Textos

Contos Da Seca, Do Maná, Da Esperança.Outros Contos
A palavra conto, em sentido figurado, rima com contexto. Com texto enquanto conjunto das condições sociais que fazem acontecer um conjunto de influências, predominantes do meio, que fazem valer uma certa coerção de caráter psicológico, nas pessoas que pertencem a esse meio ambiente.

Os contos de Fontes Ibiapina estudam as relações que existem entre o comportamento ambiente, social, e as derivações, ou mudanças de curso, que indicam a origem de uma forma lingüística que influencia os habitantes de certo grupo social, principalmente as crianças, os jovens, mostrando ao leitor, de que forma (inconsciente), eles adotam o contexto situacional como sendo a única (e é, realmente), referência para sua vida e experiência futura.


Conto é uma narrativa pouco extensa, concisa, e que contém unidade dramática, concentrando-se a ação num único ponto de interesse: O conto, por vezes, se afirma como uma história mítica, a partir da qual predomina a hegemonia de um conjunto simbólico de intrigas, que fazem valer sua força.

Tangerinos, do livro “Chão de Meu Deus”, e Trinta e Dois, são exemplos de históricas sertanejas do interior piauiense. A paisagem física do sertão adentrando a psicologia dos grupos de pessoas que dele fazem parte. Sertão é predestinação. Quem nasce nele desdobra-se a partir de sua ascendência.


“O MENINO TANGERINO”

Tangerino quer dizer tangedor pedestre, ou, às vezes, a cavalo, de gado vacum. No conto homônimo, o narrador memoriza seus dias de criança, quando ele ouvia o búzio gemer no bojo da mata, definindo-se como “o mais espoletado do bando”. Gostava de apreciar (a partir da imaginação mítica da criança), uma boiada das grandes, conduzida pelos vaqueiros, se aproximar ao som inconfundível das conchas assopradas pelos tangedores, a transmitir, de longe, a chegada de mais uma manada.

O búzio de chifre gemido, sacolejava a alma. O guia, vinha na frente, era o principal tangedor. O gado e os vaqueiros como se fossem uma enorme procissão, a seguir o rumo da sobrenatural sonoridade. Não havia nenhum outro espetáculo na terra que pudesse comparar-se à aproximação da boiada, tirando a criança de sua rotina calada, da vivência das coisas sertanejas.

A boiada chegando aos poucos. Os variados sons dos búzios anunciavam a extensão de terra povoada pelos magotes de bois, uns mais perto, outros, ouviam-se à grande distância, como se até onde a vista alcançava o horizonte, houvesse guias comunicando o gado passando, chegando às terras daqui, vindo só Deus sabe da onde, de que lonjuras, inatingíveis terras.

Os burros, à larga, carregavam os mantimentos. O garoto imaginava a aventura de ser um tangerino, participar daquele mundão fabuloso, em contato com as forças vivas da natureza. Poder também ele armar sua barraca de palha que os campeiros traziam ao ombro, como se fossem casas ambulantes, que eles armavam quando a chuva caía, e dela se protegiam, “podia chover rios de água”.

A visão da paisagem, de repente modificada, criava na criança a vontade de transcender a rotina melancólica do panorama sempre o mesmo. As vidas de todas as gentes do lugar se repetindo, se devorando. A antropofagia da paisagem, das pessoas sempre as mesmas, agora, de repente, não mais que num ímpeto, mudada com a chegada bendita daquela novidade, que vinha mudar os costumes do lugar, os hábitos da paisagem, ainda que fosse no tempo provisório desse acontecimento “mitológico”.

O garoto prestando o máximo de atenção às conversas do boieiro com o pai. Enquanto a musicalidade de um búzio, distante, muito longe, tão remoto, quase sumido, que era ouvido por ele, como se viesse de uma outra dimensão, existência de um guia entremundos. Era como se ele ouvisse o tempo, o mistério do tempo, tal em si, e aquele acorde afirmasse a música de uma narrativa pra além desse existir.

O tempo outro da chegada (“ah, se viver fosse chegar...”). Ele ali, inserido no universo lendário do sertão. Fazendo dele parte como se fosse um intruso. Ele, menino ficcional, sem nem desconfiar do que fosse o significar dessa palavra ficção. A duração ilimitada desse dia único, de uma dramatização inusitada, excluindo provisoriamente a criança de continuar sendo devorada impiedosamente pelo canibalismo mesmo do repetido cenário.

