes desse aval, haja uma cultura de receptividade literária, aliada a uma cultura editorial sem pressões políticas que censuram subliminar, e economicamente a Arte Literária em seus bastidores: "Um povo que não lê, mal fala, mal ouve, mal vê".

Inexistem categorias reais do pensamento ou da ação. A matemática sugere o mesmo dilema. Ao alcançarem altos graus de abstração os matemáticos abordam o problema da realidade de suas especulações. Este modelo de reflexão conduz ao exame dos problemas da arte e do pensamento plástico (associação expressiva dos elementos sensíveis numa obra de arte: cores, formas, linhas, volume, idéias, dramatizações, sentimentos, emoções).

A relação existente entre a Forma e as formas faz imergir o problema, muito atual para os historiadores, da natureza dos fatos históricos. Existe a tendência em não levar em consideração, exceto situações que, por uma longa duração, aplica-se a uma quantidade grande de pessoas da "melhor sociedade", entre aspas. Desta forma a história é condicionada por situações e interesses de grupos, que não estão dispostos a repensar a condição humana, desumana, que os interesses meramente econômicos provocam para a maioria das pessoas de outros estratos sociais. A arte literária e as outras artes não podem, nem devem ignorar essa situação social. Atualmente globalizada.

Incluir as mazelas desta situação social na arte, não é do interesse daquelas camadas mais privilegiadas economicamente. Tudo aquilo que no passado só interessou à quantidade menor, restrita de homens, deve ser considerado pela Arte, desprezível. As tomadas de posição do escritor e de outros artistas, com relação a essas considerações sociais, pode estar na raiz dos interesses de criação, e condicionar a intencionalidade do processo criativo seletivo: encontrar a Forma, é superar as demais formas de expressão. "Quem pode ir à Fonte não vai à água". A frase entre aspas é de Da Vince.

Sempre que num corpo social prolonga uma situação de fato, ela acarreta a inércia e a passividade, em conformidade com as leis da vida física, na qual, todo conjunto que não recebe contribuição exterior, tende inelutavelmente ao "equilíbrio" (ensandecimento) de forças tênues, à inércia e à morte. A vida só se mantém se renovada de energia criativa, de questionamento, de superação dos limites do pensar e do agir até então impostos por interesses sociais menores, restritos a grupos, políticos e econômicos, de comando, comunicação e controle do interesse social pertinente à renovação da vida, dos valores.

Quando não há renovação, há estagnação e decadência. O mesmo ato, quando é o primeiro, distingue-se de todos os que vêm em seguida. Só há continuidade da história, e da História da Arte, da Sociologia da Arte, se nela se introduzirem novos gestos, se houver renovação de intencionalidade e propósitos, se houver novas representações, novas finalidades da atividade humana.

Uma arte do imaginário (toda arte é arte do imaginário), que não tenha aptidão para criar, vez por outra, uma Forma, seria inútil. O quê que caracteriza o pensamento criativo é a aptidão para saber selecionar o que é ou não pertinente para a imaginação atualizada.

Cada forma investe em tipos de pensamento (verbal, lógico, figurativo) cujos números não foram infinitos em momentos exatos do passado. Quando uma nova Forma aparece, não anula a validade das antigas. Uma nova Forma não pode ser compreendida quando vinculada a apenas um único momento histórico.

Todos os homens ainda são, hoje, tão primitivos como os homens de antigamente. Possuem as mesmas necessidades que os homens mais primitivos e os da Idade Média ou os da Renascença. O artista que se antecipa na visão de uma nova Forma, e concede-lhe realidade através de seu processo criativo, é um homem do futuro. O presente não possui nenhuma realidade histórica. É neste sentido que a História reside na duração, e não na estabilidade de modelos individuais e sociais repetitivos ou imóveis.

Certo: estaríamos próximos ainda mais próximos às cavernas primitivas, se a permanência dos hábitos e costumes não cedesse o lugar e a vez aos atos e feitos do espírito, com fundação na dinâmica, ora pessoal, ora coletiva, do imaginário. Não é fazendo tabula rasa do passado que o pensamento faz progresso. Uma seleção de fatos e de obras chegou até os dias de hoje, e foram inseridas enquanto referencial de estudo na dinâmica criativa do imaginário da Arte.

Nenhuma outra disciplina é mais apta que a disciplina dos artistas, no sentido de fornecer as ferramentas básicas, às novas gerações, sugerindo que ingressem mais profundamente nas energias vitais do Espírito criativo, da renovação das energias essenciais da espécie Homo sapiens/demens sapiens.

Não poderia haver uma Sociologia da Arte, sem que houvesse também uma aproximação das formas e qualidades específicas do pensamento plástico de cada uma. O pensamento plástico tem sido ignorado pelos teóricos da estética, e pela quase unanimidade de historiadores e sociólogos. Através de cada uma geração (o mais importante dos conceitos históricos), é que são fixados os novos sentidos, e as novas percepções da Forma.

Inexistem ordens finitas e/ou reais anteriores à compreensão. A intuição estética reside no conhecimento interativo das dimensões do real e do imaginário. O artista realiza essa interação, do universo sensível com os conceitos da razão, pela criatividade que se materializa na Forma de suas obras literárias, e em outras artes. O estudo simultâneo dos elementos e estruturas das obras, foi responsável pela fundação da Sociologia da Arte. O diálogo do artista com a criação da obra implica na participação do espectador.

Os elementos essenciais de uma obra existem na consciência individual e na memória coletiva do criador nas artes, nas gerações anônimas, passadas, que fizeram a História da Arte, nas gerações presentes que estão criando uma memória, e existirão enquanto valor de referência, nas gerações futuras. Todas essas gerações foram, são e serão usuárias dessa mesma realidade social unificada pela Arte. O real e o imaginário são elementos de uma mesma intenção plástica, estética, que associa os mais diversos lugares e tempos heterogêneos, as mais diversas emoções e sentimentos, os mais diversos falares e sentires, que estiveram, estão e estarão presentes nos devires humanos.

A Arte informa mais sobre os modos de pensamento de um grupo social, do que sobre os acontecimentos do ambiente pessoal do criador de obras. A obra tanto está presente na realidade dos fatos, como também na realidade do imaginário, pessoal e coletivo. Futuro.

Há a Forma e há as formas, o Primeiro e os outros, o Modelo e os protótipos. Há o signo Síntese e os demais na classificação representativa de valores estéticos, plásticos. Em nenhuma outra atividade aparece, tanto como na Arte Literária, tão claramente, a distinção entre o Primeiro e os outros. Entre o original e as duplicatas. Entre a Fonte e a água.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 15/04/2010
Alterado em 13/05/2011


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