Aqueles acontecimentos fortuitos a salvavam da garganta profunda das pessoas do bairro, da cidade sitiada no sertão. Aquela ação diversa o impressionava, uma nova atividade mimética da ação humana, a representação variada, abria-se para ele um novo ponto de chegada (e de partida) para a incabrestável imaginação infantil. Sentia-se livre com a mudança de ares. O convívio com aqueles homens vestidos de couro que transitavam com suas casas de palha nos ombros. Como se pudessem habitar a continuidade do tempo. E fazê-lo parar quando quisessem. Mesmo quando chovia, tinham como se proteger da antropfagia. Era uma liberdade que ele queria para si. Ele será, sem dúvida alguma, quando crescer, um herói daqueles, um tangerino.

A interpretação do qualificar a chegada da boiada, como se ela fosse um acontecimento poético insubstituível. Ele não queria, de jeito nenhum, perder sua inserção naquela poesia. Sem ela, tudo voltava ao normal. Ele, sem ela, voltaria a ser mero objeto de mastigação da paisagem implacável do sertão. Dos “bons dias” “seu” fulano, das “boas noites” “seu” sicrano, “como vão as coisas “seu” beltrano? “Tudo na santa paz?”. E as coisas nunca eram dele, pertenciam sempre a um “seu” ser, que não o dele.

(Ibiapina, 1965): De uma coisa o menino estava mais do que certo: —— Quando crescesse entraria para aquela vida boa. Mas não era boiadeiro que queria ser. Tangerino. Queria ser tangerino para labutar com o gado mais de perto. Para sentir o cheiro do gado. Para passar o dia tangendo o gado e à noite com o gado no rodeador. Chegava a se sentir tangerino. A chuva caía. Abria aquela muqueca de palha e ficava ali debaixo, quietinho. Que coisa boa!

Essa, a voz do menino no presente. A vida antecipada, vivida à distância, o tangerino precoce. Ele não queria continuar sendo menino, a carne tenra ingerida todos os dias pelos canibais dos “bons dias”, “como vão as coisas, tudo na santa paz”, “boas noite”. A vida imediata era a atualidade desse presente do qual sentia-se prisioneiro. Cada dia uma eternidade. Como o garoto de “Vidas Secas”, filho de Fabiano, olhando para a paisagem e exclamando, enfezado: “Inferno”, “inferno”, “inferno”.

Ele queria crescer para logo ser tangerino. A vida intemporal, mítica, do tangedor a cavalo. O gado vacum mugindo, ele a sair do ciclo vicioso da empatia com os habitantes do lugar viciado, e passando a fazer parte de outro rebanho, o do gado. Fazendo quilômetros de chão, quantos lugares distantes, viajado, do sertão ao litoral, ele, “tangerindo”, tangendo o gado nas terras da desrotina.

Ele, futuro, transitório menino, sendo inseparável do movimento tangedor. Escapando da goela antropofágica do lugar de raiz. Armando sua casa de palha em qualquer lugar, bastando tirá-la bem ali dos ombros, movimentando-se em torno dela. Sentindo a chuva tamborilar no chapéu de couro. Abstraído no mundo mítico, dividindo-o com seus companheiros, os signos extraordinários da fala, do mugir dos bois. Decifrando os enigmas do mundo dramático, ainda quimérico da tangerinagem. Não apenas ouvir as conversas. Delas ser agente participante. Quem sabe fosse um novo Canapu.

(Ibiapina, 1965): Todo santo ano ele passava. E de todas as boiadas grandes, a mais grande era a sua. Canapu era rico mesmo de verdade. O sujeito que mais gado possuía no mundo. E o melhor era que o seu rancho lá em casa era mais do que na certa. Podia chegar cedão da tarde, ele tinha de dormir ali. E derribava lei com o pai, até os galos amiudarem ! A boiada de Canapu dormir era na manga, no cercado-da-porta. Os tangerinos vinham para o terreiro. Se sentavam. Faziam aquela roda. E entabulavam conversa. O menino ia bem para o meio. Ficava escutando aquelas conversas mais importantes do mundo.

Um dia ele cresceria e seria também personagem desse mundo fabuloso, fantástico, inverossímil. Nele, os tangerinos de Canapu contavam histórias de sete cabeças, do arco da velha, dos tempos perdidos do começo do mundo, todos ouvindo os outros ficando de queixo caído. E o Chico Pezinho era o patusco mais avivado, tivesse tal parte com o diabo, como gente de outras histórias do Sertão. Chico Pezinho era guia, tocador de búzio com perfeição:


(Ibiapina, 1965): Sentava a boca no chifre velho com toda substância do peito. . . Os gemidos saíam quase que emendados um ao outro. Como se fosse um gemido grande, sem começo ou fim. Um só gemido cortado, aqui e acolá, apenas para tomar rápido fôlego. Daí a pouco o gadão apontava. E Chico Pezinho sempre vinha bem na frente na primeira maloca. Vinha gemendo no búzio. Gemendo. Gemendo. Ele ficava escutando, com aquela alegria por dentro.

(. . .)

A maloca da frente arrancou. As demais arrancaram também a um só tempo. Meteram os peitos na lagoa, que foi uma coisa doida ! Parecia que a terra ia virando do avesso e a água toda se derramando nos ares. Atravessaram a lago e se atufaram na caatinga, lá no outro lado. Nunca vi zoada tão grande ! Uma quebradeira de paus, um trovão estremecendo a terra ! Tive mesmo a impressão de que o mundo ia acabar daquela.

A criança deslumbrada com o sonho de uma realidade existente apenas nos meandros da imaginação. Imaginação muito mais circunspecta e convicta de si, do que nas idéias de qualquer outra criança de sua idade.

O sertão existe, existe na vida correndo, desesperadamente (“também não se matam cavalos?”), atrás de uma saída, ainda que apenas subjetiva, dos meandros e veredas do sertão. Uma criança exercitando-se nas lições de deslumbrar-se com a ilusão, um segmento de fuga para sentir-se herói entre uma porção de bois comendo, correndo atrás da mastigação de espigas de milho secas, as últimas espigas de suas vidas secas de sobrevivente da seca do sertão.

O sertão do Riobaldo, do Fabiano, de Antônio Conselheiro. O sertão das malocas, favelas tipo “Cidade de Deus no Chão de meu Deus”. Sertão Carandiru, a maloca lambuzada do sangue da menina menstruada que pensa (imaginação fértil, ilusória), estar com uma hemoptise nos países baixos. As américas, não apenas as do sertão do Sul, são cheias das surpresas. Políticas ambientalistas do lucro dirigido, globalizado para o usufruto dos banqueiros do “Reich dos Mil Anos”.

Os Cavaleiros da Távola Redonda de Riobaldo, das boiadas à “As Vidas Secas do Menino Tangerino”, “o soldado amarelo, por ser governo, sendo alvo da caridade do Fabiano. Afinal, fé, esperança e caridade não são as três virtudes teológicas ? Antônio conselheiro talvez sonhasse em ser guia das malocas de frente. . . Os Cavaleiros da Távola Redonda da Literatura Rural Brasileira, liderados pelas personagens de

(Ibiapina, 1965): Todo quebrado, todo lambuzado de sangue misturado com terra. Era assim como se fosse uma coisa de carne sem osso. Vi quando os outros o pegaram e suspenderam-no. Só aquela coisa mole ! E os olhos? Santa Mãe de Dues, esbugalhados. Ave Maria ! Nunca via cena tão feia !

O “Menino Tangerino”, em sendo uma personagem do sertão, afirma surpresas. No deserto de ira e inveja, ele apronta das suas, e cobra também seus avos de sangue. A antropofagia do sertanejo se torna uma segunda natureza. Destrutiva como a natureza que tem como céu da boca o sol de 50 graus, a engolir a todos com a goela do dia, mesmo os que acreditam estar à sombra quente do sertão.

Graciliano Ramos e seus Cavaleiros da Távola Redonda da Literatura Rural do Brazil. Com “z”. A escola dos romanceiros, dos contos de cavaleiros, do diabo na rua no meio do redemoinho. Os Cavaleiros da Távola Redonda da Literatura de Guimarães Rosa: Fontes Ibiapina intertexto de Euclides da Cunha, Antônio Conselheiro personagem de Glauber Rocha, produzido por Nelson Pereira Vidas Secas. “A Terra é do homem, não é de Deus nem do diabo”. A mãe pergunta ao Menino no conto de Ibiapina (Ibiapina, 1965):

— Não minta meu filho ! Mentir é p e c a d o. Você botou sal no fogo.
—Botei não, mãe.
—Botou...
—Não botei. Juro c o m o n ã o botei.
—Eu c o n h e ç o a sua cara quando está negando.
—Para falar a verdade, eu botava sal no fogo, quando ouvia um búzio gemer. Quando era o búzio de Chico Pezinho, que eu conhecia de longe, não botava.
—Melhor botar a carga abaixo e contar a história direito. Falar a verdade não merece castigo. Você botou sal no fogo para a boiada arrancar.
— Chico P e z i n h o era meu amigo. Fiquei cortado de pena. Juro que não botei sal no fogo . . .

“O Menino Tangerino”, da idade, talvez, do “Menino Maluquinho”, sabia que quando ele fosse tangerineiro, haveria sempre um menino tangerino que, como ele, Maluquinho, ia botar sal no fogo do sertão. O sertão não tem amigos.
DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 12/04/2010
Alterado em 26/08/2023
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